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DIREITO À VIDA – CONCEITO DE MORTE CLÍNICA

Para definir o conceito, extrai-se de Cabette, citando Hélio Gomes:

[…] A dificuldade ou impossibilidade de definir a vida existe também no tocante à definição da morte, com a agravante de que a respeito desta o ministério é maior. Dizem, por exemplo, que a morte é o contrário da vida; é a cessação da vida; é a passagem dum estado de equilíbrio instável para o de um equilíbrio instável. Os conceitos, também, não satisfazem. As definições de morte são por igual ininteligíveis, embora ela esteja constantemente a nosso lado, invisível, sem dúvida, mas presente, à espreita, à espera95.

Ainda dos ensinamentos de Cabette, citando Marrey Neto, a melhor conceituação de morte seria da lavra de Hilário Veiga de Carvalho, que a define como:

[...] desintegração irreversível da personalidade em seus aspectos fundamentais morfofisiológicos, fazendo cessar a unidade biopsicológica como um todo funcional e orgânico, definidor daquela personalidade que assim se extinguiu96.

Não apenas pertinente, mas porque não dizer essencial ao estudo da hipótese de revisão da responsabilização penal do profissional médico frente à eutanásia no direito vigente, tem-se como necessário que se estabeleça critérios para a definição não apenas do conceito, mas também do momento em que se pode diagnosticar a morte como fato ocorrido.

Nesse sentido, colhe-se da história que na Grécia a morte era verificada pela paralisação dos batimentos cardíacos.

Pessini, citando Christoph, enaltece esse momento da história onde se concebia a morte como o momento da parada cardíaca:

Não constituía problema para o médico, até agora, constatar a morte duma pessoa: o fim da vida coincidia com a derradeira pulsação cardíaca. A morte sucedida quando o coração parava de bater. Para dizer que alguém tinha morrido, o médico ou perito legista baseava- se, além de na cessação das manifestações de vida clinicamente perceptíveis – respiração, circulação – nos “inconfundíveis sinais da

95 CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Eutanásia e Ortotanásia, p. 99.

96 CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Eutanásia e Ortotanásia, p. 99.

morte”, manifestados horas após – rigidez letal, esfriamento do corpo e manchas cadavéricas – que valiam como prova de que sucedera a morte (CHRISTOPH, 19674, P. 450) 97.

Posteriormente, os judeus-cristãos passaram a apontar o momento da morte como aquele em que cessarem as atividades pulmonares. Assim, da conjugação desses dois critérios passou-se a adotar a posição de que a morte clínica ocorreria, então, quando houvesse ao mesmo tempo a paralisação das atividades cardíacas e respiratória98.

Todavia, em tempos mais recentes, é dizer, no século XVII, em 1799, explica Cabette que surgiu o primeiro conceito científico de morte, de autoria de Fraçóis Xavier Bichat, fundador da anatomia geral e da histologia, o qual expressou que "[...] a morte é um processo cronológico que leva a uma catástrofe fisiológica"99.

Segundo Cabette, ainda que tenha destacado que nessa época da história o diagnóstico de morte levava em conta a paralisação das funções circulatória e respiratória, dos estudos de Bichat surgiu a denominada "Trípode de Bichat", de acordo com a qual "as funções vitais do organismo estão sustentadas pelo coração, pulmão e cérebro". 100

A história apurada na doutrina aponta um evento que em muito contribuiu para a evolução do conceito de morte, a fim de que deixasse de levar em conta apenas o término dos batimentos cardíaco, para definir-se como a paralisação das atividades do cérebro. É que em 1564, em Madri, quando o médico anatomista Versalius realizava uma necropsia à frente de muitas pessoas que o assistiam, todos ficaram assombrados ao verificarem que na abertura do tórax o coração ainda pulsava com vigor101.

97 PESSINI, Léo. Eutanásia. Por que abreviar a vida, p. 51.

98 PESSINI, Léo. Eutanásia. Por que abreviar a vida, p. 51.

99 CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Eutanásia e Ortotanásia, p. 100.

100 CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Eutanásia e Ortotanásia, p. 100.

101 CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Eutanásia e Ortotanásia, p. 105.

Nesse sentido, Pessini, citando M. de Almeida explica que:

A definição legal e médica de morte mudou recentemente da cessação da função cardiorrespiratória para a chamada morte cerebral. Pacientes que tiveram perda irreversível da função cerebral, mas que continuam a respirar, teriam de ser considerados vivos sob a prévia definição legal e médica. Agora eles são declarados mortos.

Embora as alteração estejam sancionadas por autoridades liderantes da Medicina e do Direito, prosseguem em clima de certa confusão, sintomas do que foi recentemente estabelecido por um juiz nos Estados Unidos: “esta senhora está morta, estava morta e está sendo mantida viva artificialmente”. Em parte essa confusão é comumente o resultado da incompreensão dos juízes e do público em geral acerca do que aquelas autoridades, que propõem a redefinição têm em mente (ALMEIDA, 1988, p. 42)102.

