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O RECURSO DE ESTRANHAMENTO BRECHTIANO À LUZ DA TEORIA DO EFEITO ESTÉTICO EM A EXCEÇÃO E A REGRA

No documento NOVOS TEMPOS, MESMAS HISTÓRIAS (páginas 195-200)

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Scripta Alumni - Uniandrade, n. 10, 2013.

O RECURSO DE ESTRANHAMENTO BRECHTIANO À LUZ DA TEORIA DO

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estabelecidos pela moral vigente: ―O acusado, portanto, agiu em legítima defesa tanto no caso de ter sido realmente ameaçado quanto no caso de apenas sentir-se ameaçado.

Dadas as circunstâncias, tinha razões para sentir-se ameaçado. Isto posto, absolve-se o acusado‖ (BRECHT, 1990, p. 160).

Por isso, é importante o leitor conhecer a história da recepção de uma obra. ―A leitura tem a mesma estrutura da experiência, na medida em que o envolvimento empurra os nossos padrões de representação para o passado‖ (ISER, 1996b, p. 50). Atitudes dos personagens que podem parecer negativas são totalmente aceitáveis no contexto da obra, porque são parte da formação do personagem, então é verossímil que estes se comportem de tal forma. A respeito disso: ―O leitor procurará aspectos positivos da natureza humana, no lugar daqueles que foram qualificados como negativos‖ (p. 74). Embora certos comportamentos dos personagens gerem indignação, seria incoerente e inesperado, por exemplo, que o comerciante fosse bom para seus empregados, porque isso é o correto a se fazer, mas não é comum de acordo com sua formação. Bornheim diz que:

A obrigação do comerciante era crer-se ameaçado. Decidam, entretanto, os participantes: ou bem aceitar a decisão monstruosa do juiz, ou recusar em bloco toda a estrutura social capitalista, pressuposta pela ação criminosa. Brecht pretende que, no sistema social vigente, a bondade é uma exceção. (BORNHEIM, 1992, p. 189)

Há uma hierarquia, uma ordem social que sempre existiu, tanto no momento em que a peça foi escrita como na atualidade, embora não sendo a forma mais justa, o que se percebe é que o dinheiro, o poder, as posses, a famosa ―carteirada‖ ainda ditam as regras em muitos lugares. Mas as mudanças são percebidas, e é o que a obra propunha na época, e é o que ela provoca no leitor hoje. ―Cada época tem seus próprios sistemas de sentido, as transições epocais marcam, por conseguinte, modificações significantes que se realizam no interior dos sistemas de sentido que por sua vez são organizados segundo um modo hierárquico ou concorrente‖ (ISER, 1996a, p. 133). O impacto do texto gera no leitor uma mudança de significado diante de uma mesma situação. O sentido já não é mais o mesmo, porque houve mudança também no horizonte de expectativas da peça. Exemplo disso é encontrado no texto: ―Ao forte todos ajudam, e o fraco não tem ninguém, (...) Deus, que fez todas as coisas, fez o patrão e o empregado, (...). E o bom é quem vive bem, quem vive mal é o malvado‖ (BRECHT, 1990, p. 145).

Outro mecanismo teorizado por Iser, encontrado na peça de Brecht é a realidade extratextual, deveras utilizado para prender a atenção do leitor, para que possa relacionar o texto a situações que fazem parte do seu contexto. ―As frases escritas

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de textos ficcionais, ao serem enunciadas, sempre ultrapassam o texto impresso para relacionar o receptor com realidades extratextuais‖ (ISER, 1996a, p. 105). E mesmo essa peça sendo da década de trinta, já naquela época havia uma visão negativa em relação à polícia, não uma negatividade relacionada ao cargo, mas mais como algo impregnado à questão do poder, neste caso a polícia tem certo poder que é lhe dado pelo cargo e pelo distintivo, e é este poder que é mal utilizado e que gera essa visão negativa. Essa visão fica clara pela maneira como o comerciante se sente protegido dos pobres porque tem a polícia como escudo, como se o fato de ser pobre, automaticamente levasse a pessoa para o mal. ―Não são de luta, não são de nada: é uma corja da mais baixa qualidade, que anda de rastos (...) graças a Deus, a polícia está aí para manter a ordem‖ (BRECHT, 1990, p. 134). Esta é uma concepção do patrão, mas que está presente também na realidade atual, a polícia está ai para manter a ordem, mas nem sempre em prol dos mais necessitados, e sim de uma minoria que depende que a ordem social continue como está.

Esta premissa de querer preservar a ordem social vigente é algo que o leitor percebe no desenrolar do enredo. São ações implícitas que levam o leitor a refletir. Iser argumenta: ―Se todas as ações verbais fossem explícitas, a comunicação só conheceria fracassos, (...) o não dito constitui condição básica para que o receptor possa produzir o que se visa, (...) os ‗vazios‘ da fala formam o constituinte central da comunicação‖ (ISER, 1996a, p. 112). Como já foi dito acima, o sucesso da comunicação de uma obra depende dos vazios deixados pelo autor, preenchidos no ato da leitura;

dessa forma o jogo dialético se completa. Como afirma Camati, o autor ―conduz a plateia a um jogo imaginativo e a novos modos de percepção, estimulando os espectadores a preencherem os vazios dos cenários de palavras‖ (CAMATI, 2009, p. 164).

