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CARACTERÍSTICAS ÉPICAS QUE COMPÕEM A PEÇA

No documento NOVOS TEMPOS, MESMAS HISTÓRIAS (páginas 184-190)

Mãe Coragem e seus filhos é uma peça épica, e como característica do teatro épico, o verdadeiro propósito é mais do que moralizar. É mostrar a situação sob vários pontos de vista para que o público possa tirar suas conclusões:

Pois, como ele diz em outro contexto, a má fortuna é má professora.

Seus alunos aprendem a ter fome e sede, mas nem sempre fome de conhecimento e nem sede de verdade. (...). Os sofrimentos não produzem necessariamente habilidade para praticar a medicina.

Mesmo depois de 1945, Brecht ainda se perguntaria: quantos espectadores da peça de fato entendiam suas advertências?

Conseguiria ele mostrar a relação entre a guerra e o sistema social?

(EWEN, 1991, p. 339)

O dramaturgo acreditava que seu público era um ―produtor‖, observador e crítico da ação, sendo assim, viam-se provocados a tomar decisões e que através da peça ―épica‖ existia a possibilidade de mudar o mundo.

O autor propõe, em Mãe Coragem, demonstrar uma função social onde evidencia que com a guerra não são os humildes que fazem bons negócios e que nenhum sacrifício é capaz de combatê-lo. Podemos relacionar os desfechos trágicos dos filhos de Mãe Coragem com a problemática da guerra, dos soldados que voltam como aleijões, sem esperanças; às vezes, com suas medalhas, mas com a vida destruída.

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Naquele momento todos se tornam cegos, Brecht mostra utilizando uma linguagem direta, familiar e ajustada aos personagens de modo que dificilmente pode ser criticada por não se captar todo o sentido do que foi dito no mesmo momento em que foi pronunciado. Podemos citar o trecho em que o ser humano é capaz de anular- se em contradição somente pela sociedade, pois para eles a guerra era sinônimo de ordem: ―Logo se vê que há muito tempo há guerra por aqui. De onde vem a moral, pergunto eu? A Paz é uma porcaria, só a guerra é que estabelece a ordem‖ (BRECHT, 1991, p. 176).

Brecht acreditava no ser humano acima de tudo, nas suas contradições e a capacidade de superá-las. Na peça, a contradição também se torna aparente quando a protagonista diz: ―Maldita seja a Guerra‖ (BRECHT, 1991, p. 234) e, em outro momento argumenta: ―E a guerra sabe alimentar a gente dela muito melhor!‖

(p. 235). Essa contradição é observada em cenas em que Mãe Coragem sofre perdas com a guerra, porém logo volta à sua alienação e chega a torcer para que a guerra não acabe, pois é aí que ela acredita que sua vida irá piorar, já que segundo seu ponto de vista, sua fonte de renda diminuiria.

Nota-se no decorrer da peça, que questões sociais por vezes tornam- se mais fortes e fazem com que um mesmo indivíduo mude suas atitudes dependendo da situação na qual se encontra em determinado momento. Um exemplo pode ser observado na cena da figuração de mercado, onde em certa passagem trocam a bandeira que carregam na carroça devido ao medo do inimigo, demonstrando a sagacidade para se proteger, mas por outro lado também mostra que aquela família tinha necessidades de sobrevivência que eram ganhas através do comércio. Assim, não podiam se dar ao luxo de tomar algum partido.

Podemos citar outra cena em que Mãe Coragem está na frente de uma tenda de oficiais para dar queixa de uma terrível exploração: ―Fizeram em farrapos, com as espadas, tudo o que eu tinha na minha carroça, e ainda por cima arrancaram de mim quinze marcos de multa, assim sem mais nem menos‖ (BRECHT, 1991, p. 217).

Durante essa cena, percebe-se um caráter cômico, que segue com um escrevente aconselhando a não dar queixa alguma. A princípio Mãe Coragem demonstra indignação, mas por fim acaba desistindo de enfrentar o oficial e de prestar a queixa. É nesse momento que podemos identificar o quanto é cruel o sofrimento daqueles que se submetem ao abuso dos que estão em uma posição mais privilegiada de poder.

