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A EUTANÁSIA VISTA PELAS RELIGIÕES

ao doente terminal, prorrogando, apenas, o seu sofrimento, ainda que ocasionasse o seu falecimento.

Desse modo, por mais variável que seja a posição ética do tema eutanásia, é possível perceber que a aceitabilidade dessa conduta passa necessariamente pela inclusão do conceito dignidade humana a fim de evitar um sofrimento desproporcional do paciente.

Mas tudo isso também significa que mesmo quem rejeita as religiões precisa levá-las a sério, como realidade social e existencial básica.

Elas têm a ver com o sentido e o não-sentido da vida, com a liberdade e a escravidão das pessoas, com a justiça e com a opressão dos povos, com a guerra e a paz na história e no presente [...]128.

Maria de Fátima Freire Sá igualmente discorre sobre a influência que as religiões exercem na humanidade, por conseqüência, a importância da percepção dessas religiões sobre o tema morte e sua eventual interrupção pela eutanásia. Assim se manifesta:

Não se pode negar eu a religião tem muita influência nos homens, porque é ela que traduz ao indivíduo mensagens de salvação.

Oferece bálsamo nas situações de sofrimento e penúria, indica caminhos para um procedimento reto e responsável na vida, afirmando que, ao agir de acordo com os ensinamentos de Deus, as pessoas alcançarão felicidade duradoura e eterna. Por isso, não há como olvidar sobre a pertinência em se abordar a questão do morrer nas maiores religiões do mundo [...]129.

De fato, o tema é por demais atual e palpitante em todos os meios, por isso não poderia ser diferente, ou indiferente, no meio religioso. Ainda segundo Pessini:

[...] Abalizados pensadores na área da bioética dizem que, assim como o aborto foi o tema do século XX, com liberalização em muitos países do globo, a eutanásia certamente será a grande questão do século XXI130.

No que se refere à Igreja Católica, especialmente por se tratar daquela que possui o maior número de fiéis em nosso país, portanto, com maior poder de influência no dia a dia da sociedade, é certo concluir que inadmite a eutanásia ou algumas de suas vertentes, equiparando-a ao ato de homicídio, sem a abertura de discussão sobre eventual admissibilidade, como se observa no

128 PESSINI, Léo. Eutanásia. Por que abreviar a vida, p. 230.

129 SÁ, Maria de Fátima Freire de. Direito de morrer: eutanásia, suicídio assistido, p. 62.

130 PESSINI, Léo. Eutanásia. Por que abreviar a vida, p. 230.

“Documento de Aparecida”, que consiste no “Texto conclusivo da V Conferência Geral de Episcopado Latino-Americano e do Caribe”131.

Por outro lado, de forma expressa a Carta Anhcíclica Evangeliu Vitae de 1995, da lavra do Papa João Paulo II, critica as hipóteses de eutanásia e da distanásia, enfatizando uma crescente “cultura” da morte, adotada por uma sociedade que visa somente a produtividade, acreditando por isso que os idosos ou enfermos, porque não mais “úteis”, não possuem valor132.

Igualmente a distanásia, que como já fundamentado na parte inicial do presente trabalho, diz respeito à renúncia ao tratamento excessivo, demasiado ou inadequado à situação do doente, em razão de seu irreversível estado, é criticada e não encontra aceitação na Igreja Católica.

José Transferetti, afirma que é diferente a visão católica cristã acerca da ortotanásia, dizendo que: “a ortotanásia é a que mais se aproxima da visão cristã”, acatando-se a conclusão da humanidade da conduta de “evitar sofrimento inútil de pacientes terminais”133.

Essa aceitação, em termos condicionados, ficou expressa quando a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) expediu nota explicativa sobre o tema, ressaltando a manifestação do Papa João II no número 65 da Encíclica Evangelium Vitae, nos seguintes termos:

Para um correcto juízo moral da eutanásia, é preciso, antes de mais, defini-la claramente. Por eutanásia, em sentido verdadeiro e próprio, deve-se entender uma acção ou uma omissão que, por sua natureza e nas intenções, provoca a morte com o objectivo de eliminar o sofrimento. « A eutanásia situa-se, portanto, ao nível das intenções e ao nível dos métodos empregues ». Distinta da eutanásia é a decisão de renunciar ao chamado « excesso terapêutico », ou seja, a certas intervenções médicas já inadequadas à situação real do doente, porque não proporcionadas aos resultados que se poderiam esperar ou ainda porque demasiado gravosas para ele e para a sua família.

