FUNDAÇÃO GETULIO VARGAS
CENTRO DE PESQUISA E DOCUMENTAÇÃO DE HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA – CPDOC PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA, POLÍTICA E BENS CULTURAIS CURSO DE MESTRADO PROFISSIONALIZANTE EM BENS CULTURAIS E PROJETOS SOCIAIS
DE OLHO NA ETERNIDADE:
a construção do arquivo privado de Antonio Carlos Jobim
Trabalho de conclusão de curso apresentado ao Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil – CPDOC – para obtenção do grau de Mestre em Bens Culturais e Projetos Sociais
GLEISE ANDRADE CRUZ
CRUZ, Gleise Andrade.
De olho na eternidade: a construção do arquivo privado de
Antonio Carlos Jobim. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio
Vargas, 2008. 133 p. : il
Dissertação (Mestrado Profissionalizante), Fundação
Getúlio Vargas, Rio de Janeiro, 2008.
Orientadora: Profª Drª Angela de Castro Gomes
1. Arquivos pessoais 2. Tom Jobim 3. Antonio Carlos Jobim –
Biografia 4. Brasil – História.
2 FUNDAÇÃO GETULIO VARGAS
CENTRO DE PESQUISA E DOCUMENTAÇÃO DE HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA – CPDOC CURSO DE MESTRADO PROFISSIONALIZANTE EM BENS CULTURAIS E PROJETOS SOCIAIS
DE OLHO NA ETERNIDADE:
a construção do arquivo privado de Antonio Carlos Jobim
Trabalho de conclusão de curso apresentado por GLEISE ANDRADE CRUZ
E APROVADO EM ____________________ PELA BANCA EXAMINADORA
____________________________________________________
Profª Drª ANGELA DE CASTRO GOMES (Orientadora)
____________________________________________ Profª Drª MARIETA FERREIRA
____________________________________________ Profª Drª REBECA GONTIJO
3 Resumo:
O arquivo de Antonio Carlos Jobim, assim como todo arquivo pessoal, foi colecionado e
mantido para satisfazer o desejo de um homem que sempre se preocupou com sua imagem.
Este trabalho demonstra a história da construção e organização desse acervo, além de
fortalecer a hipótese de que o arquivo, em sua integridade, configura-se como uma escrita
autobiográfica. Abordo a organização arquivística do fundo Antonio Carlos Jobim, dentro do
Instituto que leva seu nome, e dou ênfase na subsérie Cadernos de anotações, da série
Produção Intelectual do Titular. Esses cadernos são um tipo de documento singular, quer pelo
uso que deles fazia o maestro, quer pela sua prática memorial. O estudo destas fontes
primárias nos permite inferir a imagem construída pelo próprio titular, e também evidencia o
plano dos guardiões dessa memória em perpetuá-la: Jobim decidiu manter um arquivo pessoal
com o claro propósito de preservar sua obra e projetá-la para o futuro. Esse cuidado foi
transmitido para seus herdeiros, que além das obras musicais, cuidam, hoje, de seu legado
arquivístico dentro do Instituto Antonio Carlos Jobim.
Abstract:
Antonio Carlos Jobim archive as well as his personal archive was collected and arranged to
fulfill the desire of a man concerned with his image. This work reveals the history underneath
the organization of his private documents. Also, it presents proofs of an autobiographical
intent. I approach the construction of Jobim archives at Instituto Antonio Carlos Jobim and I
emphasize the sub series Caderno de Anotações —Notebooks— in the serie Produção
Intelectual do Titular; those notebooks can be considered unique documents and they are an
important evidence of his daily use and memorial practice. The study of primary sources of
this nature allows us to infer the image constructed by Jobim as well as the plans of the
guardians of his legacy. The maintenance of his personal and musical archive highlights the
composer's purpose of preserving his works to future generations. Jobim´s musical and
personal archives are under his family responsibility at Instituto Antonio Carlos Jobim in Rio
4 AGRADECIMENTOS
À força que me move em direção ao aprimoramento: seja Deus, seja Ele em mim, seja apenas
eu. Por ela, me dispus contra toda a adversidade por que passei no processo de confecção
dessa dissertação. Mas, por conta disso também, acredito que estou melhor hoje do que antes,
melhor preparada para o mercado de trabalho, mais determinada — e mais cansada!
À minha orientadora, Professora Doutora Angela de Castro Gomes, que num primeiro
momento pensei austera e rígida, para logo depois descobrir uma pesquisadora tão preocupada
quanto eu e extremamente inteligente e coerente. Confesso que, em muitos momentos de
fraqueza, pensei nela como modelo e percebi minha admiração crescente.
Aos amigos da turma do Mestrado do Cpdoc de 2006. Sempre seremos a melhor turma do
programa: muito unidos, embora muito ocupados, muito amigos, embora agora afastados.
Vocês deram a ajuda e o apoio que meu trabalho precisava.
Ao meu filho, João Pedro Cruz Serpa, para quem tento ser exemplo, mãe, amiga e professora.
Ele não entendeu ou mesmo percebeu minhas aflições, mas sempre chegava com uma palavra
de carinho enquanto eu estudava e escrevia: “Ah, mãe, deixa eu jogar?”
Ao meu marido, Pedro da Costa Pereira, que nunca me deixou desanimar e nunca esmoreceu
seu amor por mim, até quando nem eu mesma me aturava.
Aos queridos amigos do Instituto Antonio Carlos e da Jobim Music, sem os quais não teria
chegado ao fim: Paulinho Jobim, Eliane Vasconcellos, Gabriel Caymmi, Clay Protasio,
Clarice e Isabel Nicioli, Bernardo Krivochein, Patricia Helena Fuentes, Patricia Lima,
Jacqueline Barbosa, Avelina Oliveira, Christina Costa, Dona Luiza e Suria Braga Alves.
Especialmente, aos entrevistados Vera de Alencar, Ana Jobim e Thereza Hermanny.
5
Toda vez que uma árvore é cortada aqui na Terra, eu acredito que ela
cresça outra vez em outro lugar — em algum outro mundo. Então,
quando eu morrer, este é o lugar para onde quero ir:
onde as florestas vivam em paz.
TOM JOBIM
(JOBIM, A CASA DE TOM, 2007)
“Não sou imortal, sou altamente mortal.”
Tom Jobim
6 ÍNDICE
Introdução, p. 9
Capítulo 1: Tom Jobim, compositor de si mesmo, p. 18
1.1 Biografias e autobiografias: um preâmbulo, p. 19
1.2 Um Brasil Bossa Nova, p. 22
1.3 Conceituação de Cultura popular, p. 25
1.3.1 O popular massificado, p. 27
1.4 Uma História Biográfica de Tom Jobim, p. 30
1.4.1 Os primeiros anos de uma vida, p. 30
1.4.2 Ainda os primeiros: casamento, emprego..., p. 31
1.4.3 Compositor de si mesmo, p. 33
1.4.4 Alguns encontros importantes, p. 38
1.5 A criação da Bossa Nova, p. 45
1.5.1 Tom e a Bossa Nova, p. 49
1.6 Últimos tempos, p. 51
Capítulo 2: O arquivo Tom Jobim, sua maior composição, p. 54
2.1 Os guardiões da memória, p. 54
2.2 A criação de uma instituição: o Instituto Antonio Carlos Jobim, p. 58
2.3 Considerações sobre Arquivos e Arquivos pessoais, p. 61
7
2.3.2 Classificação e Descrição, p. 69
2.4 O acervo de Tom Jobim, p. 70
2.4.1 Higienização, p. 72
2.4.2 Digitalização, p. 73
2.4.3 Divulgação e acesso, p. 74
2.4.4 Descrição e indexação, p. 76
2.5 Entendendo o arquivo, p. 81
Capítulo 3: Cadernos para lembrar Tom – lembranças dele, com ele e para ele, p. 87
3.1 Conhecendo os cadernos, p. 91
3.2 Observando com mais atenção, p. 99
3.3 Refúgios do eu, p. 103
3.4 As casas de Tom, p. 108
Conclusão, p. 115
Anexo A – Plano de arranjo do arquivo, p. 117
Anexo B – Planilha dos Documentos Textuais do Instituto Antonio Carlos Jobim, p. 118
Anexo C – Poema “Chapadão”, p. 119
Anexo D – Artigo de Tom Jobim sobre a expansão do mercado fonográfico, Pi1093, p. 124
8 LISTA DE ILUSTRAÇÕES E TABELAS
Figura1 – Primeira correspondência de Frank Sinatra a Tom Jobim, Cp489
Figura 2 – Primeiro esboço para “Garota de Ipanema”. Pi 1216 p. 54
Figura 3 – Foto da bagunça sobre o piano de Tom Jobim, p64f05
Figura 4 – Percentual das tipologias encontradas nos 32 cadernos
Figura 5 – Vários tipos documentais numa mesma página. Caderno 4, Pi 1423 p. 3
Figura 6 – Lista de temas para o filme Crônica da casa assassinada. Caderno 25, Pi 1180 p. 4 Figura 7 – Lista de lembretes para o próprio titular. Pi1160 p.29
Figura 8 – Lista de consertos necessários no carro. Caderno 25, Pi 1180 p. 14
Figura 9 – Lista de acessórios para levar em caçada. Caderno 28, Pi 1158 p. 12
Figura 10 – Esboço para a construção da casa na rua Sara Vilela. Pi 1095 p. 20
Figura 11 – Esboço para a construção da casa na rua Sara Vilela. Pi 1247 p. 49
9
INTRODUÇÃO
Durante a faculdade de Arquivologia, tive oportunidade de conhecer as idades
dos arquivos e me aproximar do estudo e prática em arquivos permanentes1. Além da
predisposição pessoal para lidar com esse tipo de acervo, os programas de estágios
(extremamente necessários, em todos os sentidos) me foram conduzindo para esse
campo. Após trabalhar em várias instituições de guarda de acervos, como Fundação
Casa de Rui Barbosa, Biblioteca Nacional e Academia Brasileira de Letras, iniciei o
trabalho de organização do acervo pessoal de Tom Jobim, junto à equipe do Instituto
Antonio Carlos Jobim, em 2002.
