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6. O PORQUÊ DO MATRICÍDIO SEM EXEMPLO

São estas e outras perguntas que vamos procurar responder no capítulo que se inicia. Fizemos essas questões e provocações, notadamente para demonstrar o quanto o autor nos incomoda, nos instiga, nos provoca e nos leva, consciente e inconscientemente, por um labirinto de ideias e armadilhas.

De acordo com Oliveira e Silva (2021, p. 2), formar uma família sempre foi fundamental para a perpetuação da espécie, de maneira que o “núcleo familiar era visto como o primeiro local no qual a criança era inserida, onde seria amada e cuidada incondicionalmente”, com a crença sempre presente de que as pessoas devem ter filhos para que os ensinamentos sejam passados de geração para geração. Assim foi feito na família de Maria José, tendo sua mãe repassado a ela tudo o que havia aprendido, inclusive suas orações e dogmas.

A narrativa inicia-se com a afirmação de que “o pobre velho morreu abraçado a sua querida mulher, e amados filhos” (CASTELO BRANCO, 1991, p. 7); na sequência: “Metia compaixão ver aquela mãe tão contente com a sua filha, depois de terem ambas repartido entre si os poucos lucros do seu trabalho” (CASTELO BRANCO, 1991, p. 8). Percebemos a estrutura familiar, em que existiam amor e cuidado, tanto por parte do pai falecido quanto da mãe viúva; mesmo em meio às dificuldades financeiras e sociais, o narrador deixa claro, no último trecho, que o carinho e cuidado recíproco eram visíveis entre a “querida mulher” e a “amada filha”.

Roudinesco (2002) defende que família, união de um homem, uma mulher e seus filhos, é um fenômeno universal, presente em todos os tipos de sociedade, repousando em uma união mais consolidada, duradoura e aprovada social e moralmente (ZORNIG, 2010). Entretanto, é necessário mencionar que a organização familiar vem passando por transformações, tanto de maneira interna, relacionada à composição e às relações entre seus membros, quanto às normas de sociabilidade externas, tornando-se um conceito mais amplo e inclusivo, mostrando seu caráter dinâmico. Por isso, a família é vista como uma instituição flexível que passou e continua passando por modificações constantes, sofrendo influências sociais, culturais, psicológicas e biológicas, variando de acordo com o contexto e a época (OLIVEIRA, 2009).

A família de Maria José, nos meados do século XIX, era vista em conformidade com um padrão ideal de família, em que a religião e a sociedade impunham leis e normas que necessitavam ser seguidas. De acordo com essas normas, a relação entre duas pessoas, um homem e uma mulher, deveria gerar filhos, o que favoreceria

a manutenção dos valores morais instituídos e a transmissão de culturas e costumes (OLIVEIRA; SILVA, 2021).

A preocupação do pai, Agostinho, com a sua salvação diante de Deus, fica muito clara nos primeiros parágrafos, em que ele diz: “não as deixes cair na desgraça de mundanas, porque eu não me poderei salvar, se minhas filhas desonrarem minhas cinzas” (CASTELO BRANCO, 1991, p. 7). Ou seja, a pureza da sua alma dependia da pureza existencial de suas filhas; se estas “pecassem”, ele não seria salvo.

A preocupação com o julgamento divino e social também fica evidente nas ações da mãe, Matilde, quando o narrador descreve: “como ela ensinava à filha as orações que já sua mãe lhe havia ensinado, o modo de pedir a Deus um meio de passar a vida com honra e sem vergonhas do mundo” (CASTELO BRANCO, 1991, p.

8). Os pedidos de Maria José a Deus, segundo a disciplina de sua mãe, eram simplesmente honra e pureza. Sua responsabilidade seria grande, pois seus erros, seus pecados, suas falhas iriam castigar não só a si, mas também seu pai. Suas ações em vida trariam consequências ao pai morto e a mãe existia para guiá-los rumo ao paraíso.

Nesse cenário, estava constituída a família, composta pelo homem e pai, Agostinho José, e pela mulher e mãe, Matilde do Rosário da Luz, de cuja relação de amor foram geradas duas filhas, uma delas Maria José. Seu pai mantinha o papel de chefe e dominador e trabalhava para sustentar a honra de todos. No entanto, vem a óbito e, para realizar seu último pedido, é necessário manter a honra das filhas a todo custo. Sua esposa, submissa, se vê obrigada a colocar uma filha em casa de família para servir e Maria fica em casa com a mãe, para ajudá-la a sobreviver e fazer companhia a ela, tudo isso envolvido em uma rigorosa conduta religiosa.

Durante toda a leitura, percebemos a questão religiosa, segundo a qual a família precisava manter o padrão da tão sonhada e idealizada “Sagrada Família”. O homem, como havia sido durante muito tempo, tinha o papel de dominação sobre as mulheres e esta era a única forma de relação daqueles tempos. O pai se assemelhava ao Pai e, portanto, todos deviam respeitá-lo, sem questionar; desse modo, seus pedidos eram uma “ordem” e deveriam ser cumpridos a qualquer custo, mesmo após sua morte. Assim como Deus, ele era soberano, impondo regras e limites, por meio de uma autoridade máxima sob a qual a dependência e subordinação da mulher e dos filhos reinavam (ROUDINESCO, 2002).

