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DAMA COMO HOMEM: QUESTIONANDO PADRÕES DE GÊNERO

No documento NOVOS TEMPOS, MESMAS HISTÓRIAS (páginas 101-106)

Um primeiro ponto a ser ressaltado é que, na literalidade do conto, todas as falas da narradora se dão na voz feminina, o que nos levaria, numa primeira leitura, a atribuir-lhe esta identidade de gênero. Entretanto, como explanamos anteriormente, podemos inferir uma identidade masculina para a Dama da noite a partir do contexto de produção da obra de Caio Fernando Abreu, uma vez que suas narrativas são repletas de personagens que não se enquadram na binaridade masculino/feminino ou na oposição hetero/homossexual. Por exemplo, temos, como narrado no conto Caçada, lançado em Pedras de Calcutá, a bichinha de ―gogó saliente mal disfarçado pela fita de veludo‖ (ABREU, 2007a, p. 70), ou a personagem Saul que se traveste de Dulce Veiga no romance Onde andará Dulce Veiga?:

Entre os pontos pretos de barba, por trás da camada de maquiagem realçando as maçãs do rosto e a linha orgulhosa, quase dura do maxilar, para tornar a face falsa ainda mais semelhante à dela, sem muita dificuldade reconheci aquela pele morena e os olhos de pânico de vinte anos atrás. As pupilas dilatadas estavam ficas em mim. Em voz baixa, chamei seu nome: - Saul. (ABREU, 2007b, p. 173)

Outro traço da narrativa de Caio que nos permite inferir a identidade da Dama como masculina são as constantes elipses do gênero de suas personagens. Se,

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no conto em análise, a personagem não se nomeia homem ou mulher, mas fala sempre na voz feminina, em outros contos do autor são suprimidas da narrativa marcas mais claras de gênero, como o nome das personagens no breve conto Diálogo de Morangos mofados, chamadas apenas de A e B. Ou, no mesmo volume, o conto Luz e sombra em que o narrador se dirige a seu interlocutor apenas como você, sem explicitar se fala com um homem ou uma mulher.

Partindo dessa abertura dada pelo conjunto da narrativa de Caio, podemos alicerçar nossa análise em dois excertos do conto. No primeiro deles, a narradora afirma: ―Se eu tô tesuda e você anda duro e eu precisar de cacete, compro o teu, pago o teu. Quanto custa? Me diz que eu pago. Pago bebida, comida, dormida. E pago foda também se for preciso‖ (ABREU, 1988, p. 92). No segundo, ela afirma temer a AIDS: ―Já pensou se eu tivesse? Eu, que já dei para meia cidade e ainda por cima adoro veado‖ (p. 95).

No primeiro trecho, vemos uma referência ao sexo pago. Segundo Parker (2002, p. 122), um grande número de espaços destinados à sociabilidade e realização do desejo gay surge a partir do fim dos anos 1970, no Brasil (o conto foi lançado em 1988). Dentre estes espaços, destacam-se as saunas especificamente voltadas para este público, locais em que tanto se pode praticar sexo espontaneamente como pode se pagar por ele. A perspectiva do sexo pago permite aproximarmos a imagem da Dama à de um homem homossexual, já que o fenômeno de proliferação de locais para sexo pago entre homens não encontra espelho no campo feminino. Em outras palavras, em nossa sociedade, o desejo feminino não encontra espaços estabelecidos para a realização de sexo pago da mesma forma como os homens, sejam eles hetero ou homossexuais, encontram para a realização de seu desejo.

Esse enquadramento da narradora como homem homossexual também a aproxima de um campo de exclusão em relação à sexualidade dominante.

Assim, se podemos supor que a Dama mulher é heterossexual, ao trazermos a personagem para o campo do masculino, sua identidade necessariamente passa a ser homossexual, especialmente quando ela revela ter dado para meia cidade e adorar veado.

Aqui surge um novo ponto de exclusão para a Dama: ela não destoa apenas da heterossexualidade dominante, sua prática sexual também destoa dos padrões impostos pela cultura brasileira aos homossexuais. Carrara (2007) reflete sobre o sistema indicado por Peter Fry de uma tradicional hierarquia sexual brasileira que se estabelece por meio da oposição entre gêneros. Nesta regra tradicional, dividem-se homens que fazem sexo com outros homens como ativos e passivos (ou bofes e bichas, segundo Posso, 2009), associando estes últimos ao campo do feminino, e reservando a eles o desejo pelos sujeitos ativos/masculinos. Porém a postura do homem Dama da noite é subversiva o suficiente para que, ao mesmo tempo em que reivindica a identidade feminina, permita-se desejar veados, ou seja, desejar outros homens que, como ele(a), aproximam-se do campo do feminino.

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A narrativa, ao legitimar essa postura, desestabiliza a noção de identidade social como algo estanque, à qual os indivíduos apenas aderiram ao se integrarem nos espaços coletivos. Heilborn conceitua que a identidade social ―constitui-se na atualização de princípios de classificação social ordenados por valores que fabricam e situam os sujeitos‖ (HEILBORN, 2006, p. 137). No conto em tela, a Dama não apenas refuta a identidade sexual heteronormativa, como também refuta a exceção que esta lhe permite de poder ser um homem identificado com o passivo/feminino e que deseja outros homens identificados com o ativo/masculino. Assim, a fabricação da identidade social homossexual pela heteronorma, que rotularia homens passivos/femininos como desejantes de homens ativos/masculinos, é desestabilizada na narrativa.