Nestas situações, quando a morte se anuncia iminente e inevitável, pode-se em consciência « renunciar a tratamentos que dariam somente um prolongamento precário e penoso da vida, sem,

131 PESSINI, Léo. Eutanásia. Por que abreviar a vida, p. 232.

132 CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Eutanásia e Ortotanásia, p. 36.

133 TRANSFERETTI, José. Sobre a Ortotanásia. Boletim Salesiano, n.1, p. 13, jan/fev.

contudo, interromper os cuidados normais devidos ao doente em casos semelhantes ». Há, sem dúvida, a obrigação moral de se tratar e procurar curar-se, mas essa obrigação há-de medir-se segundo as situações concretas, isto é, impõe-se avaliar se os meios terapêuticos à disposição são objectivamente proporcionados às perspectivas de melhoramento. A renúncia a meios extraordinários ou desproporcionados não equivale ao suicídio ou à eutanásia;

exprime, antes, a aceitação da condição humana defronte à morte.

Na medicina actual, têm adquirido particular importância os denominados « cuidados paliativos », destinados a tornar o sofrimento mais suportável na fase aguda da doença e assegurar ao mesmo tempo ao paciente um adequado acompanhamento humano.

Neste contexto, entre outros problemas, levanta-se o da licitude do recurso aos diversos tipos de analgésicos e sedativos para aliviar o doente da dor, quando isso comporta o risco de lhe abreviar a vida.

Ora, se pode realmente ser considerado digno de louvor quem voluntariamente aceita sofrer renunciando aos meios lenitivos da dor, para conservar a plena lucidez e, se crente, participar, de maneira consciente, na Paixão do Senhor, tal comportamento « heróico » não pode ser considerado obrigatório para todos. Já Pio XII afirmara que é lícito suprimir a dor por meio de narcóticos, mesmo com a consequência de limitar a consciência e abreviar a vida, « se não existem outros meios e se, naquelas circunstâncias, isso em nada impede o cumprimento de outros deveres religiosos e morais ». É que, neste caso, a morte não é querida ou procurada, embora por motivos razoáveis se corra o risco dela: pretende- -se simplesmente aliviar a dor de maneira eficaz, recorrendo aos analgésicos postos à disposição pela medicina. Contudo, « não se deve privar o moribundo da consciência de si mesmo, sem motivo grave »: quando se aproxima a morte, as pessoas devem estar em condições de poder satisfazer as suas obrigações morais e familiares, e devem sobretudo poder-se preparar com plena consciência para o encontro definitivo com Deus.Feitas estas distinções, em conformidade com o Magistério dos meus Predecessores e em comunhão com os Bispos da Igreja Católica, confirmo que a eutanásia é uma violação grave da Lei de Deus, enquanto morte deliberada moralmente inaceitável de uma pessoa humana. Tal doutrina está fundada sobre a lei natural e sobre a Palavra de Deus escrita, é transmitida pela Tradição da Igreja e ensinada pelo Magistério ordinário e universal. A eutanásia comporta, segundo as circunstâncias, a malícia própria do suicídio ou do homicídio134.

Tal aceitabilidade é confirmada porque o Papa Pio XII já nos ano de 1957 admitia a possibilidade de se evitar o intenso sofrimento da dor através de remédios, ainda que tal representasse uma limitação da consciência e até a abreviação da vida, quando não houvesse outros meios135.

134 Encíclica Evangelium vitae. Disponível em Ioannes Paulus PP. II http://www.clerus.org/clerus/dati/2009-03/10-13/Evangelium_vitae.html. acesso em 26. ag. 2009.

135 CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Eutanásia e Ortotanásia, p. 49.

A justificativa para a tolerância da ortotanásia junto ao catolicismo encontra explicação no fato de que nessa hipótese a morte não representava a intenção dos agentes, que sequer a procuraram, apenas admitiram a sua ocorrência com a mais que plausível justificativa de que estar-se-ía evitando um sofrimento desproporcional, pois já não há expectativa de manter a vida consciente do ser humano.