Tive outras experiências em arquivos; como Carlos Drummond de Andrade,
Pedro Nava, Vinicius de Moraes, Helio Pelegrino, Antonio Salles ou Miguel Paiva.
Contudo, nenhuma foi tão agradável no conjunto, com a do arquivo de Tom Jobim.
Até porque, a produção artística de Tom arrebatou a admiração de uma multidão de
fãs em todo o mundo, colaborando para colocar a música brasileira no hall of fame
dos Estados Unidos e, de lá, para ser reconhecida em outros circuitos internacionais.
A trajetória de Tom sempre vai passar pela sua grandiosidade como letrista e
sua genialidade como compositor. Mas seu arquivo pessoal chama a atenção
justamente por permitir acesso ao lado mais íntimo do maestro. Seus documentos
revelam o perfil de um homem simples, que conversava com os passarinhos e
“visitava” árvores do Jardim Botânico do Rio de Janeiro; que andava de chinelos na
rua; que foi pai-avô completamente apaixonado pela família, e que defendia
ferrenhamente os amigos, mesmo em público. A possibilidade de conhecer essa outra
face do maestro, que sem se despir de sua importância pública, cultivou as identidades
de marido, pai e amigo com bastante carinho, é muito proveitosa. Eis, portanto,
porque desenvolvi esse encantamento com o músico (sua face pública), depois que me
apaixonei por seu acervo (sua face privada). Na verdade, não conhecia muito mais
sobre Tom antes disso. Um percurso que deve ser a contramão do que acontece com a
maioria dos fãs.
1
10 O trabalho técnico em um arquivo privado é normalmente mais complexo do
que parece aos leitores desavisados ou aos administradores que o julgam como um
conjunto de gavetas. Muitas vezes o titular do arquivo registra um fato, outras não;
muitas vezes, o registro pode ter sido perdido e outras, simplesmente apagado, pois
quando existe o documento, existem, também, lacunas e incertezas. Um arquivo
privado é, na verdade, ele mesmo, um documento biográfico. Nele está reunido um
conjunto de registros sobre a própria vida: cartas, agendas, cadernos de anotações,
depoimentos ou diários. Mas, mesmo em arquivos pessoais, nem sempre é comum a
existência de documentos autobiográficos, isto é, vestígios da vida de uma pessoa, que
ela mesma tenha produzido: uma escrita autobiográfica.
Tom Jobim nunca se preocupou em escrever sua autobiografia2, e também não
chegou a ver as publicações que Helena Jobim e Sérgio Cabral fizeram sobre ele.
Mesmo sendo bastante interessado em guardar relatos e fotos de sua família e de ter,
inclusive, pesquisado a origem do nome da família Jobim, Tom não conseguiu, pelo
menos sozinho, reunir essas informações3. Pedro Nava, por exemplo, teve sua vida
literária alicerçada em sua memória (sete livros ao todo, o último interrompido por
seu suicídio). Ele guardava todo tipo de papel (rótulos, mapas, fotos) e anotava em
pequenas tiras, tudo o que se lembrava e que poderia servir de “ganchos” nos seus
capítulos, montando uma espécie de quebra-cabeças literário ou um hypomnemata4
picotado. Tom não foi um literato, mas um músico, e, como ele mesmo disse, em
várias oportunidades, era a música que o movia para a vida. Ele cuidou de guardar em
seu arquivo, registros de sua vida profissional/musical, sem perder os vínculos que o
mantinham, assim como qualquer ser humano, com suas raízes em vários outros
campos: familiar, pessoal, carreira pública. Tom foi, portanto, um mediador entre
mundos.
Esses mediadores […] desenvolvem a capacidade de lidar com dois ou
mais códigos. Seu sucesso profissional e pessoal depende de seu desempenho
2
Vale lembrar que Ana Jobim, no filme A casa de Tom; mundo, monde, mondo, considera o poema “Chapadão” como uma autobiografia, pois Tom lança, em versos, cenas de sua vida cotidiana. Esse poema está transcrito no Anexo C desse trabalho.
3
Tom teve ajuda de suas esposas Thereza Hermanny (1949-1977) e Ana Lontra Jobim (1978-1994) para reunir seu arquivo. Além delas, colaboraram Vera Alencar, museóloga contratada para organizar seu arquivo e Helena Jobim, irmã de Tom, que herdou os documentos da mãe.
4
11 como intermediários. Em uma sociedade complexa e heterogênea, papéis como
esses, nem sempre explícitos e conscientes, fazem parte da própria lógica do
processo interativo. (VELHO, 2003, p. 82)
Eis, portanto, a justificativa de Tom como mediador: ele teve o privilégio de circular
pelos campos da harmonia clássica e popular, transcrevendo seu potencial criador em
notas musicais, legíveis para outros; pelo campo lírico também, onde passeia todo
escritor/compositor, entre o mundo da poesia e o da inspiração; e o mundo dos
homens, pois escreveu em (duas) línguas os sentimentos que tinha, via e imaginava.
Ele usava seu potencial de metamorfose, mediador que era, como nos termos
de Gilberto Velho:
O potencial de metamorfose permite, em geral, aos indivíduos
transitarem entre diferentes domínios e situações, sem maiores danos ou custos
psicológico-sociais, ao contrário do que se poderia esperar, a partir de uma visão
mais estática da identidade. (VELHO, 2003, p. 82)
Assim, através do acervo acumulado pelo titular do arquivo, pode-se descobrir
a versão dos acontecimentos que ele sustenta: sua visão do mundo, seus anseios em se
fazer perpetuar como parte de uma sociedade que lhe permite assumir várias faces
identitárias. A identidade preenche o espaço entre o "interior" e o "exterior" — entre o
mundo pessoal e o mundo público. O fato de que projetamos a "nós próprios" nessas
identidades culturais, ao mesmo tempo em que internalizamos seus significados e
valores, tornando-os "parte de nós" contribui para alinhar nossos sentimentos
subjetivos com os lugares objetivos que ocupamos no mundo social e cultural. A
identidade, então, costura o sujeito à estrutura. Estabiliza tanto os sujeitos quanto os
mundos culturais que eles habitam, tornando ambos reciprocamente mais unificados e
predizíveis. (HALL, 2005, p.7)
A identidade está estritamente ligada à memória consciente que se pretende
sustentar. Memória é a capacidade de elaborar informações, fatos e experiências do
passado e reconstruí-los no presente, retransmitindo-os a outros ou não. Há a
possibilidade de rememorar fatos que dizem respeito apenas a um indivíduo (memória
individual), a um grupo, como uma comunidade ou organização (memória coletiva)
ou mesmo ao Estado e todas as instituições da esfera pública (memória nacional)
12 esses conceitos, mas é possível observar como eles se interpõem e se completam.