Hodiernamente, a quase totalidade das legislações reconhece juridicamente a morte quando cessada por completo a atividade neurológica do cérebro.

Cabette menciona, citando Marre Neto, que:

[…] os Estados norte-americanos de Ilinois, Montana e Tennessee adotaram a seguinte definição de morrer (…): Para todos os propósitos legais, um corpo humano, com irreversível cessação das funções cerebrais, apurada de acordo com os padrões costumeiros e usuais da prática médica, será considerado morto103.

Ainda das palavras de Cabette, colhe-se que: "[…]a doutrina espanhola reconhece a "morte encefálica" como definidora do momento da morte, conforme expuseram Arroyo Urita e outros nas XI Jornadas Médico-Forense Espanhola[…]"104.

A legislação brasileira segue no mesmo sentido, reconhecendo como o momento da morte, para os efeitos jurídicos, aquele em que se verificar a morte encefálica. Nesse sentido, estabelece a Lei n. 9.434/97 (Lei dos

102 PESSINI, Léo. Eutanásia. Por que abreviar a vida, p. 52.

103 CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Eutanásia e Ortotanásia, p. 99.

104 CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Eutanásia e Ortotanásia, p. 101.

Transplantes), com a redação que lhe foi dada pela Lei n. 10.211 de 2001, em seu art. 3º, § 1º:

Art. 3°. A retirada post mortem de tecidos, órgãos ou partes do corpo humano destinados a transplante ou tratamento deverá ser precedida de diagnóstico de morte encefálica, constatada e registrada por dois médicos não participantes das equipes de remoção e transplante, mediante a utilização de critérios clínicos e tecnológicos definidos por resolução do Conselho Federal de Medicina.

§ 1° Os prontuários médicos, contendo os resultados ou os laudos dos exames referentes aos diagnósticos de morte encefálica e cópias dos documentos de que tratam os arts. 2°, parágrafo único; 4° e seus parágrafos; 5°; 7°; 9°, §§ 2°, 4°, 6° e 8°; e 10, quando couber, e detalhando os atos cirúrgicos relativos aos transplantes e enxertos, serão mantidos nos arquivos das instituições referidas no art. 2° por um período mínimo de cinco anos.

O Conselho Federal de Medicina, através da resolução n.

1.480/97 de 8 de agosto de 1997, define os critérios para a definição de morte encefálica. Na exposição de motivos é dito:

Considerando que a parada total e irreversível das funções encefálicas equivale à morte, conforme critérios já bem estabelecidos

pela comunidade científica mundial;

Considerando o ônus psicológico e material causado pelo prolongamento do uso de recursos extraordinários para o suporte de funções vegetativas em pacientes com parada total e irreversível da

atividade encefálica;

Considerando a necessidade de judiciosa indicação para interrupção

do emprego desses recursos;

Considerando a necessidade da adoção de critérios para constatar, de modo indiscutível, a ocorrência de morte;

Considerando que ainda não há consenso sobre a aplicabilidade desses critérios em crianças menores de 7 dias e prematuros,

RESOLVE:

Art. 1º. A morte encefálica será caracterizada através da realização de exames clínicos e complementares durante intervalos de tempo variáveis, próprios para determinadas faixas etárias.

Art. 2º. Os dados clínicos e complementares observados quando da caracterização da morte encefálica deverão ser registrados no "termo de declaração de morte encefálica" anexo a esta Resolução.

Parágrafo único. As instituições hospitalares poderão fazer acréscimos ao presente termo, que deverão ser aprovados pelos Conselhos Regionais de Medicina da sua jurisdição, sendo vedada a

supressão de qualquer de seus itens.

Art. 3º. A morte encefálica deverá ser conseqüência de processo irreversível e de causa conhecida.

Art. 4º. Os parâmetros clínicos a serem observados para constatação de morte encefálica são: coma aperceptivo com ausência de atividade motora supra-espinal e apnéia.

Art. 5º. Os intervalos mínimos entre as duas avaliações clínicas necessárias para a caracterização da morte encefálica serão definidos por faixa etária, conforme abaixo especificado: a) de 7 dias a 2 meses incompletos – 48 horas b) de 2 meses a 1 ano incompleto - horas c) de 1 ano a 2 anos incompletos – 12 horas d)

acima de 2 anos – 6 horas;

Art. 6º. Os exames complementares a serem observados para constatação de morte encefálica deverão demonstrar de forma inequívoca: a) ausência de atividade elétrica cerebral ou, b) ausência de atividade metabólica cerebral ou, c) ausência de perfusão sangüínea cerebral105.

A jurisprudência da mais alta Corte de Justiça do Brasil igualmente já se posicionou a respeito, como se observa do voto do Ministro Ayres Britto, em seu voto na ADin. 3.510-0/DF.

