• Nenhum resultado encontrado

5.1 Tribunal do júri: da regra à exceção

5.2.3 O júri como um procedimento bifásico

O procedimento do júri é um procedimento especial bifásico. Conforme a própria expressão revela, possui duas fases. Na primeira, chamada instrução

56 Trata-se de uma prisão cautelar, aquela que ocorre antes da decisão definitiva. Na narrativa, aparentemente, é uma prisão cautelar preventiva, pois não houve flagrante, ou seja, Maria não foi presa cometendo o crime, que seria caso de uma prisão preventiva em flagrante delito.

preliminar, atua exclusivamente o juiz presidente, o juiz técnico, ou seja, os juízes populares, os jurados não participam desta fase, tendo, resumidamente, os seguintes atos: denúncia, contestação, audiência de instrução e “sentença”. Em se tratando do júri, no fim dessa primeira fase, não há propriamente uma sentença e, sim, uma decisão, que determina se haverá ou não o plenário (a segunda fase). A esse respeito, ensina Alves que

A primeira fase do procedimento tem como finalidade imediata a definição da competência do tribunal do júri. Além disso, visa simplificar o procedimento para os jurados, que, por serem leigos, não devem ser convocados para decidir questões de ordem técnica.

Assim, esta fase pretende filtrar as matérias jurídicas, fazendo com que os jurados, recebendo a causa limpa, apenas decidam, por meio de quesitos, sobre a condenação ou absolvição do réu. (ALVES, 2020, p. 291).

Na narrativa camiliana, fica evidente que não há uma preocupação em descrever essa fase preliminar. Os aspectos técnicos do julgamento não interessam os leitores, que, sem dúvida, querem “ouvir” as oitivas das testemunhas, o interrogatório da acusada, os debates entre acusação e defesa, querem a emoção do plenário. O narrador, na terceira edição, também parece estar ansioso para chegar ao julgamento anunciado e, omitindo a primeira fase do júri, começa assim:

Procedeu-se nos termos do processo; o ministério público apresentou o libelo contra a acusada pelo crime da morte de sua mãe, com as circunstâncias agravantes de esquartejamento do cadáver, e aleivosia; o sr. juiz patrono oficioso da acusada reservou-se para contestar na audiência. (CASTELO BRANCO, 1991, p. 44).

Alguns pontos nesse trecho merecem ser analisados de forma um pouco mais profunda. O primeiro é a apresentação do libelo pelo Ministério Público. Essa peça (que não existe mais no procedimento do tribunal do júri em vigor no Brasil) inaugurava a segunda fase do procedimento do júri, isto é, antecedia os debates. Era, segundo melhor doutrina, por ser uma mera formalidade, totalmente desnecessária, sobretudo

porque não poderia fugir dos termos da decisão de pronúncia57 e, assim, se tornava uma repetição dessa decisão. De acordo com Silva Filho,

O libelo era a peça que dava início ao judicium causae. Com o libelo o promotor de justiça podia requerer quaisquer diligências, juntar documentos e oferecer o rol de testemunhas para serem ouvidas em plenário, não podendo estas ser em número maior que cinco. O libelo era a exposição articulada do fato criminoso, com a indicação de todas as circunstâncias que serviam para o agravamento da pena, desde que estivesse em conformidade com a pronúncia, ou seja, tinha um conteúdo fixado pela decisão de pronúncia, conteúdo este que era submetido ao julgamento do tribunal do júri. (SILVA FILHO, 2009, n.

p.).

A novidade do libelo em relação à decisão de pronúncia era a possibilidade de inclusão das agravantes que seriam sustentadas no plenário. Contudo, essa menção às agravantes no libelo não era obrigatória; o promotor poderia fazer a sustentação delas no plenário. Logo, o libelo não passava de mera formalidade.

O que nos chama a atenção é que o narrador faz questão de citar o libelo, mas não se preocupa que a defesa o contrarie, demonstrando claramente de que lado está.

Em outras palavras, no início do plenário, temos duas peças que são meramente formais: libelo-acusatório e contrariedade ao libelo (como se fosse uma contestação).

No júri de Maria, seu advogado “reservou-se para contestar em audiência” (CASTELO BRANCO, 1991, p. 44), mas o promotor, a acusação, faz questão de apresentar o libelo.

Refletindo um pouco mais sobre o libelo da narrativa, cabe também uma análise do seu conteúdo. Primeiramente, o promotor faz a adequação típica58 do fato

57 O júri é um procedimento especial bifásico, portanto a decisão de pronúncia representa o fim da primeira fase e início da segunda, o plenário de julgamento. A pronúncia funciona como um "filtro" no qual o juiz verifica, após as provas colhidas na fase preliminar, se o crime sob julgamento realmente se trata de um delito doloso contra a vida e se há indícios mínimos de autoria para que possa o réu ser definitivamente julgado pelos jurados. Ademais, no fim da primeira fase, além da pronúncia, outras três decisões podem ser proferidas pelo juiz: impronúncia, quando não há materialidade do crime ou não existem indícios suficientes de autoria; desclassificação, quando o juiz entende que o crime não é doloso contra a vida e envia o processo para julgamento de um juiz singular; e absolvição sumária, quando, diante das provas colhidas na primeira fase, é possível declarar o réu inocente.

