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2.3 C ONSIDERAÇÕES SOBRE A RQUIVOS E A RQUIVOS PESSOAIS

2.3.1 A CUMULAÇÃO E A VALIAÇÃO

O que chamamos de acumulação é a seleção feita enquanto o proprietário dos documentos decide como construir seu acervo, enquanto o fundo ainda é aberto17. Ele guarda seus documentos para registrar, comprovar, informar, lembrar e ser lembrado. Como dito anteriormente, Tom Jobim atuou diretamente na organização de seu acervo, sobretudo quando ficou claro, para ele mesmo, que poderia ter uma carreira e uma importância no cenário musical. A partir daí, Tom preocupou-se em guardar todos os tipos de documentos comprobatórios referentes a seus direitos autorais, às várias versões das letras que compunha, e às partituras de quase todas as suas músicas. Preencheu, ao lado dessa produção, 32 cadernos com anotações freqüentes sobre seu cotidiano.

Essa preocupação, em maior ou menor grau, persegue a humanidade, mas está há pouco tempo voltada para os arquivos pessoais. Assim ocorreu com o poeta Carlos Drummond de Andrade, que, contemporâneo à criação de grandes instituições e fundador de tantas outras, manifestou o desejo de criar uma que pudesse abrigar o seu arquivo e o de outros literatos: “um órgão especializado, o museu vivo que preserve a tradição escrita brasileira, constante não só de papéis como de objetos relacionados com a criação e a vida dos escritores” (ANDRADE, 1972). Esse desejo foi realizado

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Apenas para registrar, e de acordo com Marilena Leite Paes, os equivalentes nas empresas e órgãos públicos seria: correntes são aqueles que ficam próximo à mesa de trabalho; arquivos intermediários estariam em um depósito na mesma empresa, e os permanentes ficam armazenados em galpões externos próprios ou alugados.

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por seus amigos Plínio Doyle e Américo Jacobina Lacombe, resultando no mesmo ano dessa crônica, 1972, na criação do Arquivo-Museu de Literatura Brasileira da Fundação Casa de Rui Barbosa. O contrário ocorreu com Vinicius de Moraes, que mesmo antes de se tornar diplomata, estabelecer moradias de curto prazo e ter nove esposas, resignou-se com o interesse da irmã, Laetitia da Cruz Moraes, de acumular seus papéis. Conforme ela lembra, no artigo “Vinicius, meu irmão”, ele mesmo reconhecia que seu acervo era “cuidadosamente guardado, até hoje, por minha irmã, que mantém – ai de nós! – os ‘arquivos implacáveis’ da família” (MORAES, 1987, p. 21). Certamente, um exemplo paradigmático do guardião da memória.

Mesmo na “era da informação” e com a crescente popularização da internet, onde diários de anotações e agendas são públicos, a maioria dos arquivos pessoais ainda é constituída sobre alicerces íntimos, nunca impessoais. O fato de se querer manter privado, íntimo, conferindo importância ao fato de selecionar, em casa, o que vai constituir um arquivo pessoal, possivelmente no futuro, com acesso público. E é necessário que assim seja, porque o arquivo guarda todas as identidades que o homem público tem na vida privada (pai, avô, amigo, filho, esposo). No fundo ACJ, por exemplo, além das partituras e letras de músicas, há desenhos dos netos, plantas de suas casas, correspondência com amigos, fotos dos filhos etc.

Se o reconhecimento que um artista obtém está ligado à sua intervenção sobre sua obra, dentre outras intervenções possíveis, a formação de um arquivo pessoal é, cada vez mais, decisiva para a obtenção daquele reconhecimento, por produzir uma visão de conjunto da obra, feita pelo próprio autor. Isto é, o titular de um arquivo percebe que sua construção é fator importante para o reconhecimento futuro de sua obra, numa “via de mão dupla”: primeiro, o estimula a manter, no seu arquivo, um discurso coerente com o personagem que pretende ser ou é; e em segundo lugar, afirma esse personagem público, determinado dentro de seu arquivo. Essas forças buscam um equilíbrio justamente na autobiografia e no arquivo (GOMES, 2004, p. 16). Tom Jobim enxergava isso com clareza, e sua preocupação em reunir, num arquivo, sua obra, revela o quanto considerava fundamental “guardar”. Ou seja, produzir uma memória de seu trabalho como forma de preservá-lo, permitindo o acesso a essa documentação a todos os interessados, fossem músicos ou não. Assim, toda a obra estaria reunida num grande arquivo inédito, como muitos registros pessoais e profissionais.

69 Sendo um arquivo pessoal, o arquivo de Tom Jobim tem como objetivo principal a perpetuação de sua memória e legado, através de um olhar que se volta do presente para o passado, orientado por um projeto para o futuro. Um projeto pessoal que associa “memórias fragmentadas” (passados) com vontades e anseios (futuros) (VELHO, 2003, p. 101). Daí que os documentos que não puderem se relacionar com eventos acontecidos na vida do titular do arquivo correm risco de perder sentido e função. Correm esse risco, em grande parte, porque a seqüência que um documento empresta a outro, no arquivo, encontra razão, muitas vezes, apenas na memória do colecionador. Foi ele, e só ele, quem diferenciou e selecionou determinado documento para sua coleção, em meio a tantos outros. É a memória que ele quer construir e projetar de si, no tempo, através de seu arquivo, que deverá permanecer como aquilo que lhe foi mais caro, amigável e prioritário.

A seleção é talvez a mais importante das ações do indivíduo sobre os arquivos. E Tom a exerceu como poucos, tomando pessoalmente a condução do seu acervo, levando em conta suas necessidades e não deixando que a passagem do tempo o desanimasse. Ainda que imprescindível, a seleção deve ser considerada com parcimônia, pois não se pode exigir que um titular, por exemplo, doe seu arquivo completamente organizado, assim como tampouco censurar o fato de uma hemeroteca não estar completa, lamentar a falta de provas sobre alguns fatos etc.