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UMA BREVE EXPLANAÇÃO SOBRE O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA

Indiscutivelmente a dignidade representa um dos princípios norteadores de nosso sistema jurídico, balizador do Estado Democrático de Direito.

Segundo a doutrina de José Afonso Silva:

Dignidade da Pessoa Humana é um valor supremo que atraí o conteúdo de todos os direitos fundamentais do homem, desde o direito à vida, concebido como referência constitucional unificadora de todos os direitos fundamentais [observam Gomes, Canotilho e Vital Moreira], o conceito de dignidade da pessoa humana obriga a uma densificação valorativa que tenha em conta o seu amplo sentido normativo-constitucional e não uma qualquer idéia apriorística do homem, não podendo reduzir-se o sentido da Dignidade humana à defesa dos direitos pessoais tradicionais, esquecendo-a nos casos dos direitos sociais, ou invocá-la para construir teoria do núcleo da personalidade individual, ignorando quando se trate de garantir as bases da existência humana. Daí decorre que a ordem econômica há de ter por fim assegurar a todos existência digna (art. 270), a ordem social visará a realização da justiça social (art. 193), a educação, o desenvolvimento da pessoa e seu preparo para o exercício da cidadania (art. 250) etc, não como meros enunciados formais, mas como indicadores do conteúdo normativo eficaz da dignidade da pessoa humana150.

No entanto, a dignidade humana representa muito mais do que um princípio constitucional, pois impõe às esferas governamentais um dever de atuação para que sua previsão ultrapasse o abstratismo e alcance resultados aos destinatários, é saber, o próprio ser humano.

O filósofo Kant descreveu dignidade como algo em que não se poderia aferir qualquer preço, ou não pudesse ser trocado por algo semelhante. A dignidade humana para Kant reflete na lógica de ser a pessoa essencialmente moral151.

A qualidade da dignidade humana faz da pessoa um ser absolutamente integral, não sendo algo que se possa mensurar ou buscar equivalência, nem mesmo aferir se a de um indivíduo é superior a do outro.

150 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 17. ed. São Paulo: Malheiros, 2000. p. 109.

151 PESSINI, Léo. Eutanásia. Por que abreviar a vida, p. 144.

Definida em breve resumo a conceituação do princípio da dignidade da pessoa humana, torna-se necessário, em razão do tema do presente estudo dizer respeito ao direito à morte digna, correlacioná-lo ao próprio direito à vida, ou à obrigação do Estado de proteger esse bem jurídico, previsto no art. 5º, caput, da Carta Magna:

Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes.

À vida, como direito assegurado, corresponde o direito à qualidade desse “viver”, ou seja, um “viver” com dignidade. Ora, se um indivíduo alcança a amarga etapa de não mais experimentar o doce sabor de viver dignamente, porque não lhe resta mais forças, experimenta dor e sofrimento, e a ciência médica garante que não há expectativas de que a vida sobreviverá à doença, parece estar lançado o desafio no sentido de que não será digna a existência nessas condições152.

O que se lança para discutir, então, diz respeito à possibilidade de se garantir a dignidade ao ser humano naquele que é, possivelmente, o mais triste momento de sua vida. No entanto, como visto, a dignidade é atributo inerente, inalienável e incondicional do ser humano, devendo ser preservada em todos, sem exceção, em todos os momentos em que ainda existir vida.

Renato Lima Charnaux Sertã, exemplifica, citando um caso ocorrido na justiça Norte Americana, sobre a hipótese de aplicação do princípio da dignidade da pessoa humana, por ocasião da hipótese de eutanásia.

[…] Parece-nos a esta altura que sem que se necessite tomar partido definitivo em prol da legalização ou não da eutanásia, deve-se na realidade brasileira, utilizar os valores existentes na sociedade e os

152 PESSINI, Léo. Eutanásia. Por que abreviar a vida, p. 244.

princípios abrigados pelo nosso ordenamento jurídico para resolver a aflitiva questão da distanásia153.

“Dúvida não resta de que o nosso Direito proíbe a eutanásia, seja na capitulação como crime das práticas que retiram a vida de alguém, seja ainda, pelo Código de Ética Médica que, em seu artigo 66 especialmente a reprime.

“O que dizer, entrementes, quanto à distanásia?

“É de se observar que os valores acima referidos que defendem a vida humana permeiam a nossa cultura, mas ao mesmo tempo o Estado interfere na vida privada dos cidadãos em prol de interesses públicos. Se é verdade que a liberdade do ser humano é respeitada, não é menos verdade que outros valores de ordem pública são consagrados.

“Parece-nos que, em um contexto que proíbe a eutanásia, devemos preservar a vida tanto quanto possível.

“Em contrapartida, no desempenho desta preservação deve estar sempre presente a observância da dignidade da pessoa humana, como valor fundamental insculpido na Constituição de 1988.

“A propósito, portanto, dever-se-ia perguntar: seria digno manter uma paciente como Nancy Cruzan por cerca de sete anos, vivendo vegetativamente.