Embora existam vários estímulos para a memória em uma pessoa, ela sempre
precisará se coligar a outros estímulos, coletivos, para efetivamente se lembrar do
fato. Ou seja, a memória é sempre individual e coletiva, a um só tempo. É necessário
entender o limite que a memória individual pode trazer; uma memória que possa nos
tornar únicos. Sempre que selecionamos o que lembrar e, por extensão, o que
esquecer, fazemos escolhas que nos diferenciam dos outros, inclusive dos que
viveram os mesmos fatos conosco (HALBWACHS, 1990, p. 37). Essas escolhas
compõem nosso discurso, que exibe o que pensamos, o que queremos enfatizar ou o
que queremos esconder (CHAGAS, 2002, p.35). A construção da identidade de um
povo, grupo ou indivíduo passa necessariamente pelo que ele selecionou de seu
passado e como ele quer se mostrar no presente. Segundo Jacques Le Goff, “a
memória é um elemento essencial do que se costuma chamar identidade, individual ou
coletiva, cuja busca é uma das atividades fundamentais dos indivíduos e das
sociedades de hoje” (LE GOFF apud MAGALHÃES, 2006, p.4). E a memória é base
essencial da escrita, que remonta lugares, combina textos e ordena as idéias no papel.
Nessa hora, quanto maior a bagagem, maior o embaralho na produção do texto e, ao
contrário, se há falta de memória, o texto ganha lacunas. (GONTIJO, 2004, p.187)
Desde o século XVIII5, os homens comuns ganharam espaço na vida pública e
foram “descobertos” pelos pesquisadores abrindo caminhos para novas coleções em
museus, novos cursos nas faculdades, estudos e práticas mercadológicas na sociedade
em geral. Eis, então, o início da luz sobre os registros do cotidiano. Embora não seja
imparcial, como nenhuma fonte é, os documentos pessoais se destacam por uma certa
informalidade com o que se registra, pela intimidade dos conteúdos dos registros e
pelo caráter, muitas vezes, inusitado do que se registra. Por esse motivo, histórias
como a do marinheiro bordador, João Cândido, durante a Revolta da Chibata6, e de
Anne Frank no Holocausto, não passaram despercebidas. O que passa a importar é a
versão do fato, como o autor percebeu o que aconteceu.
5
Segundo Angela de Castro Gomes, datação difícil, mas segura. 6
13 Embora seja uma tarefa proveitosa, pesquisar e falar de arquivos de famosos,
de mitos7 como Tom Jobim, é preciso sempre ter em mente dois fatores: o primeiro
diz respeito à privacidade do titular e familiares e o segundo à veracidade dos fatos. A
pesquisadora Eliane Vasconcellos nos lembra da disposição que tem o autor de um
documento de caráter pessoal de se mostrar despido frente ao destinatário. As cartas, e
por extensão, os documentos de arquivos pessoais servem ao propósito de fazer-se
presentes quando não é possível a presença e de contar confidências, lembranças e
detalhes em quem se confia, um amigo próximo.
A correspondência permaneceu durante muito tempo sepultada nos
arquivos públicos ou privados, só recentemente passou a ter valor como
documento de maior importância. Os pesquisadores têm-se conscientizado de
que podem encontrar nela dados relevantes: a missiva funciona como
testemunho vivo de uma época, pode documentar uma história pessoal, registrar
situações, ações e reflexões. [...]
Por se tratar de um discurso informal, na carta se expõem idéias e
sentimentos que são reduzidos e interpretados por um terceiro — o leitor. Por este
motivo, nós, que trabalhamos com correspondências encontradas em arquivos
privados, devemos ter em mente alguns problemas de ordem ética e jurídica, que
de certa forma encontram suas raízes nas observações feitas por Bandeira ao
publicar as cartas de Mário. (VASCONCELLOS, 1998, p.8)
Carlos Drummond de Andrade também se mostrou preocupado com a guarda
e o uso dos seus arquivos (e de seus amigos próximos). Em vários momentos de seus
textos lembra do cuidado necessário com as “coisas domésticas”, como mencionado
na crônica "O quarto violado do poeta", publicada no Jornal do Brasil, de 2 fevereiro
de 1978, onde se compadece de Manuel Bandeira que recebeu uma “homenagem”,
sob forma de documentário, onde seu quarto de hotel foi filmado, sem autorização.
Mas, em nenhum outro texto Drummond se empolga tanto como no
“Museu-fantasia”, em que sugere a criação de um lugar que possa abrigar, organizar, tratar e
divulgar corretamente os arquivos dos escritores brasileiros como ele.
Outro ponto importante é o cuidado em não podermos admitir como
verdadeiro tudo o que está escrito em um documento privado. Nem mesmo
7
14 documentos oficiais, criados por governos, com formato e suporte padronizados, nos
eximem de tais considerações. Entretanto, é sempre interessante observar a seleção
realizada e a versão que o arquivo produz da vida de seu titular.
O titular de um arquivo não precisa pensar da mesma maneira durante sua
vida; ou mesmo se manter “coerente” na guarda de seus documentos ou ainda
conseguir distinguir entre o que é real e o que é ficção em sua memória. Tom Jobim
manteve fotos suas durante uma de suas caçadas a aves na mata (cerca de 1950), junto
a artigos sobre ecologia e apreciação de pássaros (desde 1986). O titular se constrói e
a seu texto/ seu arquivo, como parte de um discurso que se quer perpetuar, enquanto
esse mesmo discurso o empurra para a confirmação do personagem construído. Essas
forças não se combatem, mas buscam certo equilíbrio na “produção de si”, que se
configura como lugar de experimentação e ajuste. (GOMES, 2004, p.17)
Durante sua vida, Tom fez várias escolhas e não as lamentou, embora tivesse
lamentado suas conseqüências. Constantemente, por exemplo, reclamava da imprensa,
na própria imprensa:
[…] a imprensa do Rio, que sempre fala mal dos artistas — fala mal do Chico,
fala mal do Caetano — vem e malha. O Brasil é de cabeça para baixo, persegue
a quem trabalha. Se você trabalhar, aparece fiscal, vem a polícia. Os bandidos,
não […] as moças bonitas se apaixonam por eles. Parece coisa de Mário de
Andrade, Macunaíma… Sempre que o Brasil vai mal, eles dizem que eu estou
me mudando para os Estados Unidos. Quando o país melhora, dizem que eu
estou voltando. Mas não é nada disso. […] Sempre essa besteirada. Dizem que
eu saí daqui para fugir do Imposto de Renda, como se lá não fosse pior. […]
Aqui é que tem esse negócio, negócio de procedência maligna. Depois que eu
fiz meia dúzia de modinhas, ficaram falando mal de mim, porque eles não têm
mais o que falar. (in LOYOLA, 1988, p. 39)
Pensava que seu trabalho nem sempre era reconhecido como o era em outros
países por onde passou. A campanha de 1988 que fez para a The Coca-Cola
Company, por exemplo, repercutiu efeitos indesejados aqui no Brasil:
15
Coca-Cola querem destruir o anúncio. Acusam-me de ter vendido um patrimônio nacional, “Águas de março”. Você não pode vender música. Na época de Noel Rosa, vendia-se música, mas escondido, por baixo do pano, e quem pagava aparecia como autor, como dono da música. Quando um compositor vendia uma música, todo mundo ficava do seu lado. Sinal de que ele não estava conseguindo viver de direito autoral. (LOYOLA, 1988, p. 39)
Os homens, seres plurais por natureza, passam por momentos que determinam
seu caráter, sua personalidade e constroem seu futuro. Nenhuma pessoa que vive em
sociedade, que também é um organismo plural e dinâmico, consegue volver sua
atenção a um assunto apenas. Regina Marques, ao catalogar os livros da biblioteca de
Oscar Niemeyer, constatou que 59% são sobre Artes, 19% sobre Ciências Humanas,
2% sobre Ciência e Tecnologia e apenas 12% tratam de sua área mais estreita,
Arquitetura e Urbanismo. O mesmo se pode aplicar ao arquivo de Tom Jobim, pois
nos seus documentos há vários macro-assuntos como política, história, teatro,
ecologia e natureza, literatura além, claro, de música. Isto pode evidenciar seu
interesse não só em aperfeiçoar sua arte, mas em manter-se informado com o que
ocorria no mundo ao seu redor.
O catalogador trabalha procurando determinar os principais assuntos,
ressaltar o diferencial e perceber os detalhes que estão no documento.
Freqüentemente, há documentos de difícil leitura, uma vez que a maioria é manuscrita
e quem escreve para si, costuma entender a própria letra — o que muitas vezes não
acontece quando da intervenção técnica. Outros documentos apresentam contextos
culturais, socioeconômicos e políticos de difícil investigação e fazem referências a
pessoas e obras pouco conhecidas. Em quaisquer desses casos, sempre se faz
necessária extensa pesquisa e em fontes diversas. O trabalho do catalogador
caracteriza-se, assim, como o de um pesquisador especialista.
O capítulo a seguir deverá descrever o arquivo como um todo, desde a
acumulação feita por Tom Jobim, passando pela ordem e colaboração de sua primeira
esposa até a completa estrutura e organização dentro do Instituto Antonio Carlos
Jobim, feita por seus filhos e viúva. Logo depois, devemos nos debruçar sobre a Bossa
Nova, época mais frutífera da carreira de Tom, dando voz ao próprio titular, através
dos vários fragmentos “autobiográficos” encontrados em seu acervo. O último
16 sua vida adulta, ressaltando os documentos que melhor traduziram seu cotidiano em
casa.
