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AUTOR E HERÓI

No documento NOVOS TEMPOS, MESMAS HISTÓRIAS (páginas 124-127)

Como foi discutido na seção anterior, para Bakhtin eu posso pensar em mim, em minha ―imagem externa‖ a partir do que recebo dos outros. Entretanto, só posso fazê-lo de dentro. Os exemplos dados pelo autor a esse respeito são muitos.

Desde a perda de sensibilidade em um membro do corpo, cuja existência somos capazes de reconhecer no espelho, mas que não sentimos de dentro que faz ainda parte de nós

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Scripta Alumni - Uniandrade, n. 10, 2013.

(BAKHTIN, 2003, p. 40) à maneira como lidamos com nossa visualização diante do espelho – imagem que sabemos racionalmente ser a nossa, mas que não sentimos que se confunde com aquilo que somos de fato – nossa imagem interior de nós mesmos está sempre em conflito com nossa ―auto-objetivação‖ (p. 30). Criamos, dessa forma, uma imagem externa de nós mesmos, baseada no acabamento que nos é dado pelos outros ao longo da vida. Uma criança passa a criar seu todo, sua imagem externa, fundamentada na imagem que sua mãe lhe oferece, chegando mesmo a se referir a si mesma no mesmo tom emocional-volitivo usado por ela (p. 46-47). A partir do entendimento da relação entre o mundo objetivo externo e o mundo interior, bem como de minha auto-objetivação, sou capaz de me autopreservar. Conheço que um gesto de afago vindo do exterior será benéfico ao meu eu interior, bem como prevejo que uma pancada será prejudicial e compreendo que esses gestos, quando partem de mim, causam reação semelhante no outro – mesmo não sendo capaz de sentir, de fato, o seu prazer ou a sua dor, a não ser empaticamente. A partir daí, sou capaz de me situar espacial e temporalmente e me relacionar com o mundo externo: ―O mundo da ação é o mundo do futuro interior previsto‖ (p. 42). Ou seja, preparo-me para prever e esperar o que o mundo externo pode causar em meu mundo interior.

O excedente de visão que tenho sobre o outro é essencial na atividade estética. Embora possa haver identificação com o representado, já que o contemplador o reconhece como um ―eu‖, ou seja, como uma existência humana (ou anímica), esse momento é superado logo de saída. Afinal, para Bakhtin, se não fossemos capazes de ultrapassar o momento da empatia, seríamos incapazes de dar ao objeto representado – ao herói – o acabamento necessário para ver a obra de fora. Ficaríamos, assim, presos às dores do outro, incapazes de preencher com a nossa posição externa a sua experiência e dar sentido ao todo estético. Como na vida o acabamento permite que aconselhemos e ajudemos o outro, na arte nossa posição externa nos permite dar sentido à existência do herói. A empatia – ilusão de sentir o que o outro sente e preencher seu lugar no mundo representado – é apenas um momento necessário para a humanização do herói. Rapidamente, porém, voltamos ao nosso lugar de contemplação do objeto, lugar que não pode coexistir com uma empatia total.

Fundindo-me com Édipo e perdendo o lugar que ocupo fora dele, deixo de enriquecer o acontecimento de sua vida com um novo ponto de vista artístico inacessível a ele a partir do lugar único que ele ocupa, deixo de enriquecer esse acontecimento da sua vida como autor-contemplador; mas desse modo destrói-se a tragédia, que era justamente o resultado desse enriquecimento fundamental essencial inserido pelo autor-contemplador no acontecimento da vida de Édipo.

(BAKHTIN, 2003, p. 65-66, ênfase no original)

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O efeito trágico ou cômico depende, portanto, do enriquecimento dado pelo outro, o autor-contemplador – enriquecimento esse semelhante àquele que, na vida, damos ao outro e que recebemos dele, e que justifica a ideia bakhtiniana de uma ética fundamentada no ato responsável e responsivo. O todo estético não pode ser covivenciado, já que ele só existe a partir de uma posição externa.

Assim como o espectador não se confunde com o herói, também o autor ocupa uma posição externa a ele, capaz de dar acabamento. A separação entre autor e herói existe, para Bakhtin, mesmo quando eles são aparentemente a mesma pessoa – caso da autobiografia e, aproximando-se do domínio desta proposta de trabalho, da poesia. Na autobiografia, por exemplo, o autor deve tornar-se outro em relação a si mesmo, a fim de apresentar um todo coerente e com sentido. Se não houvesse separação, o sentido se perderia. Trata-se de uma atividade diferente daquela da vida. Na vida, o acabamento do eu, se fosse possível, impediria sua atividade, já que agir exige abertura (BAKHTIN, 2003, p. 11). Entretanto, na obra artística, a abertura indetermina o sentido. É da separação entre autor e herói – e do acabamento que este dá à existência daquele – que o sentido emerge.

Cabe ainda considerar que o autor bakhtiniano é, em grande medida, um ser textual. Entretanto, essa afirmação não implica recusa às tensões do mundo real como importantes para a interpretação da obra. A arte é, pois, produto da cultura. Seu lugar tensiona sempre – como o faz a própria linguagem por princípio – individual (inacabado e mortal) e social.

Mesmo se o poeta, de fato, extrai sua paixão em grande parte das circunstâncias de sua própria vida privada, ainda assim ele precisa socializar esse sentimento, e, consequentemente, elaborar o evento correspondente ao nível de significação social.

(BAKHTIN/VOLOSHINOV, s/a, p.19)

Nesse processo, o autor-criador (que Bakhtin opõe ao ―autor-pessoa‖, o autor biográfico) é ―uma posição refratada e refratante‖ (FARACO, 2005, p. 39). Não há reprodução direta das posições ideológicas declaradas e conscientes do autor biográfico na obra como não há reprodução direta do mundo objetivo na linguagem. Não é possível reduzir, portanto, ―o eu e o outro a um só denominador‖ (BAKHTIN, 2003, p.

54, ênfase no original), dissolvendo o sujeito nas vozes sociais e esquecendo seu papel ativo. Assim também a noção de autor-criador discursivo é destinada a bloquear interpretações (e explicações) da arte pela psicologia do autor ou qualquer sociologia determinista. Entretanto, enquanto elementos constitutivos da obra, os valores existentes socialmente importam e muito.

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Tendo como base, portanto, que, para Bakhtin (e na eficiente síntese de Tezza), ―nenhuma significação se instaura, em nenhum evento concreto, sem a presença de, no mínimo, dois centros de valor‖ (TEZZA, 2002, p. 179, ênfase no original) e as implicações desse pressuposto ético-linguístico para a estética bakhtiniana, passarei à discussão de como se dá, na poesia, o acabamento que o autor-criador, ―refratário e refratante‖ do autor-pessoa e de suas experiências como ser social, dá ao seu herói.

No documento NOVOS TEMPOS, MESMAS HISTÓRIAS (páginas 124-127)