Bem explicando as razões pelas quais a ortotanásia é aceita pelo Catolicismo, Cabette citando Freire de Sá, explica que:

[…] a “tradição moral católica”, com ciência de um exato conceito de ortotanásia e eutanásia indireta, faz uma nítida “distinção entre matar e deixar morrer”. Essa distinção nem sempre é percebida pelos cultores da bioética moderna, os quais, inclusive como já demonstrado neste trabalho, freqüentemente confundem os conceitos de ortotanásia e eutanásia passiva. Já “para a doutrina católica, ‘matar’ significa a ação ou omissão que visa causar a morte”, enquanto “‘deixar morrer’ é considerar que a natureza seguirá seu curso, não empregando tratamento desnecessário em paciente terminal, no momento em que nada mais pode ser feito136.

Em tempos recentes, a Igreja Católica continua condenando as demais hipóteses de eutanásia (ressalvada a ortotanásia – como acima dito). O Papa Bento XVI igualmente condena a eutanásia, destacando que representa odiosa ofensa à dignidade da pessoa humana, como o é o homicídio. No entanto, seguindo a linha antes mencionada, faz ressalva à possibilidade de renúncia ao tratamento terapêutico inútil, doloroso e desproporcional em razão do estado de saúde da pessoa137.

De sua parte, a cultura oriental budista, entende ser eticamente aceitável a assistência ao suicídio, nos casos de morte iminente e se o ato for movido por compaixão, ou seja, se tiver como suporte a necessidade de se evitar um sofrimento prolongado e desarrazoado do paciente em fase terminal138.

136 CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Eutanásia e Ortotanásia, p. 84.

137 CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Eutanásia e Ortotanásia, p. 37.

138 SÁ, Maria de Fátima Freire de. Direito de morrer: eutanásia, suicídio assistido. 2 ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2005. p. 65.

Todavia, é certo que a lei japonesa penaliza o ato de auxílio ao suicídio de pessoas que não se encontrem em estado irreversível de doença e com intenso sofrimento, não sendo, pois, o caso de admitir-se a morte por questões de dignidade (songenshi)139.

Colhe-se dos ensinamentos históricos que o Código Samurai, no suicídio, incluía uma disposição para a eutanásia: o kaishakunin, era a figura do auxiliar para a fase suicida do Samurai após o corte do abdome, quando esse golpe, por si só, não era suficiente para provocar uma morte sem sofrimento. Competia ao kaishakunin, portanto, nessa hipótese de sofrimento em razão do suicídio, cortar-lhe o pescoço para evitar a intensa dor, aplicando-se o golpe derradeiro140.

Pode-se, então, por esse viés histórico oriental, equiparar o suicídio dos samurais, que ocorriam para evitar que caíssem em mãos de inimigos e experimentassem uma morte inevitável com duradouro e cruel período de sofrimento, situação que os desonrava, fazendo com que não mais se tornassem ativos e úteis para a sociedade como um todo. Essa equiparação se dá em razão da defensável tese de que a eutanásia também visa evitar uma morte que é iminente e que ocorrerá com intenso e desnecessário sofrimento ao ser humano.

Para os budistas, portanto, a diferença básica entre o suicídio e a eutanásia reside no fato do estado de consciência, porquanto, salvo tenha deixado texto expresso consentindo a morte, não há como se saber se o paciente admitia a antecipação da morte. No entanto, ficando claro que a consciência se dissociou permanentemente do corpo, o budismo não vê razão para continuar nutrindo ou estimulando o corpo, que não é mais uma pessoa141.

O islamismo, cuja tradução literal poderia representar

“submissão à vontade de deus” representa uma das grandes religiões mundiais que surgiu após o cristianismo (Maomé, 570-632 d.C.), calculando-se que seus

139 PESSINI, Léo. Eutanásia. Por que abreviar a vida, p. 235.

140 PESSINI, Léo. Eutanásia. Por que abreviar a vida, p. 235.

141 PESSINI, Léo. Eutanásia. Por que abreviar a vida, p. 229-230.

seguidores alcancem cerca de um bilhão de pessoas, ou seja, quase um quinto da humanidade142.

O pensamento islâmico sobre a eutanásia pode ser traduzido pelo Código Islâmico de Ética Médica, aprovado na 1ª Conferência Internacional de Medicina Islâmica em 1981, que discorre sobre o perfil do profissional médico, enfatizando a obrigatoriedade ética de proteger a vida, dom de Deus, em qualquer estágio ou circunstância.

Assim, para o mundo islâmico, cumpre ao médico resguardar a vida, defendendo-a com a maior habilidade técnica que possuir, não sendo admissível a eutanásia, ainda que movida por compaixão, diante de uma morte iminente, para o fim de evitar um sofrimento intenso.