DIFICULDADES ENCONTRADAS
A seguir, descrevemos algumas dificuldades encontradas durante a pesquisa
e o trabalho, ou melhor dizendo, no trabalho de pesquisa do acervo de Tom Jobim.
! Identificar as assinaturas das correspondências. Houve casos de letra ilegível, nomes em outras línguas e apelidos. Na Correspondência Pessoal, por
exemplo, o autor de uma carta se assina como Cabinha; somente após a
pesquisa descobriu-se que se tratava de Isnaldo Khrockatt de Sá, grande amigo
de Tom; o mesmo aconteceu com Bituca, que é Milton Nascimento, entre
outros tantos exemplos. Além, claro, dos apelidos familiares presentes na
Correspondência Familiar.
! Identificar os pseudônimos que Antonio Carlos Jobim utilizava. Por exemplo: Tom Joba, Tony Brazil, Tão, Antonio Carlos Brasil etc.
! Determinar datas e períodos nos Cadernos, já que muitos documentos raramente apresentavam data precisa. Entretanto, a pesquisa possibilitou
determinar uma data aproximada – seja pela composição da música, seja pelos
temas descritos.
! Reconhecer as diferentes caligrafias presentes nos Cadernos. Através de entrevista com Thereza Hermanny8, descobriu-se que estes costumavam ficar
sobre o piano ou sobre alguma mesa de fácil acesso, na sala de estar. A cada
sarau com os amigos ou mesmo trabalhando só, Antonio Carlos Jobim pedia
ajuda a quem estivesse por perto para anotar o que ele dizia, pois não queria
perder o momento da inspiração. Como ninguém assinava o documento, o
reconhecimento da caligrafia tornou-se uma tarefa intrincada e minuciosa. Para
conseguir identificar algumas, recorreu-se à Série Correspondência e a
familiares de Tom Jobim.
8
17 ! Determinar o ineditismo das letras. O trabalho de composição de Antonio
Carlos Jobim era descrito por ele mesmo como “95% de transpiração e 5% de
inspiração”. Por isso, os versos encontrados nos Cadernos ora apareciam em
uma, ora em outra letra. Ele realocava versos e estrofes, mudava o sentido da
letra, da rima, da métrica. Algumas letras encontradas nos Cadernos pareciam,
num primeiro momento, inéditas. Entretanto, com maior conhecimento das
músicas do compositor, verificou-se tratarem-se apenas de primeiras versões. É
o caso de “Garota de Ipanema”. Inicialmente, a rima e os versos eram
totalmente diferentes, assim como o título: “A menina que passa”. Todas essas
diferenças poderiam configurar uma outra composição, mas nem a letra
abandonada é uma música inédita, nem a letra gravada é outra totalmente nova.
! Pesquisar os termos técnicos em inglês, presentes na correspondência com advogados e músicos estrangeiros. As dificuldades foram sanadas com
consultas a dicionários, biografia especializada e consultas à família Jobim e a
18
CAPÍTULO 1: TOM JOBIM, COMPOSITOR DE SI MESMO
O mundo é grande e bello [sic.],
vamos fazer música, para viver! Esqueça o baixo Astral.
Bilhete de Tom Jobim, ao próprio, s.d.1
Tom Jobim nasceu a 27 de janeiro de 1927, no bairro da Tijuca, Rio de
Janeiro, e faleceu a 8 de dezembro de 1994, em Nova York. Seu pai, Jorge Jobim,
morreu quando ele ainda era criança, em 1935, tendo sido diplomata, poeta, escritor e
professor. Sua mãe, Nilza Brasileiro de Almeida Jobim, falecida em 1989, fundou o
Colégio Brasileiro de Almeida, em Ipanema, e se casou, pela segunda vez, com Celso
Frota Pessoa, em 1936. Sua única irmã, Helena Jobim, é escritora premiada, e foi
quem lhe deu o apelido de Tom Tom. Como sabemos que uma brilhante carreira não
se conquista sem investimentos, selecionamos alguns fatos de sua trajetória pessoal e
profissional, que se fundem com a própria história mais recente da música popular
brasileira2.
Pretende-se, neste capítulo, lembrar fatos da vida privada do maestro, que
foram a público ou não, mas que apresentam como característica comum o fato de
terem registros em seu arquivo pessoal. Isto porque, como já assinalamos, os arquivos
privados pessoais são repositórios de informação sobre o titular e a época em que
viveu, e mais ainda, são indicações de seus anseios e escolhas, do caminho trilhado.
Dessa forma, estamos propondo, através desse trabalho, não apenas contribuir para a
afirmação de que os arquivos pessoais são, também, arquivos (como os
administrativos) e não coleções inorgânicas, como também evidenciar que o arquivo
de Tom Jobim permite redescobertas sobre sua vida e obra. É claro que estamos
conscientes da amplitude dessa possibilidade e de que o que fazemos é apenas um
pequeno exemplo. De toda forma, o que se buscará fazer é um exercício biográfico, a
partir de fragmentos existentes no arquivo construído por Tom.
1
Esse bilhetinho encontra-se na série Correspondência Pessoal do acervo ACJ, Cp003. 2
19 1.1 BIOGRAFIAS E AUTOBIOGRAFIAS: UM PREÂMBULO
Os historiadores da Antiguidade, desde 500 d.C., começaram a usar o termo
biografia para identificar os relatos sobre a vida de alguém, normalmente famoso. A
prática de escrever biografias percorreu os séculos, voltando-se para os “grandes
homens”. Eram sempre elogiosas, visando mais ao legado político ou religioso do
biografado, como os panegíricos gregos ou os exempla europeus da Idade Média, sem qualquer preocupação de se fundamentarem no uso de documentos. Apenas no século
XIII, Boccaccio escreveu a vida de Dante, apoiando-se em um certo tipo de pesquisa
documental e introduzindo uma concepção mais moderna de biografia (BORGES,
2005, p. 226).
Entretanto, o marco da biografia moderna é a publicação, em 1791, de James
Boswell, Life of Samuel Johnson LL.D., ainda sem edição brasileira. Pelo método empregado, que além da pesquisa documental, produziu entrevistas com personagens
variados, inaugurou uma nova fase para a escrita biográfica3. Baseando-se em uma
extensa pesquisa de vinte anos, que demandou mais seis para escrever a biografia, seu
objetivo era contar a “verdade” sobre os fatos da vida de Samuel Johnson —
jornalista, crítico e romancista. A partir do livro de Boswell, as obras desse tipo
procuravam alcançar a completude da vida do biografado, mas é possível considerar a
biografia também uma rápida incursão pela trajetória de alguém, passando apenas por
datas e fatos mais relevantes. Vavy Borges (2005, p. 213), seguindo a literatura
especializada, enumera três tipos de escrita biográfica, segundo a finalidade e o grau
de elaboração:
! artigo de dicionário biográfico: um breve resumo da vida de uma pessoa
pública, por vezes famosa;
! monografia de circunstância: como elogios fúnebres ou ligados a uma
circunstância particular (breves, muitas vezes presentes na imprensa
escrita); e
! biografia científica ou literária: obras maiores, com finalidade histórica,
que trabalham com documentação numerosa e variada.
3
20 O estudo e sobretudo a escrita de biografias passou por altos e baixos através
do tempo. Eis, grosso modo, as três fases delineadas por Daniel Madelénat4: 1)
clássica, da Antiguidade até o século XVIII, praticada, principalmente, pelos gregos;
2) romântica, do século XIX ao início do século XX; e 3) moderna, a partir
principalmente da década de 1970, relacionada à Psicanálise, Ética e História.
O movimento ocorrido a partir do Renascimento, transformou as formas
medievais de relacionamento interpessoal, econômico e político. Mais ainda, a partir
do século XVIII, com o progressivo avanço das chamadas sociedades individualistas,
tornou-se possível a constituição de “arquivos”, também pela acumulação dos
“homens comuns”. O indivíduo passou a se perceber como célula de uma sociedade
complexa, mas como célula única, podendo sua memória ser interessante para si e
para os outros.
Devido à necessidade de, no século XIX, estabelecerem-se e/ou firmarem-se
conceitos que justificassem a nação e o governo, e grandes feitos de homens
públicos, as “idiossincrasias pessoais”5 desapareceram e acabaram produzindo uma
derrocada pelo interesse na biografia. Como irá ressaltar Sabina Loriga, não parecia
óbvio que o “destino individual dos homens ilustres permitia compreender as escolhas
de uma nação” (LORIGA, 1998, p.229). Mas essa situação se altera e, com o passar
do tempo, as mudanças da historiografia, sobretudo a partir do fim dos anos 1970,
produzem uma “nova História”, com destaques para o olhar individualizado e todos os
olhares possíveis dentro de um mesmo fato.