[…]a vida tão-só é irreversivelmente assegurada por aparelhos já não cona, porque definitivamente apartada das pessoas a que pertencia (a pessoa já se foi, juridicamente, enquanto a vida exclusivamente induzida teima em ficar)". E arremata, afirmando que "a vida humana já rematadamente adornada com o atributo da personalidade civil é o fenômeno eu transcorre entre o nascimento com vida e a morte cerebral". 106

Da lição de Maria Helena Diniz, quando comenta o momento da morte para fins de transplante de órgãos, destaca-se:

A noção comum de morte tem sido a ocorrência de parada cardíaca prolongada e a ausência de respiração, ou seja, a cessação total e permanente das funções vitais, mas, para efeito de transplante, tem a lei considerado a morte encefálica, mesmo que os demais órgãos estejam em pleno funcionamento, ainda que ativados por drogas.

Assim sendo, não se aguarda a parada cardiorrespiratória e a conseqüente autólise dos órgãos, bastando a ocorrência de dano encefálico de natureza irreversível que impeça a manutenção das funções vitais, devendo empregar-se aos recursos de terapia

105 Conselho Federal de Medicina, 1997.

106 DINIZ, Maria Helena. O estado atual do biodireito, p. 296.

intensiva para garantir a perfusão dos demais órgãos durante um período que possibilite sua utilização em transfusão107.

Prossegue a autora:

Como se vê não é tarefa fácil diagnosticar a morte encefálica ou neurológica, que vem a ser a abolição total e definitiva das atividades do encéfalo, de que dependem, fundamentalmente, todas as demais funções orgânicas. Com a morte das células do sistema nervoso central, das funções vitais, a única que pode permanecer é o batimento cardíaco, porque o coração tem um sistema de controle independente daquele. Será imprescindível sua constatação, mediante critérios científico técnico rigorosos, por médicos especializados e do mais elevado sentido ético108.

Assim, é certo que essa evolução histórica do conceito do momento morte leva em conta, especialmente, a necessidade de se estabelecer com segurança essa ocorrência, notadamente o momento em que ela se torna irreversível por verificação médica inconteste.

Daí que um dos grandes entraves éticos e jurídicos surge quando se verifica a possibilidade do doente diagnosticado com morte encefálica ter sua vida sustentada artificialmente por longo e talvez até indefinido período.

Assim, indaga-se se ocorreria ou não a eutanásia (ativa, passiva ou ortotanásica), caso se desligassem todos os aparelhos que possibilitavam a manutenção artificial dessa vida nessas circunstâncias, repete-se porque essencial: quando já verificada a morte encefálica109.

Segundo Cabette, em hipóteses tais nem mesmo eutanásia se verificaria:

[…] Trata-se de um caso em que o paciente já morreu por causas naturais e apenas se processa a retirada de um cadáver da conexão com os aparelhos que lhe dariam sustentação se estivesse vivo. Sob o prisma criminal, aventando-se eventual acusação de eutanásia,

107 DINIZ, Maria Helena. O estado atual do biodireito, p. 296.

108 DINIZ, Maria Helena. O estado atual do biodireito, p. 297.

109 CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Eutanásia e Ortotanásia, p. 101.

configurar-se-ia a moldura do chamado "crime impossível", de acordo com o disposto no art. 17, CP […]110.

Cabette mencionando Genival Veloso de França afirma:

[…] que tal conduta "nada tem a ver com eutanásia", não se devendo confundir esta última "com a suspensão dos meios artificiais que mantêm precariamente ligado à vida um indivíduo com parada total e irreversível de suas funções encefálicas, pois nesses casos, ele já estaria morto111.

E complementa:

[…] Ultimamente, já se vem notando uma tendência da sociedade em aceitar a suspensão do tratamento fútil ou dos meios artificiais de vida, ante uma morte encefálica corretamente confirmada. Parte dessa sociedade já passa a entender que, nas situações de irreversibilidade de consciência e de outras funções superiores, e quando essa vida se mantém de forma considerada artificial, o indivíduo teria o direito de morrer com dignidade112.

Pontifica o autor Ricardo Barbosa Alves:

[…] E, uma vez constatada a morte através desses critérios, ainda que mantida a pessoa com o coração, pulmões, sistema digestivo e urinário em funcionamento, o desligamento dos aparelhos não implica eutanásia, porque a vida já não mais existe sob o aspecto clínico – e, em conseqüência, sob o prisma legal. E, assim sendo, não se pode chamar de eutanásia passiva ou ortotanásia a interrupção de recursos artificiais capazes de manter outros órgãos vitais em funcionamento […]113.

Portanto, apurou-se que o bem jurídico vida encontra inegável proteção jurídica, em âmbito constitucional e que a definição científica do momento da morte é efetivamente importante para a discussão da responsabilização penal da eutanásia.

110 CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Eutanásia e Ortotanásia, p. 102.

111 CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Eutanásia e Ortotanásia, p. 102.

112 CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Eutanásia e Ortotanásia, p. 102.

113 ALVES, Ricardo Barbosa. Eutanásia , Bioética e Vidas Sucessivas, p. 243.