O que podemos ver na narrativa é o que Vasconcelos (2018) explica sobre a presença marcante da religião nas relações familiares, com rituais praticados por toda a família e passados de pais para filhos. Matilde ensinou a Maria as orações que havia aprendido com sua mãe e, assim, as duas rezavam juntas todas as noites. Mãe e filha se relacionavam muito bem, Maria trabalhava o dia todo e, à noite, além de fazer um trabalho extra costurando meias, cumpria assiduamente suas orações, por isso a filha era fonte de orgulho e admiração de sua mãe e de todos: “Toda a vizinhança olhava para esta rapariga com admiração porque já tinha 29 anos, e ainda não havia nota ruim que se lhe pusesse, e ninguém se atrevia a pôr nela a boca” (CASTELO BRANCO, 1991, p. 8). Logo, Maria José era não só um exemplo de filha, mas também um exemplo de ideal feminino; nesse sentido, a promessa ao pai estava sendo cumprida e sua alma, por enquanto, estava salva.

Uma vez que os seres humanos utilizam a religião para fundamentar os seus anseios mais íntimos nos contextos mais gerais de sua existência – é com base em suas crenças que uma sociedade molda seus valores e costumes (GEERTZ, 2008) – , entender a influência religiosa no comportamento de Matilde e Maria José é fundamental para a compreensão dos fatos ocorridos entre elas, pois toda a formação de caráter de Maria parece ter sido baseada em um padrão ético e moral rigorosamente religioso.

Nessa direção, podemos perceber muitas questões envolvendo o sagrado durante toda a narrativa, com o narrador mencionando Deus em vários momentos:

“Oh Céus, onde estão os vossos raios que não caem sobre a cabeça deste infame, que pede a uma amante que mate sua mãe” (CASTELO BRANCO, 1991, p. 15).

Mesmo demonstrando certa ironia (marca do autor) em algumas passagens, há a presença da divindade: “Meu Deus, eu sou um fraco bichinho na terra, e atrevo-me a interrogar a vossa alta sabedoria! Perdoai-me, meu Deus!” (CASTELO BRANCO, 1991, p. 15). Não é Deus que conta a história, mas parece ser Ele que serve de justificativa, junto da defesa da moral e “dos bons costumes” da época.

A determinação cultural de um grupo social que se mantém ligado às religiões é diretamente influenciada a sustentar seus dogmas e práticas religiosas, fazendo com que as pessoas vivam os valores religiosos em uma cultura, como um modo de viver e se relacionar. Assim, “um deus é a personificação de um poder motivador ou de um sistema de valores que funciona para a vida humana e para o universo”

(CAMPBELL; MOYERS, 1990, p. 24). Dessa maneira, segundo Bernardi e Castilho

(2016), a religião permite um conhecimento maior dos valores que envolvem dada sociedade, principalmente seus valores éticos.

A interpretação dos fatos aos olhos da fé faz com que o sagrado esteja sempre envolvido nas diversas situações cotidianas, seja como solucionador de dificuldades e provedor de dias melhores, seja como rigoroso juiz, com suas implacáveis punições pelos pecados do mundo.

No trecho citado no início do capítulo, em que Agostinho coloca nas costas das suas filhas sua salvação, há, além da crença religiosa, sem dúvida, uma afirmação extremamente egoísta, pois em nenhum momento o pai mostra preocupação com o bem-estar delas, mas exclusivamente com sua própria alma perante Deus. Sua salvação estaria condicionada ao comportamento das filhas diante das regras religiosas, às quais estavam todos daquela família submetidos, demonstrando a necessidade de uma vida abafada por normas, punições e um sofrimento intenso, justificado pelas leis divinas e, especialmente, pela obrigação de assegurar o lugar do pai nos céus.

O comportamento de Matilde é mais bem compreendido quando tenta de tudo para salvar a honra da filha – e, consequentemente, do marido – diante da proximidade do amante de Maria, não conseguindo ver nada de positivo naquela relação, além do que seus olhos, envolvidos nesses aspectos de “honradez e pureza”, conseguiam admitir. Para a mãe, José queria apenas se aproveitar da ingenuidade de Maria. E, se o rapaz conseguisse, não só sua filha estaria desonrada, mas, e pior, seu marido estaria perdido.

O sofrimento e a dor são aceitáveis e necessários em uma vida permeada de normas e padrões religiosos, pois esses princípios justificariam qualquer adversidade e renúncia, mesmo que isso significasse a infelicidade da filha. Era essa a atitude tomada por Matilde, que justificava as dificuldades e sofrimentos pela necessidade de uma vida de retidão, que, apesar de difícil, para ela seriam virtude e salvação. Nessa perspectiva, Teixeira (2011) reflete que o significado da religião não é tanto acabar com o sofrimento, mas torná-lo suportável, algo que tenha sentido no contexto da vida;

com isso, nas situações de sofrimento, a necessidade de significado é tão grande quanto a necessidade da felicidade.

A rotina de religiosidade austera, sem divertimentos, imposta a Maria está evidente no trecho em que o narrador afirma que ela trabalhava de dia e “de noite rezava o terço à Virgem Maria” (CASTELO BRANCO, 1991, p. 8). Nesse trecho, o

narrador moralista expõe o seu julgamento sobre o caráter de Maria José, aprovando a sua pureza, admirada pela mãe e pela vizinhança, conforme anteriormente explicamos. Fica implícita a aprovação social devido às condutas religiosas rígidas às quais a personagem estava submetida.

Como vimos em capítulos anteriores, há na narrativa comentários acalorados, fundamentalmente religiosos, associando a inocência de Maria ao sagrado e a perdição da personagem ao profano.