Em 1985, o assunto biografia mereceu um congresso na Sorbonne, mas,
mesmo assim, foi admitida apenas como “uma modesta ferramenta, que ajuda a
melhor observar ou a ilustrar as tendências longas, as estruturas, as forças de peso; em
hipótese alguma ela poderia pretender tornar-se uma alavanca intelectual”6.
Entretanto, a atenção que faltou aos historiadores sempre foi dada pela
Literatura, que manteve o interesse na “história de vida”7, mesmo sendo ainda dos
“grandes homens”. Talvez, vindo por esse caminho, seja plausível entender a
4
Informação transcrita por Vavy Borges encontrada em MADELENÁT, Daniel. La biographie. Paris: PUF, 1984.
5
BUCKLE, Henry T. History of civilization in England. (London, 1857-61) apud LORIGA, 1998, p.231).
6
BONIN, Hubert. “La biographie peut-elle jouer un rôle en histoire économique contemporaine?” apud
LORIGA, 1998, p. 227. 7
21 proliferação das biografias escritas por jornalistas desde a década de 1980,
impulsionando um retorno que enche as prateleiras das livrarias, deixando claro que
muitos historiadores ainda têm ressalvas com este tipo de trabalho. Um exemplo dessa
relação de amor e ódio dos historiadores para com a biografia é o exemplo do grande
medievalista Jacques Le Goff. Vavy Borges, em seu texto sobre biografia, seleciona
quatro situações: 1) na década de 1970 teve duas chances de mencionar o termo
biografia e não o fez: na coletânea Faire l’histoire, em parceria com Pierre Nora, e na enciclopédia La nouvelle histoire, em parceria com Roger Chartier e Jacques Revel 2) já em 1989, comentou “[a biografia é] um complemento indispensável da análise
das estruturas sociais e dos comportamentos coletivos”8 3) dez anos depois, elogia
veementemente: “a biografia é o ápice do trabalho do historiador”9, 4) tendo ele
mesmo se dedicado por anos a escrever São Luís, evita a ligação com a biografia afirmando: “nem meu São Luís, nem meu São Francisco de Assis são, na verdade, biografias. São Luís é a tentativa de contar, mostrar e explicar tudo que podemos saber sobre um personagem enquanto indivíduo”10.
A biografia encontrou ainda favorecimento no advento da História Oral, que
desde 194811 vem oferecendo voz e vez aos homens comuns, que sem terem sido
grandes governantes ou religiosos, participaram dos acontecimentos históricos. Uma
metodologia que está ligada a toda uma renovação historiográfica, pela qual vimos
passando nas últimas décadas, e que procura retomar o papel do sujeito na história
seja o “grande homem” ou não.
O interesse da História pelos arquivos privados/pessoais está ligada a essa
transformação maior. Os arquivos pessoais seriam, portanto, a principal fonte para o
estudo da vida privadade um indivíduo — as “‘vozes’ que nos chegam do passado,
[os] fragmentos de sua existência que ficaram registrados, ou seja, [as] chamadas
fontes documentais” (BORGES, 2005, p. 212). Sejam cartas, cadernos de anotações,
diários ou entrevistas, memórias ou relatos de amigos e parentes, enfim, o importante
é que registrem uma parcela do que o titular do arquivo quis perpetuar.
8
LE GOFF, Jacques. Revue Le Débat, n. 54, 1989 apud BORGES, 2005, p.209. 9
_____. Libération (jornal), 7 out. 1999. apud BORGES, 2005, p.209. 10
_____. Jornal do Brasil, 19 maio 2001. apud BORGES, 2005, p.229. 11
22 Cabe ainda ressaltar que cada um desses documentos são vestígios do que
aconteceu na vida do biografado. E, claro, nunca irão registrar a totalidade dos
acontecimentos, que por sua vez geraram decisões que vão impactar outras pessoas e
seus outros arquivos. Escrever sobre a vida de alguém significa fazer resumos, seleções de tudo o que viveu, partilhou, pensou… Não se devem buscar nunca a
totalidade e a homogeneidade de uma vida, pois elas não existem: todas as vidas são
fragmentadas e permeadas de conflitos.
Admitir essa característica (não é uma limitação) torna a pesquisa e o texto
mais eficiente. Todo esse debate sobre a biografia e o papel do indivíduo nas Ciências
Sociais, Filosofia, História e Psicanálise ensina como trabalhar nessa perspectiva é
algo arriscado: trata-se de iluminar uma vida, inserida em um contexto enorme e
complexo. A biografia seria para Philippe Levillain, em resumo:
(...) o melhor meio, (...) de mostrar as ligações entre passado e presente,
memória e projeto, indivíduo e sociedade, e de experimentar o tempo como
prova da vida. Seu método, como seu sucesso, devem-se à insinuação da
singularidade nas ciências humanas, que durante muito tempo não souberam o
que fazer dela. A biografia é o lugar por excelência da pintura da condição
humana em sua diversidade, se não isolar o homem ou não exaltá-lo às custas de
seus dessemelhantes. (LEVILLAIN, 1996, p. 176)
E os arquivos, nessa concepção, são os melhores exemplos da consciência e intenção
do autor em “arquivar a própria vida”, segundo expressão de Phillipe Artiéres.
1.2 UM BRASIL BOSSA NOVA
[A “Sinfonia da Alvorada” é contemporânea da Bossa
Nova]. Ela foi feita e gravada em 1959, mas o disco saiu
com data de 1960. A Bossa Nova começou por volta de 1956
e foi até o começo dos anos 60. (JOBIM in LOYOLA, 1988,
p. 38)
A esta altura percebe-se a necessidade de discorrer um pouco sobre o panorama
23 vida de Tom. Não nos propomos abranger todos os aspectos, fatos e momentos (a
bibliografia sobre o tema é vastíssima, sob todos os pontos de vista), mas somente
fornecer alguns elementos para entender em que contexto Tom chegou a ser um
grande músico.
Os anos 1950 são considerados “anos dourados” e datam dessa década: as
primeiras televisões que foram fabricadas no Brasil, da marca Invictus; o Maracanã,
inaugurado em 16 de junho de 1950; o Brasil conquistando três Copas do Mundo
(1950, 1954 e 1958); e a I Bienal de São Paulo, inaugurada a 20 de outubro de 1951.
Nessa época também houve importante modernização na imprensa, podendo-se citar o
lançamento da revista Manchete e da Editora Abril. Além disso, novas cores e matérias-primas foram introduzidas na propaganda, vindas do plástico, o Museu de
Arte Moderna, aberto em 1958, tinha linhas modernas e jardins projetados por Burle
Marx; e ainda havia os glamourosos concursos de miss e desfiles da Casa Canadá.
Após a crise política que o suicídio de Getúlio Vagas provocou no país,
Juscelino Kubitschek foi eleito e assumiu a presidência do Brasil, no ano de 1956. Seu
governo foi marcado por importantes realizações para alavancar ainda mais o
movimento de modernização que começara nos anos 1930. Bastante diferente do
último governo de Vargas, os anos JK começaram com euforia. Uma das suas
primeiras ações foi criar o Conselho Nacional de Desenvolvimento (CND) para
colaborar na montagem do Plano de Metas. Logo, emcampou a idéia visionária de
construir a capital do país no Centro-oeste, e prometeu avançar “50 anos de progresso
em 5 anos de governo”.
A construção de Brasília foi mesmo o maior feito da vida política dos anos
1950. A primeira Constituição Republicana, de 1891, já previa a construção da
capital para promover a ocupação do interior do país, mas esta foi sendo posta de lado
a cada governo. Mesmo descrente, o Congresso aprovou a Lei n° 2874, sancionada
por JK em 19 de setembro de 1956, determinando a mudança da Capital Federal e
criando a Companhia Urbanizadora da Nova Capital — Novacap. Projetada por Lucio
Costa e Oscar Niemeyer, suas obras começaram em fevereiro de 1957, com turnos
ininterruptos de 300 mil operários, por 41 meses. O Plano Piloto e a urbanização,
estruturados por Lucio Costa, e os prédios, desenhados por Oscar Niemeyer, foram
considerados, à época, grandes inovações urbanísticas e arquitetônicas. Em entrevista
24 Disse-me JK, no primeiro encontro que tivemos: ‘você vai projetar o
bairro mais bonito do mundo: uma igreja, um cassino, um clube e um
restaurante, diante de uma grande represa. Mas eu preciso do projeto do cassino
para amanhã’. […] E Brasília surgiu, praticamente uma continuação da obra da
Pampulha. E lá fomos nós, convocados por JK, para aquele fim de mundo onde,
com a colaboração eficiente de Israel Pinheiro, construiu a nova capital do nosso
país. Foram três anos e meio de angústias e esperanças, de trabalho sol a sol,
naquela solidão do cerrado onde um pouco de nós mesmos ficou, com certeza.