“Teria havido observância do princípio da proporcionalidade, que deve sempre vir de mãos dadas com o da dignidade?

“Cabe aqui recordar que o princípio da proporcionalidade, consoante já assinalado por Daniel Sarmento, compreende três vertentes, a saber, a adequação, a necessidade e a proporcionalidade em sentido estrito.

“A decisão sobre os procedimentos terapêuticos destinados a manter o suporte artificial da vida de um paciente nas condições de Nancy Cruzan passará necessariamente por saber se, mesmo tendo em

153 CHARNAUX, Renato Lima. A distanásia e a dignidade do paciente, p. 133.

mente a prevalência do princípio da dignidade, estariam presentes os elementos da proporcionalidade.

“Vale dizer, além de se avaliar se o tratamento ministrado responde eficazmente ao que dele se espera (adequação), deve-se verificar se as conseqüências do tratamento serão as menos gravosas possíveis, seja para o enfermo, seja para sua família ou agregados (necessidade). E ainda, há de se indagar se o benefício trazido com o tratamento será maior que o ônus imposto por ele (proporcionalidade em sentido estrito).

Interessante notar que o caminho para se responder a essas questões, sobretudo à última – que perquire sobre a proporcionalidade em sentido estrito – percorrerá necessariamente as sendas do reconhecimento do que sejam os interesses fundamentais do homem”154.

O tema relacionado à licitude das escolhas médicas, e dos entes próximos ao paciente em estado terminal, que experimenta considerável sofrimento diante da doença, provoca como já visto neste trabalho, intenso e atual debate.

Aliás, a atualidade dessa discussão relacionada à eutanásia e o princípio da dignidade da pessoa humana, é bem ressaltado por Maria Helena Diniz:

No século XXI é imprescindível que o legislador, o aplicador do direito e o jurista reflitam sobre esses tormentosos problemas, ante o seu conteúdo altamente axiológico, sem olvidarem que a dignidade da pessoa humana é o valor fonte legitimador de todo ordenamento jurídico. A consciência jurídica atual, diante da indiferença de um mundo tecnicista e insensível, precisa ficar atenta à maior de todas as conquistas: o respeito absoluto e irrestrito pela dignidade humana, que passa a ser um compromisso inafastável e um dos desafios para o século XXI155.

Todavia, não se desconhece que a base de sustentação da teoria que admite a prática da eutanásia médica, seja a ativa, seja a própria ortotanásia, passa, como já destacado, pela fundamentação da dignidade da pessoa

154 CHARNAUX, Renato Lima. A distanásia e a dignidade do paciente, p. 133-134.

155 DINIZ, Maria Helena. O estado atual do biodireito. 4.ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 336.

humana, como elemento maior a justificar a prática de ato que, em tese, atentaria contra o maior e mais protegido dos bens jurídicos: a vida.

Evidentemente em casos de sofrimento humano decorrente de doença atestada como incurável, não se sacrificará uma vida humana por desapego a princípios de humanidade, ao contrário, serão estes princípios de valorização da pessoa humana, esta como ente destinatário principal de todo o ordenamento jurídico e social, que darão suporte à ação.

Em paralelo ao princípio maior da dignidade da pessoa humana, atuam igualmente os princípios da bioética e do biodireito, além de outros, previstos na Constituição Federal, balizados pela ponderação, proporcionalidade e razoabilidade, serão observados por ocasião da atuação médica na eutanásia156.

No campo do biodireito, em especial quando nos defrontarmos com a hipótese da distanásia, que como já fundamentado afronta a dignidade do ser humano, tem-se que o princípio da dignidade humana funcionará, em sua eficácia negativa, como impeditivo de atos que contra ele atentem.

É certo que o princípio da dignidade humana compõe o conjunto não disponível dos direitos da pessoa humana. Competirá, pois, ao intérprete e aplicador, no caso em estudo, aos que se envolverem no caso da necessidade de prática da eutanásia, identificar onde e em que parte se encontra a dignidade do doente terminal, para que possa esse patrimônio ser preservado.

Para esse resgate e efetiva aplicabilidade do princípio da dignidade, deve-se verificar se o aludido princípio tem relação com o que se denomina como mínimo existencial, ou seja, aquilo que o ser humano necessita, e do qual não pode abrir mão, para não se colocar em situação degradante, em situação que avilte por demais a sua própria existência.

Dessa forma, e porque sabidamente o Direito tem como meta sempre estar em sintonia com a permanente evolução social, e sem que tal represente afronta ao direito à vida, ou mesmo à integridade física, há que se estabelecer uma séria discussão a respeito da garantia da dignidade ao ser humano

156 CHARNAUX, Renato Lima. A distanásia e a dignidade do paciente, p. 134.

no momento de sua morte, propiciando-lhe, ou aos seus entes queridos, dentro de critérios estabelecidos por lei, condições de decidir sobre a continuidade da vida, quando vida mesmo já se sabe não mais existirá.

3.2 A TIPICIDADE DO CRIME DE HOMICÍDIO NA CONDUTA MÉDICA NA