O outro trecho citado no inicio dessa seção faz referência à epidemia da AIDS desencadeada a partir dos anos 1980. À época da publicação do conto, a doença era marcada por uma série de estigmas, entre eles, o que a associava aos homens gays como alvo específico do vírus. Assim, a preocupação da personagem em estar ou não contaminada era, à época, mais um medo dos homens gays que das mulheres heterossexuais, o outro perfil que estipulamos em nossa análise. Ressaltemos que na hipótese da mulher Dama, o fato de desejar homens gays também a poria no campo dos infectáveis, já que o estigma da doença os acompanharia em suas eventuais relações heterossexuais.

Um último aspecto que podemos ressaltar trata da expectativa social em torno de casamento e filhos. Se na hipótese de uma personagem feminina, a ausência dos dois itens se revela como uma frustração a uma característica que a sociedade veria como natural no corpo da mulher, para a hipótese da personagem masculina também vemos uma frustração, na medida em que o casamento e a procriação seriam uma confirmação da masculinidade e heterossexualidade das quais a personagem abriu mão. Numa sociedade com uma clara hierarquização entre masculino e feminino, escolher transitar do degrau mais alto (abrindo mão da masculinidade representada no casamento e na procriação) para o campo socialmente tratado como inferior (o feminino) se revela uma afronta à identidade social pré-estabelecida.

Em retaliação, esse indivíduo seria repelido para os espaços marginais como os bares e casas noturnas frequentadas por estereótipos negativos tanto do masculino quanto do feminino, como as travestis ou prostitutas. Assim, a alternativa para esses sujeitos seria se esconder durante o dia e rastejar pela noite, nos lugares marginalizados que a convenção social lhes legou.

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CONCLUSÃO

Em nossa análise, verificamos que a Dama, tanto como mulher quanto como homem, não se encaixa em um modelo tradicional de gênero ou sexualidade.

Na primeira hipótese, vemos uma mulher que não atendeu expectativas sociais como o casamento e a reprodução. A pesada narrativa de Caio Fernando Abreu retrata a exclusão da personagem, como uma representação da mulher não identificada com a identidade social para si reservada, cujo destino seria uma vivência marginal, fora da roda que todos os demais parecem girar.

Já na segunda hipótese, temos uma exclusão radicalizada da Dama.

Tratando-se de um homem que reivindica uma voz feminina para si, temos um sujeito excluído por ser homossexual, mas que se recusa a assumir os pares ativo/passivo e masculino/feminino ao desejar outros homens igualmente feminilizados, representados na narrativa pelo estigmatizado termo veado.

Ainda que as duas hipóteses contemplem sujeitos profundamente dissonantes da norma social vigente, o tom negativo que marca toda a narrativa não nos autoriza a afirmar que se dá uma ruptura com o discurso masculino e heteronormativo, já que à personagem não se resguarda uma alternativa de inclusão social. Como dissemos mesmo nos espaços marginais que frequenta, seu lugar é mais de isolamento que de integração com os demais frequentadores.

Entretanto, mesmo que não verifiquemos um redimensionamento do feminino na narrativa, a indefinição do gênero da personagem permite verificar o quanto a atribuição de identidades sociais pré-estabelecidas aos sujeitos se revela arbitrária e inadequada. Permite verificar também quanto os mecanismos opressores que visam naturalizar as dicotomias entre masculino e feminino e entre hetero e homossexualidade se empenham em manter sua validade ao relegar aqueles que deles discordam para um campo de exclusão.

Assim, a narrativa, ao nos permitir imaginar uma personagem tanto masculina quanto feminina, nos permite ver também a semelhança das experiências de exclusão dos sujeitos homens ou mulheres que ousam se contrapor à normalidade masculina e heterossexual.

REFERÊNCIAS

ABREU, C. F. Morangos mofados. Rio de Janeiro: Agir, 2005.

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_____. Onde andará Dulce Veiga?: um romance B. Rio de Janeiro: Agir, 2007a.

_____. Os dragões não conhecem o paraíso. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.

_____. Pedras de Calcutá. Rio de Janeiro: Agir, 2007b.

CARRARA S.; SIMÕES J. A. Sexualidade, cultura e política: a trajetória da identidade homossexual masculina na antropologia brasileira. Cadernos Pagu, n. 28, Campinas, janeiro-junho de 2007, p. 65-99.

FRIEDMAN, N. O ponto de vista na ficção: o desenvolvimento de um conceito crítico.

Tradução de Fábio Fonseca de Melo. Revista USP, n. 53, São Paulo, março/maio 2002, p.

166-182.

HEILBORN, M. L. Ser ou estar homossexual: dilemas de construção de identidade social.

In: PARKER, R.; BARBOSA, R. (Org.). Sexualidades brasileiras. Rio de Janeiro: Relume- Dumará, 1996, p. 136-145.

MACHADO, J. G. Constantes ficcionais em romances dos anos 70. Florianópolis: UFSC, 1981.

ORTNER, S. B. Está a mulher para o homem assim como a natureza para a cultura?

Tradução de Cila Ankier e Rachel Gorestein. In: ROSALDO, M. Z.; LAMPHERE, L. (Org.). A Mulher, a cultura e a sociedade, v. 31. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979, p. 95-120.

(Coleção O mundo, hoje).

POSSO, K. Artimanhas da sedução: homossexualidade e exílio. Belo Horizonte: UFMG, 2009.

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O RISO NA IDADE MÉDIA, UMA ANÁLISE DA OBRA DE

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