A peça apresenta o caráter mercenário da guerra, flagrando cenas em que Mãe Coragem fica prestes a subornar o inimigo em troca da vida de seu filho Queijinho: ―Graças a Deus que eles são tão venais! São homens que dão valor ao dinheiro! A corrupção dos homens é como a misericórdia de Deus: a única coisa com que podemos contar‖ (BRECHT, 1991, p. 214). Já em outro momento, para salvar sua

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carroça que é sua fonte de renda, a mesma finge não conhecer seu filho mais novo, Queijinho, o qual é depositado morto a seus pés.

A Guerra dos Trinta Anos foi uma das principais guerras onde os indivíduos não percebiam que ela era necessária somente dentro do capitalismo, onde o sistema econômico fazia com que todos ficassem contra todos, grandes contra os grandes, pequenos contra os pequenos e grandes contra os pequenos.

Mãe Coragem era uma personagem que ficou cega diante dessa questão, encarava a guerra como um negócio, tinha como fonte de renda uma carroça e se valia dela para fazer suas vendas e sustentar sua família: ―Gente pobre precisa de coragem, ou estão perdidos‖ (BRECHT, 1991, p. 230). A personagem pagava juros elevadíssimos por suas mercadorias, mas por nada entender, continuava seu comércio (BORNHEIM, 1992). Há um momento em que o autor coloca uma cena com um cartaz em que se lê: ―Mãe Coragem no auge da sua carreira de vendedora ambulante‖

(BRECHT, 1991, p. 234), porém em seguida veio o declínio e ela perdeu não só os seus bens, mas também seus filhos.

Já no início da peça, na primeira canção é possível observar que Mãe Coragem encara a guerra como aquilo que ela é: um negócio, ela canta: ―Mãe Coragem vem trazendo sapatos, com que eles podem melhor caminhar (...). Deixe que Mãe Coragem trate deles, com vinho para o corpo e para a alma...‖ (BRECHT, 1992, p. 176).

No decorrer de toda a peça Coragem negocia suas mercadorias e demonstra não querer que a guerra tenha fim: ―Mãe Coragem voltando com Kattrin – Tome juízo! A guerra ainda vai continuar por algum tempo, e nós ainda podemos ganhar algum dinheiro‖ (BRECHT, 1992, p. 229). No auge de sua carreira de vendedora, não admite que falem mal da guerra, aí se observa a inversão de valores e cegueira pela qual Coragem está tomada: ―Mãe Coragem – A Guerra é isto: uma bonita fonte de renda!

(...). Não admito que falem mal da guerra. O que se diz é que acaba com os fracos, mas esses já estão mais do que acabados na paz também. E a guerra sabe alimentar a gente dela muito melhor‖ (p. 234). O fator econômico fala mais alto para Coragem que demonstra decepção de perder de vender suas mercadorias e ter prejuízos, caso a guerra venha a acabar: ―Mãe Coragem – Não me digam que veio a paz, agora que eu comprei tanta mercadoria nova! (...). A paz me alegra muito, embora eu fique arruinada‖ (p. 236- 237).

Conforme Ewen (1991), os personagens da peça são esmagados pelas circunstâncias históricas, não tomam atitude frente os acontecimentos, não compreendem nem questionam. Cada personagem apresenta uma ideologia que não diz respeito somente a si mesmo, mas que podem ser transpostas na realidade da situação atual. Como já mencionamos, Mãe Coragem é o primeiro exemplo da contradição viva, que sofre horrores com a guerra e nada aprende. Dois de seus filhos são soldados, Eilif é um fraco que se junta ao exército e comete o erro de querer ser um herói em período de trégua militar, então o ato heróico se torna um crime e ele é fuzilado, e Queijo Suíço é

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morto após ser surpreendido, em atitude suspeita, ao tentar esconder do inimigo a caixa de dinheiro de suas tropas. Kattrin, a filha, é surda-muda, e compõe umas das cenas mais dramáticas da peça, é vitima da violência dos soldados por tentar avisar que a cidade ira ser saqueada. O capelão é um protestante que escapa da prisão, passando-se por ajudante de Mãe Coragem e fazendo uso de uma linguagem elevada, o cozinheiro passa um tempo com Anna Fierling e oferece-se para casar-se com ela, mas desiste quando a mesma insiste em levar a filha muda e por fim Yvette é uma prostituta que acaba viúva de um coronel.

Podemos então relacionar os desfechos dos personagens acima citados ao que diz Peixoto (1974, p. 160) que acredita que para muitos a perseguição parece apenas a maior das injustiças, e esses são vistos como maus e os perseguidos como bons, sendo que na verdade a bondade é que foi derrotada sendo assim ela uma fraqueza, podendo-se assim dizer que os bons foram vencidos porque foram fracos.