Na peça A exceção e a regra há o seguinte trecho: ―Quem morre é o homem doente. O homem forte vai em frente‖ (BRECHT, 1990, p. 140). Nesta passagem, o leitor poderá interpretar o que não é dito: o pobre, o carregador, o empregado são comparados a homens doentes que precisam de tratamento, como se sua condição fosse uma doença que precisasse ser curada. Já o rico, o comerciante ou o patrão são os fortes e por causa disso seguem em frente sem sofrer qualquer punição pelos seus atos. Até porque o juiz não pode condenar o patrão, ele também é patrão e estaria condenando a si mesmo. A sociedade capitalista em que estão inseridos não espera que o juiz aja de forma diferente, porque sabe que os poderosos presentes ali, no julgamento, agiriam da mesma forma.

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CONCLUSÃO

O diálogo entre texto e leitor somente se realiza graças à participação constante do leitor na produção de sentido, a indeterminação é crucial para que o leitor infira seus conhecimentos e interprete a obra, por exemplo: ―Quem esquece disto é bobo: Vai dar de beber a um homem, mas quem bebe mesmo é um lobo!‖ (BRECHT, 1990, p. 159). Neste trecho há uma comparação entre o patrão e o lobo, o carregador em sua inocência quer ajudá-lo, mas acaba morrendo porque o patrão, espelhando-se em si mesmo, só vê o mal nas pessoas, neste caso o bobo é o cule que acreditou na bondade do comerciante, e este, por sua vez, fez-se de cordeiro, mas na verdade era um lobo.

Repare-se em outro trecho da peça: ―(...) um homem, mal remunerado, forçado com violência a enfrentar um grande perigo, vendo-se prejudicado até em sua saúde, e arriscando a vida quase a troco de nada, para outro ter vantagem, acabe tendo ódio desse outro‖ (BRECHT, 1990, p. 154). Essa é uma perspectiva interna do texto, fundamentada na concepção estrutural de cada personagem, por isso, embora o texto leve o leitor a refletir, ele não pode escolher como bem quiser um ponto de vista, ele deverá levar em consideração a filosofia de cada personagem para entender suas atitudes, assim ele conseguirá aceitar o desfecho de determinadas ações, como no caso do carregador, que mesmo depois de morto é condenado por algo que não fez, mas esperava-se que fizesse. Segundo a teoria dos efeitos: "Os atos de apreensão são bem sucedidos na medida em que formulam algo em nós" (ISER, 1996b, p. 92); "Tal processo sem dúvida afetará a consciência existente, pois a incorporação do novo se confere na medida em que a consciência começa a assumir uma nova forma" (ISER, 1996b, p. 92, 94).

Ao final da peça, o coro profere as seguintes falas:

Humanidade é exceção.

Assim quem se mostra humano

Paga caro essa lição. (...). (BRECHT, 1990, p. 158)

E viram o que é comum

O que está sempre ocorrendo. (...).

No que não é de estranhar Descubram o que há de estranho!

No que parece normal Vejam o que há de anormal!

No que parece explicado

Vejam quanto não se explica! (BRECHT, 1990, p. 160)

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Diante disso, o leitor tem sua consciência imaginativa afetada, reflete sobre o que lê e torna-se diferente do que era no início da leitura, é o que a peça didática A exceção e a regra suscita: reflexão e discussão a respeito de temas universais, presentes ainda hoje no nosso cotidiano. O leitor, diante de todas essas questões, tende a perceber que acontecimentos comuns não podem ser vistos como normais, que o ser humano ainda tem valor e que a honestidade deve ser a regra, não a exceção.

REFERÊNCIAS

BORNHEIM, G. A. Brecht: a estética do teatro. Rio de Janeiro: Graal, 1992.

BRECHT, B. A exceção e a regra. Tradução de Geir Campos. In: _____. Teatro completo, v. 4. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990, p. 128-160.

CAMATI, A. S. Vozes narrativas no espaço cênico: o pós-dramático em (A)tentados de Martin Crimp. Artefilosofia, n. 7, Ouro Preto, out. 2009, p. 158-166.

DESGRANGES, F. Pedagogia do teatro: provocação e dialogismo. São Paulo: Hucitec, 2006.

_____. A inversão da olhadela: alterações no ato do espectador teatral. São Paulo:

Hucitec, 2012.

ISER, W. O ato da leitura, vol. 1, 34. ed. Tradução de Johannes Kretschmer. São Paulo:

34, 1996a.

_____. O ato da leitura, vol. 2, 34. ed. Tradução de Johannes Kretschmer. São Paulo:

34, 1996b.

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