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usuário, não se pode admitir que esse direito de prestar recomendações possa ser exercido de forma abusiva732. Judith Martins-Costa, ao tratar de situações mais generalistas, apresenta justamente esse raciocínio:

Acentua-se, acerca do fundamento e do regime dessa forma de ilicitude, as peculiaridades do Direito brasileiro que supera a clivagem entre ilicitude civil e rejeição ao abuso de direito ao consagrar expressamente no art. 187 do Código Civil a figura da ilicitude no modo de exercício de direitos. Esta apanha o exercício abusivo entendendo-se abrangidos por essa expressão ao abuso, o exercício desmedido, o desviado do fim lícito e o disfuncional. Se de um lado tal exercício resulta dano, incide a regra do art. 927, que consagra o dever de indenizar e remete expressamente ao art. 187. No sistema brasileiro pois, o exercício disfuncional dos direitos e posições jurídicas e a violação culposa de direito alheio são equiparados na qualificação (ambos constituem casos de ilicitude civil) e no que se refere à principal consequência ensejada: havendo dano e nexo causal, ambos conduzem à obrigação de reparar, nos termos do art. 927, caput, do Código Civil.733

Entretanto, apesar da complexidade envolvendo a função corretora, tal tarefa não se mostra impossível, pois, como Menezes Cordeiro bem aponta, à medida que situações envolvendo o exercício inadmissível de posições jurídicas se repitam, os casos ganharam escala ao ponto de serem agrupados e ordenados em tipos, em decorrência de uma ordem imanente que a todos toca (a boa-fé)735.

Verificando-se a primeira vertente da função corretora, por mais que a tecnologia de inteligência artificial permita que uma máquina substitua uma tarefa humana, o ordenamento jurídico brasileiro não se estruturou (ainda) para considerar que um algoritmo (mesmo dotado de inteligência artificial) seja tratado como um sujeito de direito e, portanto, tenha capacidade de exercer direitos, faculdades, pretensões, ações, exceções e ônus.

Contudo, há de se admitir que, ao mesmo tempo que há essa carência no ordenamento jurídico, é um fato social que uma pessoa (sujeito de direito) poderia delegar ao algoritmo poderes para instruir como o usuário do algoritmo deve exercer seus direitos, faculdades, pretensões, ações, exceções e ônus.

Por óbvio que, em relação a eventuais prejuízos causados a terceiros devido ao modo de exercício praticado pelo usuário, segundo as orientações da I.A., nas relações jurídicas fim, o ordenamento jurídico poderia responsabilizar o usuário e redirecionar sua conduta na relação jurídica fim. Entretanto, como já expressado inúmeras vezes nessa pesquisa, tal circunstância não poderia isentar o titular do algoritmo de responsabilidade pela maneira que sua tecnologia de inteligência artificial direciona as condutas do usuário.

Responsabilidade esta que tanto o usuário teria legitimidade para perseguir, em direito de regresso devido à sua responsabilidade na relação jurídica fim, mas também diretamente por ser um dos polos da relação jurídica meio. Em outras palavras, o titular do algoritmo com tecnologia de inteligência artificial não pode se isentar de sua responsabilidade nas situações em que seu algoritmo age em violação à função corretora da boa-fé736, sendo a “conduta” do algoritmo tratada como substituta de sua própria conduta.

Já a respeito da segunda vertente da função corretora da boa-fé, a princípio pode parecer que sua aplicação não apresentaria maiores peculiaridades porque bastaria utilizar os critérios já pré-estabelecidos na doutrina, lei e jurisprudência para ajustar o conteúdo do

735 MENEZES CORDEIRO, António Manuel da Rocha e. Da Boa-fé no Direito Civil. volume único. Coimbra:

Almedina, 2015, p. 1.194.

736“[...] pode ocorrer que o responsável por uma informação, conselho ou recomendação exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé e pelos bons costumes, agindo de forma desleal e desonesta e causando danos a outrem, o que consubstancia o exercício abusivo do direito, caracterizado pela afronta aos limites impostos pela boa-fé e pelos bons costumes, assim como àqueles fixados pela finalidade social ou econômica dos direitos.”

(AGUIRRE, João Ricardo Brandão. Responsabilidade e informação: Efeitos jurídicos das informações, conselhos e recomendações entre particulares. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 83-84).

contrato tanto na relação jurídica meio, como também na relação jurídica fim. Todavia, não se pode deixar de mencionar que a falta de transparência acerca do funcionamento do algoritmo ou até mesmo a falta de conhecimento por parte do titular da I.A. sobre esse funcionamento representa um grave problema no conteúdo da relação jurídica meio.