Depois… depois vieram a ditadura, os imprevistos da vida, esse rir e chorar que
o destino nos impõe. (MAYRINK, 2002, p.53)
A inauguração, bastante pomposa, aconteceu a 21 de abril de 1960, data
escolhida por JK, em homenagem à Inconfidência Mineira. Para dar mais glamour a
esse feito, principalmente na inauguração, Juscelino convidou os dois mais famosos
compositores da época para conceberem uma sinfonia para Brasília, contando a
heróica marcha rumo ao oeste e ao futuro promissor do país: Vinicius de Moraes e
Tom Jobim.
Há quem diga que foram os anos dourados – imagem que busca traduzir a
agitação política e a efervescência cultural dos anos 1950. Logo no início da década, o
povo brasileiro se entretinha com o rádio e o cinema nacional. Com os investimentos
financeiros nas indústrias de base, durante os governos Vargas e JK (1951-1961), foi
possível ampliar o consumo dos bens duráveis, como carros e os eletrodomésticos,
como geladeira, radiovitrolas e secadores de cabelos, além de se poder viajar no
primeiro avião comercial do Brasil, o Caravelle (LUCCHESI, 2002, p.13).
Em meio a esse otimismo, o cenário da cultura estava a franco vapor. Os jornais
anunciavam o êxito da música popular brasileira. Num recorte de 1956, com título
“As cem melhores músicas brasileiras de 1955”, da seção Disco-tocando12, está
escrito:
Aqui está a prova definitiva de que o ano de 1955 foi um dos melhores
para a música popular brasileira. Reparem que apesar do número incrível de
versões que apareceu, nossa música se distinguiu e vendeu muito bem. Isto
12
25 demonstra que não é a versão que atrapalha. Existe até a necessidade de fazer
versões. Das boas músicas, é claro. O que precisávamos era reagir de maneira
inteligente, ou seja, gravando coisas realmente boas. Dando oportunidade aos
bons compositores (Acervo ACJ, Pim 031).
E seis músicas de Tom foram contempladas na lista. “Se é por falta de adeus”,
em parceria com Dolores Duran, ocupou o 79° lugar. Outras canções, em parceria
com Billy Blanco, ocuparam do 95° ao 99° lugar: “Matei-me no trabalho” (95°), “O
Morro” (96°), “Hino ao Sol” (97°), “Arpoador” (98°) e “Descendo o Morro” (99°).
Além de mencionar o Sinfonia do Rio de Janeiro como um dos três melhores discos da Continental lançados no ano de 1955.
1.3 CONCEITUAÇÃO DE CULTURA POPULAR13
O conceito de cultura popular é, como tantos outros, abstrato e dicotômico.
Embora esteja se formando há muito tempo, ainda pode significar opostos extremos:
dependendo da conotação que se quer dar, se mostra positivo (Tom Jobim é um ícone
da cultura popular!) ou pejorativo (O funk também o é) (ABREU, 2003, p.83). No seu
texto Cultura popular na idade moderna, Peter Burke começa a ampliar o conceito de cultura, usado por Herder como o fluxo da comunidade14 para referir-se à arte,
literatura e música [...] hoje, contudo, seguindo o exemplo dos antropólogos, os
historiadores e outros usam o termo "cultura" muito mais amplamente, para referir-se
a quase tudo que pode ser apreendido em uma dada sociedade, como comer, beber,
andar, falar, silenciar e assim por diante (BURKE apud MELO, 2007)
De uma maneira ou de outra, a cultura popular reflete a produção artística (e
por que não tecnológica) do povo (sendo povo todos os participantes de uma nação)
sobre a percepção de seu meio, com as diferentes técnicas de que dispõe para fazê-lo.
13
Cabe ressaltar que não devemos comentar a discussão entre erudito e popular, nem situar Tom numa das duas áreas, mas apenas situar o leitor sobre alguns questionamentos da autora sobre o assunto.
14
26 Para uns, a cultura popular equivale ao folclore […] para outros,
inversamente, o popular desapareceu na irresistível pressão da cultura de
massa […] e não é mais possível saber o que é original ou essencialmente do
povo e dos setores populares. Para muitos, […] o conceito ainda consegue
expressar um certo sentido de diferença, alteridade e estranhamento cultural
em relação a outras práticas culturais (ditas eruditas, oficiais ou mais
refinadas) em uma mesma sociedade, embora estas diferenças possam ser
vistas como um sistema simbólico coerente e autônomo, ou inversamente,
como dependente e carente em relação à cultura dos grupos ditos dominantes.
(ABREU, 2003, p. 83)
Só a tentativa de fechar toda a diversidade e a imaterialidade dos modos de
fazer um tipo de cultura popular, já traz consigo o limite de outros conceitos também
feitos pelo povo e para o povo. A produção popular sempre houve; os intelectuais é
que ainda não tinham desenvolvido o interesse por elas. A partir do século XVIII, por
causa do movimento de formação das nações européias, o resgate da cultura popular
nacional foi a opção natural para agregar o povo e dar-lhes uma identidade comum.
Esse resgate trouxe também a oportunidade de o povo se mostrar no espaço público,
político e econômico.
Não podemos restringir as opções, e por isso, talvez, não devêssemos sequer
nomear, rotular, de uma maneira ou de outra. Talvez fosse mais coerente apenas
aceitar as misturas ocorridas em tantos séculos de convívio social do que precisar
onde começaram, quem as juntou ou por que mudaram. Pois os interesses de
momentos diferentes, ou de grupos diferentes, carregam os rótulos para uma corrente
(popular) ou para outra (erudita) ao sabor do vento.
Não vou resistir ao exemplo do concerto Jobim Sinfônico. Sempre considerado popular, pelos músicos eruditos, e elitista, pelas camadas populares, Tom Jobim
circula livremente nos dois mundos. O trabalho de seleção das suas obras e resgate
dos arranjos sinfônicos, para apresentação do concerto, agradaram aos dois grupos
que pôde ouvir, por exemplo, “Se todos fossem iguais a você”, música popular escrita
para a peça Orfeu da Conceição, tocada pelas melhores orquestras do Brasil e dos Estados Unidos.
Para este trabalho, vamos considerar principalmente a cultura popular
27 1.3.1 O POPULAR MASSIFICADO
as pessoas, as culturas, a música comunicam-se umas com as outras. Há
influências sempre novas, como disse Radamés Gnattali, pois de outro modo a
única música brasileira mesmo seria a dos tupis e guaranis, que por sua vez,
dizem os antropólogos, tem sua origem na Oceania. O uso de instrumentos
como o violino, a harpa, o oboé, a trompa, etc., na nossa música é tão lícito
quanto o do violão, do cavaquinho e da flauta que, por sua vez, não são
instrumentos inventados no Brasil. (Acervo ACJ, Pim 047)
No campo do cinema, Nelson Pereira dos Santos deslanchou problemas sociais
no seu engajado Rio 40º (1955), inaugurando o Cinema Novo. Segundo Cacá Diegues: “no caso do Cinema Novo, o projeto era muito simples — tinha só três
pontos: mudar o cinema, mudar a história do Brasil e mudar a história do planeta”
(DIRECTV, 2006). Outros grandes autores formaram o grupo: Glauber Rocha, Paulo
Cesar Saraceni, Joaquim Pedro de Andrade e Ruy Guerra tendo
todo o ideário […] baseado na discussão do nacional, na controvérsia e na
negação da versão oficial. Produto de jovens cinéfilos, intelectuais, leitores da
Cahiers du Cinema, que queriam e conseguiram marcar a época com o diálogo
entre a agenda política e a inserção dos oprimidos em um sistema onde a
exclusão era negada e escondida. (CINEMANDO (II), 2007)
Eram oposição ferrenha a tudo o que vinha da Companhia Vera Cruz paulista,
tida como interessada apenas no mercado externo, tentando rodar filmes em estúdio,
como o padrão norte-americano, com técnicos e equipamentos importados. A idéia era
abolir a produção inviável — caríssima — da Vera Cruz e com “uma idéia na cabeça
e uma câmera na mão”, procurar aproveitar a luz e o belo cenário natural do Rio de
Janeiro, trazendo formas e conteúdos novos.