58 A legislação criminal funciona a partir da seguinte lógica: o Código Penal e as leis penais especiais descrevem as condutas criminosas de forma genérica (exemplo: matar alguém), punindo aquele que

praticado por Maria – “crime da morte de sua mãe” (CASTELO BRANCO, 1991, p. 44) – ao diploma penal da época (as Ordenações Filipinas, que dispõem a respeito no Título XXXV, “dos que matão”, como apresentado no segundo capítulo). Na sequência, ainda no libelo, traz as “agravantes”, que são circunstâncias59 do crime que, embora não alterem o tipo fundamental, têm por finalidade aumentar a pena- base.

A primeira agravante descrita no libelo pelo promotor é o “esquartejamento do cadáver” (CASTELO BRANCO, 1991, p. 44), conduta que hoje, no Brasil – em uma interpretação evolutiva –, seria o crime autônomo de ocultação de cadáver. Portanto, o fato posterior ao assassinato (esquartejamento) era, em Lisboa no século XIX, segundo o narrador, um dado acessório ao crime que tinha por finalidade aumentar a pena.

Apenas a título de curiosidade, na legislação brasileira atual, diante das condutas praticadas, Maria iria responder por dois ou até três crimes. Pensando somente na intenção de destruir e ocultar o cadáver da sua mãe, teríamos homicídio e destruição, subtração ou ocultação de cadáver. Em relação ao último crime, o que se protege no ordenamento jurídico não é a vida da vítima, que, afinal, já estaria morta, mas o sentimento de respeito aos mortos. Haveria, também, a possibilidade de uma terceira infração penal nessa mesma conduta, caso pudéssemos constatar a intenção – que a história demonstra que houve – de impedir a descoberta da autoria (citamos aqui Maria lavando as roupas sujas de sangue). Teríamos, então, o crime de fraude processual, como bem explica Sanches:

É o dolo, consistente na vontade consciente de destruir, subtrair ou ocultar o cadáver ou parte dele. Indiferente é a finalidade com a qual o agente intentou a ação. Aliás, dependendo do fim especial que anima o agente haverá concurso de crime, como por exemplo, se praticada a infração com o objetivo de impedir a apuração de crime de homicídio, temos o concurso material com o delito de fraude processual. (SANCHES, 2020, p. 516).

de maneira concreta realiza a ação que a lei prescreve como proibida. Adequação típica é o encaixe entre a ação real encetada pelo criminoso e a previsão abstrata da lei.

59 Circunstâncias são elementos acessórios ao crime, que não interferem na existência ou não da figura criminosa, mas influenciam, aumentando ou diminuindo a pena.

A segunda agravante descrita pelo promotor no libelo é a “aleivosia” (CASTELO BRANCO, 1991, p. 44), terminologia da época que significa traição. A existência dessa circunstância deve ser analisada não só pela maneira como o crime foi praticado, mas especialmente pela relação entre autor e vítima. Essa agravante – hoje tipificada, no Brasil, como qualificadora (ambas circunstâncias) do crime de homicídio – ocorre quando há uma relação de confiança entre autor e vítima, sendo que, devido a essa proximidade, a vítima (Matilde do Rosário, mãe) nunca espera sofrer uma conduta criminosa daquela pessoa (Maria José, filha). A confiança impossibilita ou ao menos dificulta uma possível defesa da vítima – uma mãe não espera ser esfaqueada por uma filha. Sobre esse tema, Cleber Masson disserta que

A traição pode ser física (exemplo: atirar pelas costas) ou moral (atrair a vítima para um precipício). Nessa qualificadora, o agente se vale da confiança que o ofendido nele previamente depositava para o fim de matá-lo em momento em que ele se encontrava desprevenido e sem vigilância. (MASSON, 2015, p. 37).

Analisando a citação, percebemos que a adequação típica da traição fica mais evidente na primeira edição, na qual a matricida desfere o primeiro golpe com a mãe deitada em seu colo, enquanto finge catar-lhe piolhos. Na terceira edição, o ataque acontece quando a vítima está de pé: “Atirou-lhe uma facada, com que a pobre mulher caiu logo por terra” (CASTELO BRANCO, 1991, p. 36). A nosso ver, apesar de também haver a traição, pois nenhuma mãe espera ser assassinada pela própria filha, no caso da terceira edição, ora analisada, seria mais adequado pensar na “agravante”

da surpresa60, que também impossibilita ou dificulta a defesa da vítima e, ao mesmo tempo, facilita a ação homicida.