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POESIA E CENTRALIZAÇÃO DO DISCURSO

No documento NOVOS TEMPOS, MESMAS HISTÓRIAS (páginas 127-130)

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Scripta Alumni - Uniandrade, n. 10, 2013.

Tendo como base, portanto, que, para Bakhtin (e na eficiente síntese de Tezza), ―nenhuma significação se instaura, em nenhum evento concreto, sem a presença de, no mínimo, dois centros de valor‖ (TEZZA, 2002, p. 179, ênfase no original) e as implicações desse pressuposto ético-linguístico para a estética bakhtiniana, passarei à discussão de como se dá, na poesia, o acabamento que o autor-criador, ―refratário e refratante‖ do autor-pessoa e de suas experiências como ser social, dá ao seu herói.

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Essa exaltação do romance se deve exatamente à sua capacidade como gênero de abarcar os discursos mais diversos a fim de refratar suas intenções e valores sócio-históricos. Assim, a orientação axiológica do autor é refratada por meio da absorção de discursos que não são seus. O romance, como gênero, focaliza na relação entre os vários personagens a sociabilidade da linguagem e, fazendo-o, acaba por tematizar, por princípio, essa mesma natureza dialógica. Não à toa, Bakhtin afirma ser o romance a melhor expressão da tendência dialógica da linguagem. O romance, afinal, pressupõe a caracterização da fala das personagens (fala essa que pode diferir da fala e do tom usado pelo autor) e a interrupção constante da voz do narrador pelas vozes sociais, além da tematização das diferentes expressões ideológicas das diferentes comunidades de julgamento de valor, que se encontram sempre em conflito, como na vida.

Mas e quanto à poesia? Para Bakhtin, o discurso poético exige, antes de tudo, uma centralização da voz. Intrinsecamente, como qualquer outra manifestação linguística, ele é dialógico. Porém, os conflitos de julgamentos de valor enfrentados na etapa anterior à criação (e que, no romance, estão materializados), não aparecem materialmente no poema. ―Quaisquer que tenham sido as ‗tormentas verbais‘ que o poeta tenha sofrido no processo de criação, na obra criada a linguagem passou a ser um órgão maleável, adequado até o fim ao projeto do autor‖ (BAKHTIN, 1993a, p. 94).

Assim, o gênero poético apresenta-se como um discurso unificado e unívoco, ainda que nele ressoem as vozes sociais que o formaram. Entretanto, elas ressoam já refratadas e organizadas em um discurso único que, mesmo quando é um discurso de questionamento, é um discurso ―sobre a dúvida‖ que ―deve ser um discurso indubitável‖ (BAKHTIN, 1993a, p. 94). Se, portanto, o autor-prosador mede frequentemente ―o seu mundo com escalas linguísticas alheias‖ (p. 95), o autor-poeta renega a ―(...) interação com o discurso alheio‖ (p. 93). O discurso poético tende ao

―indubitável, indiscutível, englobante‖ (p. 93).

Como observou Tezza, essa afirmação do autoritarismo do discurso poético pode parecer, aos nossos olhos sócio-históricos, que têm as ideias de democracia e tolerância como valores sociais máximos, extremamente crítica da poesia. Entretanto, Tezza observa que essa centralização extremista do discurso poético só ocorre no projeto de uma poesia pura. O gênero (e todos os seus elementos composicionais), afinal, está formalmente ligado ao projeto autoral. Ele não é dado pronto para que a ideia de realidade a ser representada se adapte a ele, mas é moldado e utilizado a fim de melhor representar essa ideia de realidade pretendida pelo autor-criador. Ou seja: não há uma essência do gênero poético ou prosaico, mas uma tendência, na apropriação do discurso, a concentrar-se em diferentes momentos da atividade verbal. Tezza propõe, a fim de evitar o equívoco de ver em Bakhtin o discurso poético como um gênero inevitavelmente fechado, uma margem de estilização do discurso como guia para a análise da obra. Nas extremidades dessa linha estilística, estariam os gêneros puros, sendo a poesia pura o

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gênero centralizador por excelência e a prosa pura o gênero multidiscursivo e plurilíngue (TEZZA, 2005, p. 203).

A poesia pura, em que a centralização do discurso é extrema, confunde-se com o projeto, frequente na tradição poética, de uma linguagem ancestral.