Outro “inimigo” a combater era a chanchada da Atlântida. Atuando
basicamente com paródias, ridicularizando filmes estrangeiros (leia-se
hollywoodianos), a chanchada foi acusada de alienante por não se preocupar com as
28 Os anos do crescimento da chanchada, entre 1930 e 1940, foram
marcados por golpes, contra-golpes, censura e uma Guerra Mundial. Getúlio
Vargas, populismo, Estado Novo, Revolução de 32, UNE, ditadura, Filinto Muller
e DIP são alguns dos personagens destes anos tão movimentados e que traçaram o
futuro do país de forma dura e permanente. Isto sem contar a 2ª Grande Guerra e a
participação brasileira nas forças aliadas. (CINEMANDO (II), 2007).
O Cinema Novo se propôs então a criar um outro cinema: diferente do
anterior, mas condizente com as produções estrangeiras, embora engajado com as
questões sociais15. A maioria desses filmes tinha trilha sonora composta por
integrantes do movimento chamado Bossa Nova. Tom compôs trilha para, entre
outros filmes, Orfeu negro (1959), do diretor Marcel Camus, Arquitetura de morar,
de Antonio Carlos Fontoura, Porto das Caixas, de Paulo Cesar Saraceni e Gabriela, de Bruno Barreto.
No teatro, e com grande aceitação do público da época, a peça de Vinicius de
Moraes, Orfeu da Conceição, escrita entre 1955-1956, também queria dar vez ao morro. O Teatro Brasileiro de Comédia (TBC) e A Escola de Arte Dramática (EAD)16
tentavam ter maior alcance do público. O TBC modernizou o prédio do teatro,
contratou equipe fixa, com técnicos estrangeiros e importou equipamentos. Depois,
expandiu para a Companhia Vera Cruz de cinema e fechou as portas dos dois por
conta dos altos investimentos à Vera Cruz sem retorno. Grandes atores surgiram
destas companhias como Tonia Carrero, Cacilda Becker, Paulo Autran, Fernanda
Montenegro e Walmor Chagas.
O rádio foi introduzido no Brasil em 1922, na Exposição do Centenário da
Independência, montado no Corcovado. Uma estação transmitiu o discurso do
presidente Epitácio Pessoa e a ópera “O guarani”, de Carlos Gomes. A primeira
emissora surgiu em 1923, a Rádio Sociedade do Rio de Janeiro, organizada por Edgar
Roquette Pinto e Henrique Morize. Até 1930, o país contava com dezesseis emissoras
que funcionavam como associações recolhendo contribuição de seus associados para
oferecer o acesso ao som. A legislação de 1931-32 consolidou o rádio permitindo a
15
Os filmes e criadores mais importantes do Cinema Novo são: Quand le soleil dort, 1954, de Ruy Guerra; O grande momento, 1957, de Roberto Santos; Couro de Gato, 1960, de Joaquim Pedro de Andrade; Porto das Caixas, 1962, de Paulo Cesar Saraceni; Ganga Zumba, 1963, de Cacá Diegues;
Deus e o Diabo na terra do sol, 1964, de Glauber Rocha. 16
29 veiculação de publicidade sem autorização prévia do governo, o que garantiu a
geração de recursos, dispensando a contribuição dos associados. A partir daí o rádio
vai se tornando popular, se convertendo na melhor opção de informação do
trabalhador que podia aprender como escovar os dentes, ouvir a narração das partidas
de futebol e o valor do salário mínimo! A Rádio Nacional foi inaugurada por Vargas
em 1940 e realizava um trabalho fundamental de propaganda do governo e de
informação que abrangia todo o território nacional. Tom Jobim teve seu primeiro
emprego nessa instituição e teve o apoio de profissionais como Radamés Gnattalli,
maestro Guaraná, Lindolfo Gaya, Léo Perachi e Lírio Panicalli, “que era muito
ciumento dos segredos da orquestra. Ele tinha medo de que alguém roubasse alguma
idéia. ‘Tom, a gente leva tanto tempo para aprender essas coisas...’, dizia. Flauta,
clarinete ou oboé. Se mudasse essa ordem já não funcionava mais. Não tem esse som.
Lírio, paulista de Guaratinguetá, era amigo de Villa-Lobos. [...] Aquilo era uma
espécie de família da Rádio Nacional, que era uma espécie de TV Globo da época”17.
Com o legado positivo dos programas de notícias dos anos 1940, como o
Repórter Esso, a Rádio Bandeirantes montou a grade ainda mais intensa de informações a cada quinze minutos. O radiojornalismo era o principal formato, mas os
programas musicais também tiveram sua vez – programas de auditório e as
radionovelas eram a sensação do momento. Com as primeiras transmissões da TV
Tupi, de São Paulo, em 1950, o rádio perdeu espaço, mas se transformou, modernizou
e completou a TV, que ainda tinha aparelhos enormes e precários e imagens de baixa
qualidade.
Os sucessos do rock norte-americano e o começo da Bossa Nova foram
transmitidos pelas ondas do rádio. Celly Campello, Dolores Duran, Ataulfo Alves,
Aracy de Almeida foram apenas alguns intérpretes consagrados nessa época.
17
30 1.4 UMA HISTÓRIA BIOGRÁFICA DE TOM JOBIM
1.4.1 OS PRIMEIROS ANOS DE UMA VIDA
Tom gostava de falar sobre seu nascimento. Em várias oportunidades, pôde
nos dizer que nasceu em casa, num 25 de janeiro, em que faltava água no bairro da
Tijuca. Seu tio e padrinho, “Marcello Brasileiro de Almeida, corria ao vizinho
trazendo bacias d’água que o Doutor [Graça Mello]18 mandava ferver. O Doutor
pedia café incessantemente até que acabou o pó. Minha tia Yolanda recolheu os
restos dos cafezinhos, botou-os numa panela, requentou-os e conseguiu servir ao
médico o derradeiro cafezinho” (Acervo ACJ, pi979). Sua mãe, D. Nilza, era muito
jovem na época (apenas dezesseis anos) e “brincava de boneca” com ele. (Acervo
ACJ, E14).
A Tijuca era um bairro de classe média alta e, por causa das dificuldades em
manter financeiramente a família, ela acabou se mudando para Copacabana e depois
para Ipanema, no decorrer do ano de 1929. Embora tivesse orgulho de nascer na
Tijuca, perto da floresta que tanto amava, gostou muito de passar a infância numa
“Ipanema selvagem, dunas de areia branca, vegetação típica de restinga, lagoa cheia
de peixe, camarão, siri, muita gaivota branca, atobá (mergulhão), tesourão (joão
grande, carapira, urubu do mar, fragata magnífica), marreca irerê, muito socó”
(Acervo ACJ, Pi979).
O céu ainda era um viveiro de estrelas, e a cidade silenciava à noite. O
contato com a natureza durante esses anos iniciais talvez o tenha impelido a ser um
“ecólogo, antes mesmo de falarem nessas coisas” (Acervo ACJ, K7-147). A natureza
foi, sem dúvida, um dos assuntos recorrentes de Tom em várias músicas e entrevistas:
“eu devo ser a pessoa, sem máscara, que mais conhece passarinhos no Brasil. Não
sou ornitólogo, mas sou amador. Sou amador porque eu amo” (Acervo ACJ, E14).
Entretanto, pouca gente o ouviu dizer que, quando jovem, costumava caçar os
passarinhos. Inclusive, para aliviar todas essas preocupações, aceitou o convite do
amigo Tico Soledade e ficou quinze dias numa caçada pelas matas de Petrópolis19.
18
Médico obstetra também responsável pelo nascimento de Noel Rosa. http://www.clickfulano.com/camaleao.php?id=0400
19
31 Nada contraditório, pois para ser bem-sucedido na caça, teve de aprender sobre os
passarinhos, o que acabou despertando sua paixão: “Passarinho em gaiola é loucura,
os pássaros foram feitos para voar. Detesto bicho preso. Somente um homem poderia
pensar em botar um passarinho na cadeia” (Acervo ACJ, Pi979).
1.4.2 AINDA OS PRIMEIROS: CASAMENTO, EMPREGO…
Após um namoro com muitas idas e vindas, Tom se casa em 1949, com
Thereza Hermanny, amiga de Helena, sua irmã e companheira de praia. Ele tinha 22
anos, ela apenas dezenove. Esse casamento lhe deu dois filhos: Paulo (nascido em
1950) e Elizabeth Hermanny Jobim (nascida em 1956).
Como ganhava muito pouco, aceitou as condições impostas pela família da
noiva, e assinou um contrato pré-nupcial, abrindo mão de qualquer participação nos
bens da esposa. Embora não fossem abastados, o Sr. Arthur Hermanny (o
Alemãozão) não quis arriscar suas economias com um menos estudante de
Arquitetura20 e mais aspirante a músico. Foi por isso que seu padrasto, Celso Frota
Pessoa, preferiu ele mesmo garantir o sustento da nova família, e estimulou-o a
dedicar-se à música, ainda que isso significasse que, por algum tempo, tivesse de
sustentar o enteado e sua mulher. No entanto, exatos nove meses depois do
casamento, nasceu Paulo; e Tom se aflige comsua situação financeira.