Pessini, discorrendo sobre o pensamento do islamismo, destaca:

[...] Se é cientificamente certo que a vida não pode ser restaurada, então é uma futilidade manter o paciente em estado vegetativo utilizando-se de medidas heróicas de animação ou preservá-lo por congelamento ou outros métodos artificiais. O médico tem como objetivo manter o processo da vida e não o processo do morrer. Em qualquer caso, ele não tomará nenhuma medida para abreviar a vida do paciente. ...Em relação ao paciente incurável, o médico fará o melhor para cuidar da vida, prestará bons cuidados, apoio moral e procurará livrar o paciente da dor e da aflição143.

Portanto, para o mundo islâmico, tendo em conta a concepção sagrada da vida, e verificando-se como inexistente a autonomia do paciente ou de seus familiares, mesmo nos casos de doenças terminais e intenso sofrimento, a eutanásia é rejeitada, assim como o é o suicídio. Não são admitidas práticas para abreviar a vida, e se não for possível restaurá-la será inútil manter a pessoa em estado vegetativo através de medidas drásticas144.

142 PESSINI, Léo. Eutanásia. Por que abreviar a vida, p. 239.

143 PESSINI, Léo. Eutanásia. Por que abreviar a vida, p. 242.

144 PESSINI, Léo. Eutanásia. Por que abreviar a vida, p. 236.

Por sua vez, o judaísmo fundamenta seus ensinamentos em rigorosas regras morais de conduta para seus adeptos, fundadas em princípios tradicionais que sofreram, com o tempo, transformações do mundo moderno145.

De fato, a tradição hebraica condena e inadmite a eutanásia ativa, por ser igualmente ferrenha defensora do direito à vida. No entanto, sabe distinguir e igualmente reprova a prorrogação indefinida do sofrimento e da agonia do paciente já desenganado pela ciência médica, e cuja morte é apenas uma questão de tempo146.

Freire de Sá, citando a Dra. Elisabeth Kluber-Ross, destaca os ensinamentos do Rabino Immanuel Jakobovits, acerca do real entendimento do judaísmo sobre o tema morte e eutanásia:

A Le judaica autoriza, talvez até exija, o afastamento de qualquer fator estranho ao próprio paciente ou não – que possa artificialmente retardar sua partida na fase final. Pode-se argumentar que tal modificação implica a legalidade de apressar a morte de um doente incurável em agonia aguda retirando-lhe os medicamentos que lhe mantêm a continuidade da vida por meios artificiais – caso também considerado na filosofia moral católica. Nossas fontes apenas se referem a caos nos quais é esperada morte iminente; portando, não está completamente claro se tolerariam esta moderada forma de eutanásia – embora isto não possa ser excluído147.

Nesse sentido, prossegue a autora:

Cada caso deve ser julgado independentemente, levando em conta julgamentos de objetivos médicos e considerações subjetivas sobre as condições do paciente […]. A ciência e a tecnologia que produziu já não são ‘valor livre’, desobrigado de enfrentar dilemas morais e decisões que devem orientar sua aplicação prática à situação humana. Tais julgamentos devem ser feitos dentro da estrutura de um sistema de filosofia moral que veja não só a ética situacionista imediata como também a longa fila de ramificações. A tradição judaica tem examinado longamente os princípios subjacentes em tais questões148.

145 PESSINI, Léo. Eutanásia. Por que abreviar a vida, p. 243.

146 PESSINI, Léo. Eutanásia. Por que abreviar a vida, p. 235.

147 SÁ, Maria de Fátima Freire de. Direito de morrer: eutanásia, suicídio assistido, p. 64.

148 SÁ, Maria de Fátima Freire de. Direito de morrer: eutanásia, suicídio assistido, p. 64.

Admitem algumas, no entanto, a ortotanásia, que nada mais representa do que a proposta de por fim à agonia, deixando que o inevitável (a morte) ocorra com o menor dano possível ao doente.

Portanto, foi possível aferir, através desse rápido ensaio sobre o pensamento das principais religiões do mundo acerca do tema relacionado à morte humana e a possibilidade de ser ela antecipada nos casos de irreversibilidade da doença e do sofrimento exagerado que essa anomalia pode causar que a hipótese da eutanásia, notadamente a ativa, é por todas rejeitada.