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entretanto, ao próprio ordenamento verificar as situações em que não seria possível a delegação do processo decisório para a inteligência artificial, bem como limites objetivos que, se ultrapassados, violariam valores presentes no próprio ordenamento e, por fim, casos em que haveria uma indevida substituição da vontade do usuário pelos interesses do titular da inteligência artificial ou de quem o contratou.

3.8 As transformações das relações jurídicas de Direito Privadona sociedade contemporânea

porque a interpretação da lei precisa se adaptar às condições sociais447 e também que a vontade abstrata dos indivíduos também não estão livres de limitações ou restrições impostas não só pela lei, como também por novos fatos sociais448.

Assim, chega-se também a uma das principais conclusões da presente pesquisa: o intenso uso de algoritmos de inteligência artificial para impactar os processos de declaração de vontade nada mais são do que fatos sociais cognocíveis. Por óbvio que a autonomia privada e a teoria da vontade não foram estruturadas levando esse fator da tecnologia em consideração, mas cabe à doutrina apresentar uma releitura da dogmática jurídica considerando a interferência algorítmica nas relações de Direito Privado.

Para tal reconstrução ser possível, é necessário que a doutrina admita, desde já, que a autonomia privada e o dogma da vontade representam muito mais do que um fenômeno de acordo de vontades entre as partes ao qual a lei atribui valor de fonte de relação com obrigações e responsabilidades recíprocas. Representam um complexo de circunstâncias e comportamentos que é produto do contato social entre os sujeitos de direito449.

Resta cristalino, portanto, que a autonomia privada, no âmbito jurídico, está enquadrada em uma série de limites impostos por instrumentos presentes no próprio ordenamento jurídico (sendo o maior deles a boa-fé450), mas, além disso, que ela está situada em um contexto que envolve o intercâmbio de influências recíprocas com valores e fatores extrajurídicos, a exemplo do fator econômico e social que, inclusive, estão estruturalmente interligados451. E até mesmo a boa-fé, como se verá na próxima parte da pesquisa, não pode adotar uma aplicação linear e padronizada como regra de interpretação, devendo compreender e se adaptar às realidades específicas de cada relação jurídica452.

447SILVA, Clóvis do Couto e. A obrigação como processo. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006, p. 105.

448SILVA, Clóvis do Couto e. A obrigação como processo. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006, p. 106.

449ROPPO, Enzo. O Contrato. Coimbra: Edições Almedina, 2009, p. 304.

450Neste ponto, há de se concordar com o posicionamento de Rosalice Fidalgo Pinheiro ao expor que a boa-fé, enquanto cláusula geral, funciona como instrumento capaz de absorver a um pluralismo de valores e, por tal razão, o julgador, na qualidade de “representante da comunidade jurídica deve compor uma integração extra sistemática do direito a partir das máximas ético-sociais e das regras da experiência, assim: “Não se trata de somente discutir a abertura e mobilidade dos valores que ela propicia ao sistema jurídico, mas de debater o teor destes valores. E nisto, destaca-se o papel do jurista, não se tratando apenas de voltar sua atenção para a política, a ética, e a prática, mas de abandonar o terreno seguro da sistemática que lhe confere o status de ´homem da ciência. Com efeito, o tipo ideal da boa-fé resulta de uma tradição dos valores que sustentam as relações de poder em sociedade, comprometendo o plano de converter ´o jurista teórico em um jurista capaz de incidir sobre a realidade´”. (PINHEIRO, R. F..O Percurso Teórico do Princípio da Boa-Fé e sua Recepção Jurisprudencial no Direito Civil Brasileiro. In: SOUZA, José Fernando Vidal de; GARCIA, JulioGonzález.. (Org.). III Encontro de Internacionalização do CONPEDI / UniversidadComplutense de Madrid. 1ªed.Madrid: EdicionesLaborum, 2015, v. 12, p. 176).

451ROPPO, Enzo. O Contrato. Coimbra: Edições Almedina, 2009, p. 26.

452REBOUÇAS, Rodrigo Fernandes. Autonomia privada e a análise econômica do contrato. São Paulo:

Almedina, 2017,p. 77.

Ora, a análise do peso da tecnologia na autonomia privada perpassa pelo fator econômico uma vez que os algoritmos são desenvolvidos para auxiliar ou influenciar no processo decisório de manifestação de vontade com base em interesses econômicos453. Ademais, considerando a sua inegável presença, cada vez mais intensa, ao personalizar a sua influência nos indivíduos, também desperta uma preocupação social profunda por causa do bem-estar ou mal-estar que o uso correto ou incorreto dessa ferramenta tecnológica pode impactar nos indivíduos.

Assim, nas palavras de Rosa Maria de Andrade Nery, essa é uma vocação que sempre se fez presente no Direito Privado, que tanto se importa com “a necessidade individual de cada sujeito, de cujo estímulo depende a prosperidade do agrupamento humano, quanto importa o elemento social que é a razão de ser e a finalidade transcendente do direito”454.

453 “A questão é que a análise estritamente econômica distorce a avaliação. A produção tecnológica orienta todos seus esforços em relação à produção de utilidade, visando benefícios e lucros. Ou seja, a própria produção tecnológica é orientada pela lógica do mercado. Com isso, a busca por possíveis problemas e riscos, mesmo que feita, é posta em segundo plano. A aplicabilidade econômica de um novo produto quase sempre é prevista, o risco não. As ameaças que surgem são tidas como “imprevisto” ou “imprevisível”. No processo de desenvolvimento técnico e científico do último século, as ciências e as engenharias (bem como cientistas e engenheiros) perderam o controle sobre a práxis, sobre a aplicação de seus produtos. A ciência e a tecnologia são induzidas pela demanda dos usuários, sempre crescente. Há de se considerar também o maior grau de especialização científica, o que a torna menos sujeita a um controle interno. Pois os desenvolvimentos são mais complexos, no entanto, mais isolados.” (ROCHA, Carlos Guilherme; e FREIRE, Estela Cardoso. Da possibilidade e da necessidade de responsabilização civil pelo risco do desenvolvimento: um argumento sociológico. Civilistica.com. Rio de Janeiro, a. 10, n. 2, 2021, p. 21)

454 NERY, Rosa Maria de Andrade. Introdução ao pensamento jurídico e à teoria geral do direito privado.

São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008, p. 224.

4 A CONSTRUÇÃO DA MORALIDADE DO DIREITO PRIVADO: DO DIREITO NATURAL AO SOLIDARISMO JURÍDICO

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