Através de um pedido do seu padrinho Marcello Brasileiro de Almeida,
emprega-se como pianista na Rádio Clube e depois em casas noturnas. Essa situação
era desconfortante, pois desconsiderava sua formação clássica. Poucas pessoas,
evidentemente, prestavam atenção às músicas que ele tocava, e muito menos ainda
ele tinha chance de apresentar suas composições. Como gostava do que fazia e queria
aprender cada vez mais, passou a se dedicar aos estudos de orquestração e harmonia.
Logo percebeu que sua sobrevivência econômica dependia do seu desenvolvimento
como músico, e que não poderia permanecer por muito tempo na rotina de notívago.
Além de pôr em risco sua saúde, já afetada pelas noites mal dormidas, pela bebida e
pelo cigarro, essa rotina o irritava profundamente: era sempre obrigado a cantar o que
20
32 o público e o dono do bar queriam ouvir. Já nessa época, Tom costumava andar com
uma pastinha debaixo do braço, cheia de suas composições, e de vez em quando
mostrava para um ou outro amigo. Sempre recebia comentários elogiosos, mas não
tinha coragem nem chance de gravá-las. “Ia todo dia à avenida Rio Branco, com
aquela pastinha. Ia ao Veloso com aquela pastinha. O pessoal me gozava: ‘o que é
que você tem aí dentro da pastinha?’ Tinha arranjos... Lembro que uma vez eu fiquei
ali no Veloso com a pastinha. Tomei uns vinte chopes. Quando fui para casa, senti a
maleta pesada. Os caras tinham enchido de pedra e de terra, a pasta com os arranjos!
Eu pensei: ‘Esse pessoal não presta mesmo...’”21.
Ciente de que precisava de um emprego regular, e cada vez mais
amargurado por depender excessivamente da boa vontade do padrasto, em 1954
emprega-se na gravadora Discos Continental. Uma casa que seria fundamental para
sua trajetória, pois tinha entre seus contratados, músicos do naipe de Dorival
Caymmi, Pixinguinha, Ary Barroso e Jacob do Bandolim — todos nomes
consagrados nacionalmente. Este seria um período de intenso aprendizado.
Encanta-se com o fato de grandes peças musicais Encanta-serem compostas por artistas que não sabiam
ler uma partitura, mas que eram capazes de produzir pequenas jóias musicais. Na
Continental, inclusive, torna-se o responsável por colocar nos pentagramas as
músicas dos autores que não conheciam teoria musical. De certa forma, Tom tem a
experiência de escrever a melodia/vida dos “outros”, de ser um mediador para esse
tipo de registro e arquivamento. Não casualmente, torna-se um músico preocupado
em “escrever e guardar”. É desse tempo sua parceria com Billy Blanco22, com quem
dividiu seus primeiros grandes sucessos “Thereza da praia” e a “Sinfonia do Rio de
Janeiro”.
Em 1956, aceita um convite para ser diretor artístico da gravadora Odeon,
mas permanece por pouco tempo no cargo. Reclama que as atribuições diárias lhe
roubam o tempo para compor. Aposta que pode obter reconhecimento e sucesso com
sua música23, e decide não ter mais nenhum emprego formal. Quando desiste do
21
Essa citação foi colhida num dos painéis biográficos da exposição Nas trilhas do Tom, realizada no Rio Design Barra, em 2002, para comemorar a inauguração do Instituto Antonio Carlos Jobim. Não foi possível localizar a fonte inicial.
22
William Blanco Abrunhosa Trindade nasceu em Belém do Pará, a 8 de maio de 1924 e reside no Rio de Janeiro. É arquiteto, músico, compositor e escritor. Foi parceiro de Tom e lançou com ele o primeiro disco de suas carreiras em 1956, Sinfonia do Rio de Janeiro.
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33 cargo da Odeon, anuncia o fato ao seu superior, Harold Morris, que tenta demovê-lo
da idéia.
Eu disse: “Mr. Morris, não dá para ficar aqui, quero escrever arranjos”.
Mr. Morris disse assim: “Quando você quiser um arranjo, você pega o telefone.
Tem aqui quatro telefones na sua mesa”. Naquele tempo, o cara que tinha
quatro telefones era um assombro. Eu me lembro que meu ordenado era um
absurdo de 15 mil cruzeiros. Era tanto dinheiro que me mudei logo para um
apartamento maior. Quando saí do cargo de diretor artístico da Odeon, Mr.
Morris disse que não se podiam mudar as pintas do leopardo. Eu me senti
maravilhoso – me senti “O Leopardo”24.
Produzir sua obra — compô-la, pensá-la, executá-la — torna-se então seu
único trabalho. Embora com um início difícil e conflituoso, Tom conseguiu gravar
algumas músicas no início dos anos 1950:
Algumas das minhas primeiras músicas foram gravadas pelo Ernani
Filho, que era o cantor do Ary Barroso. Eu não tinha coragem de escrever uma
música e entregar para um cantor. Certamente, ele jogaria fora, não valeria a
pena... Mas a primeira música gravada foi “Incerteza”, pelo Mauricy Moura,
um santista que morou em São Paulo. Ele gostou e gravou. Sempre me
convidaram para gravar. Paulo Serrano, lá da Sinter, queria que eu fizesse um
disco meu. Eu fugia do Paulo, apavorado: “Esse cara quer que eu seja cantor!”.
Ernani gravou duas músicas minhas: “Pensando em você” e “Faz uma semana”,
num mesmo 78 rotações, com arranjos muito bonitos do Lírio Panicalli. Eu fiz
um foxtrote que está perdido por aí, chamado “Manhattan” em parceria com o
Aloísio de Oliveira, num disco que ele mandou para os Estados Unidos.
(Acervo ACJ, E14)
1.4.3 COMPOSITOR DE SI MESMO
Tom disse, em entrevista a Roberto D’Ávila para a Tv Manchete, em 1981,
que sua aptidão musical não foi obra do destino, mas de “sucessivos acasos” (Acervo
ACJ, E14). Talvez ele não percebesse, na época, mas todos os acasos aos quais se
24
34 referia, mais parecem escolhas realizadas para compor sua trajetória rumo ao sucesso
que pretendia.
Um desses primeiros acasos de que Tom se lembrava foi como começou a
se interessar pelo piano, e por extensão, pela música. Por volta de 1942, tinha ido
parar um piano de armário Eisenholder preto e velho (faltavam algumas teclas e o
revestimento de outras) na garagem de sua casa. Era para as aulas de Helena, sua
irmã, e para seu desagrado. Para sorte de Tom, as atividades de menino eram bastante
diferentes das de menina e ele se permitia ser íntimo do mar, das pescarias, e das
brincadeiras de então: nadar na praia, correr na areia, soltar pipa. Quando começou a
ter obrigações da vida adulta, e para impressionar os pais de Thereza Hermanny,
começou a trabalhar, foi acometido de uma “doença inexplicável” que o prostrou na
cama durante duas semanas — fez exames de “todos os caldos do corpo”, mas ficou
sem prognóstico e solução (Acervo ACJ, K7-147).
Segundo sua teoria “inconseqüente”, todos os pianistas são aleijados:
“ninguém troca uma praia azul, uma moça bonita, uma peteca, uma bola, por um
quarto escuro, um cubo de trevas, e vai tocar piano. Nenhum garoto sadio faz isso, a
não ser que tenha algo muito forte” (Acervo ACJ, E14). Portanto, Tom passou a
ouvir as aulas da irmã deitado no chão; já que sua mãe o proibia de ficar em seu
quarto durante o dia todo, convalescendo-se da “doença inexplicável”.
De repente, percebia que um som combinava com outro, e que gostaria de
misturar isso. Mas só quando seu padrasto, Celso Frota Pessoa, convenceu-o de que o
“piano não era negócio de menininha” (Acervo ACJ, E14), passou a ter as aulas
destinadas inicialmente à irmã. “Eu teria ferido meu padrasto se fosse me dedicar à
Literatura, para ser igual ao meu pai. Ele fazia gosto que eu fosse músico. Então,
quando manifestei essa tendência para a música, ele apoiou: me deu um piano, com
grande sacrifício, porque era um pobre funcionário público. [...] Fui músico porque
achei que ele ficaria mais contente. Mas, não sou aquele músico que só fala em
música. Isso é chato”.25 Tinha apenas quinze anos quando começou a compor:
fazia aquelas musiquinhas e chegavam pra mim e diziam: ‘Você não
pode fazer isso. Você está privando o Brasil de escutar isso’. Mas eu botava na
25