Peixoto (1974, p. 161) ainda diz que para se descobrir a verdade é necessário conhecer a dialética materialista, a economia e a história; é preciso revelar, mesmo através de formas mais simples de conhecimento, as verdades que auxiliam a transformação do mundo.

Uma das características básicas desta fase brechtiana é a

―recuperação do personagem‖, sem que isso implique em destruir o esqueleto ideológico filosófico e a coerência marxista de sua obra.

Esta recuperação dá sanção definitiva e confere vitalidade artística a essa complexa e orgânica trama de problemas, enquanto significa que Brecht (que nesta época andava como seu personagem, por todos os países, carregando sua bagagem, vivendo o exílio imposto pelo nazismo) consegue soltar a ―dramatis personae‖ e sua língua radicalmente divorciadas no período anterior. (PEIXOTO, 1974, p.

191)

O dramaturgo trazia em suas peças aquilo que estava acontecendo em meio à alienação dos que ali estavam e nada compreendiam e faziam.

CONCLUSÃO

Com a peça Mãe Coragem e seus filhos (1939), Brecht pretendia provocar o público, mostrando os interesses políticos que movem a guerra. O autor

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apresenta contradições ideológicas que propõe aos participantes a indagação: Poderia essa história ter outro final? O que poderia ter sido feito para que a trama tivesse outro desfecho?

Segundo a interpretação de Helene Weigel: ―A superioridade moral desta representação vinha do fato de nela se apresentar o homem, por mais vigoroso que este possa mostrar-se, como susceptível de ser destruído‖ (WEIGEL, citado em BRECHT, 1978, p. 160).

A crônica possibilita a visão de um grande painel da guerra, desmascarando o heroísmo e desmentindo o oportunismo do pequeno- burguês que acredita que viver da guerra é um bom negócio. Isso é mostrado em todos os níveis:

linguagem, ações, personagens e situações, onde o mais importante era que o público realmente entendesse suas advertências entre a guerra e o sistema social.

Brecht valoriza a arte engajada e enfatiza por meio da peça a união entre o conhecimento e diversão (História e Arte) contra a desordem capitalista, e é através dos personagens contidos em Mãe Coragem e seus filhos, que ele traz para o centro as discussões o ―homem‖ e sua interpretação sobre a sociedade e suas percepções históricas, onde o mesmo é capaz de tratar a guerra simplesmente como uma crise de violência e desordem, a qual o dramaturgo se opõe.

Mãe Coragem pode ser considerada uma das peças mais fascinantes do teatro moderno e segundo Peixoto, foi à obra que consagrou Brecht mundialmente, tanto pelo texto como pela encenação e em sua discussão final com Wolf, o autor reitera uma fala de Brecht: ―Se Coragem não tira, apesar de tudo que lhe aconteceu, nenhuma lição, eu, de minha parte, creio que o público pode aprender alguma coisa observando-a‖

(BRECHT, citado em PEIXOTO, 1974, p. 195).

REFERÊNCIAS

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BORNHEIM, G. Brecht: a estética do teatro. Rio de Janeiro: Graal, 1992.

BRECHT, B. Estudos sobre teatro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1978.

_____. Mãe Coragem e seus filhos. Tradução de Geir Campos. In: _____. Teatro completo, v. 6. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991, p. 171-266.

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ESSLIN, M. Brecht: dos males, o menor. Tradução de Barbara Heliodora. Rio de Janeiro:

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EWEN, F. Luculo e Mãe Coragem. In: _____. Bertolt Brecht: sua vida, sua arte, seu tempo. Tradução de Lya Luft. São Paulo: Globo, 1991, p. 331-339.

PAVIS, P. Dicionário de teatro. São Paulo: Perspectiva, 2011.

RICHARD, L. A república de Weimar. Tradução de Jônatas Batista Neto. São Paulo:

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PEIXOTO, F. Brecht: vida e obra. Guanabara: José Álvaro S/A, 1974.

SERIO, M. Sobre Brecht. Lisboa: Zahar, 1979.

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Walser, M. Bertolt Brecht. Tradução de Hebert Minnemann. Germany: Inter Nationes Bad Godesberg, 1966, p. 5-14.

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A EXCEÇÃO E A REGRA (1930): O RECURSO DE

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