Mesmo as componentes composicionais de reiteração poética servem a esse propósito de isolamento da palavra (TEZZA, 2002, p. 187-189). Porém, na prática, a centralização do discurso é uma maneira de, no projeto autoral, limitar a voz alheia e concentrar-se em apenas uma apreciação sobre o mundo. Se, em prosa, frequentemente os julgamentos de valor refratados por meio das personagens e do plurilinguismo estão hierarquizados a ponto de a impressão ser a de que um discurso ―venceu‖, na poesia, essa vitória é dada, normalmente, previamente pela escolha da concentração em um só polo da atividade verbal.

Entretanto, ao falarmos em centralização do discurso, deve-se deixar claro em quem ele está centralizado. Embora os estilos se dividam em termos quantitativos, em essência, como vimos, eles funcionam da mesma maneira. Se o dialogismo é característico de toda a linguagem humana, na atividade estética, independentemente do gênero, há pelo menos dois componentes envolvidos: o autor e o herói. Vimos que, na autobiografia, por exemplo, eles não se confundem, já que só há possibilidade de acabamento se há exotopia por parte do autor. Da mesma forma, em poesia autor e herói não se confundem. Se o ―eu‖ que fala no poema, o ―eu lírico‖, fosse exatamente o eu autoral criador, não haveria exotopia e, portanto, o sentido final da obra como unidade se perderia. O ―eu‖ tematizado, portanto, não se confunde com a instância autoral. Como foi discutido, o autor-criador refrata as emoções e experiências do autor-pessoa, elaborando-os discursivamente e socialmente. Essa elaboração distancia-se da experiência ela mesma, por consequência, já é outra refratada. Embora possamos sem dúvida relacionar uma série de temas poéticos com a biografia e vivência autoral, elas ali estão também refratadas e são, portanto, relevantes apenas na medida em que se colocam como conteúdo da obra. Na poesia de cunho confessional, por exemplo, o uso da biografia – que se quer direto – é devidamente refratado e, principalmente, abstraído da eventicidade do ser. Do contrário, não haveria nem acabamento e nem sentido. O sentido na poesia confessional é, afinal, dado pela elaboração das experiências de fora, ainda que sejam experiências pessoais. O eu que as elabora social e linguisticamente lhes dá acabamento e, consequentemente, dota-lhes de uma significação que elas não têm na vida, significação que lhes dá valor estético, possibilidade de contemplação e impossibilidade de atividade.

Como exemplo prático da dinâmica entre autor e herói na poesia, dispomos da única análise que Bakhtin fez, em Para uma filosofia do ato, de um poema

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de Pushkin (―Razluka‖6). Em sua análise, Bakhtin identifica dois sujeitos ativos – ―ela‖ (a amada morta) e ―eu‖, que seria ―the lyrical hero (the objectified author)7‖ (BAKHTIN, 1993b, p. 66). Ou seja, aquilo que comumente chamamos de o ―poeta‖ é um eu objetificado, o herói (tópico de fala). A partir de sua linguagem responsável, ele se refere – como busca explicitar a análise bakhtiana – ao mundo a partir de um tom emocional- volitivo próprio. Entretanto, esse tom é sempre contaminado pelo tom da amada morta, que fala por meio da fala do ―eu‖. Todo o poema transita entre essas duas visões de dois heróis, sendo que só conhecemos o tom emocional-volitivo de um deles por meio da voz de outro. Em um exemplo prático: ―Bound for the shores of your distant homeland/ You were leaving this foreign land (...)‖8 (p. 65-66). Nesses dois versos, Bakhtin encontra uma mistura entre a entoação do ―eu‖ e de ―ela‖. ―Homeland‖ e ―foreign land‖ pertencem ao universo ativo de ―ela‖ – a Rússia, afinal, não é seu lar, mas uma terra estrangeira para ela, embora não seja para o poeta. Esse é apenas um exemplo de como, em poesia, a preponderância de tom é do ―eu‖, embora ele possa ser contaminado pelo outro de dentro de seu próprio discurso. O outro, embora não se insinue como voz caracterizada e determinada, é parte do discurso de eu e também objeto do discurso – um herói filtrado pelo herói preponderante e concentrador da voz: o ―eu‖ objetificado.

A concentração da voz, como vimos, cria um discurso de autoridade e também um discurso que se quer inteiramente responsável por qualquer proposição. A partir de agora, buscarei exemplificar essa dinâmica por meio de dois exemplos. O primeiro engloba completamente o outro em seu discurso, como estratégia de vitória discursiva e moral sobre ele. O segundo apresenta a voz alheia caracterizada, para deixá-la ganhar.

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