Denote-se que, se a tecnologia do algoritmo for de código aberto (open source), a função corretora da boa-fé, em tese, poderia identificar tecnicamente eventuais comandos em sua programação que ultrapassariam limites à autonomia da vontade traçados pelo ordenamento jurídico (inclusive pelo conteúdo do contrato da relação jurídica meio) e que poderiam ensejar a invalidade da relação jurídica firmada entre o usuário e o titular da tecnologia de inteligência artificial. Todavia, na maior parte dos casos, a programação do algoritmo com tecnologia de inteligência artificial é de código fechado, fato que, por si só, restringe o alcance da função corretora da boa-fé e que, portanto, pode servir de estímulo para que o titular do algoritmo não se preocupe em tomar as devidas precauções para que a programação do código do algoritmo se adeque a limites impostos pelo ordenamento jurídico brasileiro, principalmente se tal adequação implicar no aumento dos custos de transação e potencialmente diminuir a eficiência do algoritmo.

Ademais, acrescente-se que, em ambas as vertentes da função corretora, não se pode admitir que uma relação jurídica entre desiguais, como é o caso, regra geral, na relação entre o usuário e o titular do algoritmo, se torne uma relação de impositividade unilateralmente determinada737738. Isto é, a liberdade de decisão do usuário, pelo menos enquanto a palavra final acerca da manifestação de sua vontade, não pode ser excluída para que o algoritmo regule com poder absoluto a relação jurídica meio e o direcionamento das condutas do usuário na relação jurídica fim. Dessa forma, o papel da função corretora da boa- fé poderá ter atuação tanto no plano da eficácia jurídica, como também no plano da validade do conteúdo da relação, adequando-a a padrões predeterminados de justiça contratual739740.

737MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: critérios para a sua aplicação. São Paulo:

Saraiva, 2018, p. 629.

738 Em complemento, Aguirre aponta que um dos fatores de abusividade é justamente a unilateralidade de direitos impostos pela parte mais forte na relação em face da outra, compelindo a parte mais fraca a aceitar condições abusivas que violam a eticididade e o solidarismo esperados na relação jurídica (AGUIRRE, João Ricardo Brandão. Responsabilidade e informação: Efeitos jurídicos das informações, conselhos e recomendações entre particulares. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 83).

739MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: critérios para a sua aplicação. São Paulo:

Saraiva, 2018, p. 630.

740Acerca do plano da validade, destaque-se que Marcos Bernardes de Mello reconhece que a violação à boa-fé pode ensejar a invalidade de um negócio jurídico: “Embora tenha como fundamento de nulidade a ofensa aos bons costumes e à ordem pública, o Código Civil foi omisso quanto a explicitar a má-fé como causa de invalidade dos negócios jurídicos. Não obstante esse silêncio, não nos parece ser possível interpretá-lo como uma recusa explícita do legislador civil à natureza de pressuposto de validade da boa-fé. Segundo esse

Sobre a necessidade de ajustamento do conteúdo da relação jurídica por conta da violação da boa-fé, a verificação deve ser se alguma regra presente no conteúdo da relação infringe o conteúdo (iuscogens) de regra jurídica cogente presente no ordenamento jurídico741 ou representa violação a um dever anexo que integra o conteúdo da relação. No caso de violação do iuscogens, haverá, via de regra, nulidade por força do art. 166, VI, do Código Civil, se outra sanção ou norma mais específica não estiver prevista no ordenamento742, a exemplo do art. 51 do Código de Defesa do Consumidor ou do art. 424 do Código Civil. Já um conteúdo contrário a um dever anexo que integra a relação, interfere apenas no campo da eficácia da relação e gerará o dever indenizatório pela parte infratora.

Trata-se de controle de abusividade contratual, cabendo à função corretora da boa- fé identificar e afastar da relação jurídicas as cláusulas consideradas abusivas porque seu conteúdo “ultrapassa aquilo que constitui, segundo a ordem jurídica, o padrão mínimo do equilíbrio entre as posições contratuais”743744:

A lógica interventiva aí subjacente é diversa daquela que visa parificar posições de desigualdade estrutural dos contraentes ou futuros contraentes no exercício de direitos. O alvo é o conteúdo do acordado e não o processo formativo que o pôs em vigor ou a conduta das partes no desenrolar da relação jurídica contratual.745

Já o controle do modo de exercício dos direitos e posições jurídicas se mostra mais complicado porque, mesmo considerando apenas a atuação humana, sempre foi impossível apreender, por conta da fixidez das regras legisladas, todas as variações de atuação

entendimento, a má-fé de figurante na formação de negócio jurídico deve ser considerada causa de anulabilidade, considerando-se que a vontade do outro figurante, vítima da má-fé, formou-se defeituosamente.” (MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do Fato Jurídico: plano da validade. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 124-125.)

741MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: critérios para a sua aplicação. São Paulo:

Saraiva, 2018, p. 634.

742MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: critérios para a sua aplicação. São Paulo:

Saraiva, 2018, p. 633.

743MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: critérios para a sua aplicação. São Paulo:

Saraiva, 2018, p. 637.

744RonniePreuss Duarte explica que o reconhecimento da abusividade se configura como uma limitação intrínseca ao seu exercício, intrínseca por se tratar de uma limitação imanente ao conteúdo do próprio direito, que não pode desviar da sua finalidade específica, composta de acordo com a sua função econômico-social (DUARTE, RonniePreuss. Boa-fé e Abuso de Direito no Novo Código Civil Brasileiro. Revista Direito- Mackenzie. São Paulo, ano 04, n. 02., 2003, p. 173).

745MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: critérios para a sua aplicação. São Paulo:

Saraiva, 2018, p. 638.

concreta do conteúdo das normas746. Torna-se papel da jurisprudência desenvolver, a partir dos standards comportamentais da relação jurídica, uma moldura do que seria o correto modo de exercício do direito e posições jurídicas em determinada relação jurídica747.

Sobre este ponto, se já é difícil para a jurisprudência acompanhar todas as variáveis que o ser humano é capaz de implementar acerca do exercício de seus direitos e posições jurídicas, imagine-se como essas possibilidades de atuação aumentam exponencialmente com o uso de algoritmos com capacidade de processar variáveis a um nível muito superior ao da capacidade humana por conta do machinelearning e do Big Data. A preocupação aqui a ser levantada é sobre a necessidade da própria doutrina e jurisprudência admitirem logo que o controle do modo de exercício dos direitos e posições jurídicas não pode mais ser feito tão somente sobre o comportamento do usuário na relação jurídica fim, mas deve ser encarado também sobre a forma que o algoritmo atua para fornecer recomendações e orientações ao seu usuário.

De toda forma, o controle do modo de exercício dos direitos e posições jurídicas tem por fundamento o art. 187 do Código Civil748 porque sua norma, por extensão, também abarca a ilicitude no modo de exercício de posições jurídico subjetivas749:

Mas o art. 187 – que trata, efetivamente, da ilicitude no modo de exercício do direito – não se limita à figura do abuso, não requer a intenção emulativa e abarca (i) o exercício contraditório, quando desleal; (ii) o exercício disfuncional (pois divorciado da função atribuída ao direito subjetivo, potestativo ou faculdade); e (iii) o exercício desmesurado ou desmedido de direito subjetivo, potestativo ou faculdade. É apenas nesse último sentido

746MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: critérios para a sua aplicação. São Paulo:

Saraiva, 2018, p. 666.

747Angelo Junqueira Guersoni aduz que não se trata de situação relacionada ao plano psicológico das partes na relação jurídica, mas sim em comportamento que desvia da finalidade presente na relação, através de padrão comportamental que diverge da eticidade esperada pela contraparte (GUERSONI, Angelo Junqueira. Boa-fé Objetiva no Direito Contratual do Código Civil Brasileiro.Curitiba: Universidade Federal do Paraná, 2006, Dissertação de mestrado, p. 101)

748Acerca do dispositivo legal, Pedro Modenesi expõe que o art. 187 do Código Civil funciona como elo entre a verificação do abuso de direito com fundamento na boa-fé objetiva, com especial destaque para a seara contratual, que o abuso “passa a ser definido pela contrariedade à boa-fé e, mais especificamente, à confiança e à justiça contratuais”(MODENESI, Pedro. A Relação entre o Abuso do Direito e a Boa-fé Objetiva. Revista Direitos Fundamentais & Democracia. Curitiba, v.07, n. 7: jan-jun., 2010, p. 350). Em complemento, Sylvio Capanema afirma que: “Não basta, portanto, aferir se o direito é legítimo, mas também o modo de estar sendo ele exercido pelo seu titular, sem o que se tornaria inócua a regra do artigo 187, rompendo-se a íntima ligação que existe hoje entre a ética e o direito” (CAPANEMA, Sylvio. A nova ordem jurídica e os paradigmas da função social do direito e da boa-fé objetiva e suas figuras parcelares. Revista do Ministério Público. Rio de Janeiro: MPRJ, n. 47, jan./mar. 2013, p. 263).

749MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: critérios para a sua aplicação. São Paulo:

Saraiva, 2018, p. 669-670.

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