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CAPÍTULO 3: CADERNOS PARA LEMBRAR TOM — lembranças dele, com ele e para ele

3.1 C ONHECENDO OS CADERNOS

Esse conjunto documental é composto por 37 cadernos, escritos de 1948 a 1994, com cerca de 1200 páginas válidas4. Desse total, cinco foram usados especificamente para esboços de melodias, considerados no tratamento técnico como Partituras, e, por isso, não serão aqui tratados. A maioria dos cadernos possui formato ¼, ou seja, mede 14 x 20,5 cm, tem capa dura e folhas pautadas. Todas as espirais metálicas foram retiradas durante o processo de higienização e substituídas por costura com linha alcalina encerada. As folhas estão amarelecidas e, muitas vezes, manchadas e com marcas de copos, além de outras vezes, rasgadas. Há outros tipos nesta subsérie, como os blocos de tamanho A4, sem capa.

Esses “caderninhos” de Tom guardam uma proximidade com os hypomnemata, mencionados por Foucault, mas apenas em acepção genérica já que estes “podiam ser livros de contabilidade, registros notariais, cadernos pessoais que serviam de agenda” (FOUCAULT, 1992, p. 134-35). A importância da prática desse tipo de escrita, defendida em vários momentos por Foucault, no livro O que é um autor?, é justificada pelo fato de ela tomar o papel do próximo, do ouvinte. Como, por exemplo, se ao registrar nossas faltas, evitássemos cometê-las, dispostos a não pecar e a combater o “poder demoníaco” que poderia nos enganar. Para Foucault, “a escrita constitui uma prova e como que uma pedra de toque: ao trazer à luz os movimentos do pensamento, dissipa a sombra interior onde se tecem as tramas do inimigo” (FOUCAULT, 1992, p. 131). Ou seria possível ainda, ao ler os pensamentos escritos, ter a oportunidade de revê-los e melhorar as práticas deles decorrentes. A escrita de si e para si mesmo é uma prática da askesis (significando adestramento de si), um exercício que se deve fazer para conhecermo-nos a nós mesmos e tornar rotineiro o nosso aperfeiçoamento. Esse exercício pode ser linear ou circular:

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Esse número refere-se apenas às páginas em que há informação escrita ou desenhada. Excetuando-se, portanto, as páginas em branco, ainda que pudessem ser considerados em algum outro estudo.

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meditar escrever treinar trabalho do pensamento

re

meditar escrever

ler

O objeto caderno começou a ser usado na Europa da Idade Média, feito, prioritariamente, para os usos contábeis e mercantis. Consistiam em um amarrado de folhas soltas ou em uma grande folha de papel ou pergaminho dobrada em quatro e costurada com tiras na lombada. Daí se derivou o termo quaternio, para os primeiros comerciantes italianos. Essa costura, essa encadernação, poderia ser comprada pronta ou feita posteriormente à escrita, para melhor organização do que tinha sido registrado. Essa acepção foi a primeira, assumida por Antoine Furetière, no seu Dictionaire universel, impresso em Haia, Hotterdam, em 1690, e citado por Jean Hébrard. Mas havia outras significações, segundo o autor:

O segundo sentido assinalado por Furetière remete à linguagem dos impressores (“Diz-se também das folhas mais ou menos amarradas que constituem o livro encadernado. Esse volume tem tantos cayers...”). O terceiro nos leva ao mundo das escrituras administrativas ou jurídicas, onde o termo designa uma unidade textual manuscrita que especifica seu conteúdo e lhe dá mais força: “Cayer significa ainda memoriais apresentados separadamente. Estes artigos estão em cayer à parte”. O último uso da palavra nos introduz às práticas do colégio e da universidade: “Cayers são também os escritos que os estudantes escrevem sob a orientação de seu mestre de filosofia, teologia ou qualquer outra ciência que se ensine nas escolas. Um estudante precisa reapresentar seus cayers a seu mestre para dele obter um atestado de seu tempo de estudo”. (HEBRARD, 2000, p. 36)

Embora estejam registrados esses vários sentidos desde 1690, é muito provável que o termo “caderno” tenha começado a circular muitos séculos antes, por conta da premente necessidade (inclusive jurídica) de se escrever toda negociação feita dia a dia, detalhe por detalhe. Primeiro para que existissem maneiras de ser visitado e controlado pelas autoridades, e depois, porque ninguém poderia se furtar a

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escrever o que se passou no dia. Dessa forma, mantinha-se um “livro diário” com informações que extrapolavam o sentido comercial e financeiro, posto que “não se pode negligenciar que ‘o que se faz’ e ‘o que se passa’ num dia excede obrigatoriamente a esfera estrita das trocas monetárias” (HEBRARD, 2000, p. 38). Este uso permitiu que os cadernos fossem adotados por homens públicos e comerciantes para também escrever o que tinha ocorrido, aquilo de que se lembravam ao fim de um dia. Sobretudo, o que tinha acontecido, excedendo o valor mercantil do ocorrido e abarcando uma escrita de si e de seu negócio que se tornavam, cada vez mais, inseparáveis.

Essa é a derivação que melhor se ampliou e a que mais nos interessa, pois os “cadernos” de Tom não são diários, pelo menos não como o modelo mais usual, descrevendo impressões e pensamentos, ora desordenados, ora cuidadosamente numerados. Seus cadernos, contudo, pontuam sua história de vida, e mesmo sem descrevê-la passo a passo, deixam vestígios e pistas importantes sobre seu fazer e suas inquietações. Portanto, são exemplos diferentes da principal acepção destacada por Foucault, mas podem ser pensados a partir dessas reflexões. Esse autor ressalta os cadernos como livros de vida ou guias de conduta:

Neles eram consignadas citações, fragmentos de obras, exemplos e ações5 de que se tinha sido testemunha ou cujo relato se tinha lido, reflexões ou debates que se tinham ouvido ou que tivessem vindo à memória. Constituíam uma memória material das coisas lidas, ouvidas ou pensadas (FOUCAULT, 1992, p. 135).

Ou seja, baseado em textos gregos antigos, sugere o uso intermitente de um caderno, que pudesse estar o tempo todo com seu dono, embaixo do braço. Nele se anotava o que de bom se conseguiu ouvir, presenciar e peneirar do que foi presenciado. Afinal, não se devem anotar pensamentos sem que sejam trabalhados e fixados. Este exercício foi, na verdade, o início de vários produtos, como correspondências e tratados. Mas serviu também para o fortalecimento próprio, contra defeitos, ou para superar traumas e situações difíceis.

Percebe-se então que, num primeiro momento da história dos cadernos, eles serviam para anotações diárias filosóficas, políticas ou comerciais, que auxiliassem o

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A edição consultada é lisboense, mas em todas as citações foi preferida a grafia brasileira, quando diferente da portuguesa.

94 trabalho de seu autor. Mais tarde, tornaram-se relatos espirituais, como os indicados

por São Atanásio para evitar tentações e corrigir imperfeições da alma. Num terceiro momento, sobreviveram como diários íntimos (FOUCAULT, 1992), bastante comuns no século XVIII. Atualmente, é possível manter cadernos de anotações com todas as características anteriores e inventar outras tantas, como Tom Jobim fez livremente nos seus cadernos. Se lá não estão suas memórias, ao menos é abundante a vontade de se fazer presente durante a produção dos documentos.

Le paradoxe autobiographique devient ici douloureux: si l´autobiographie sincère est ce qui doit offrir spontanément au lecteur la vérité intérieure du moi, l´écriture, instrument de méditation, fait écran au projet dans le même temps qu´elle le réalise. Tout ne peut se dire que dans l´écart scripturaire, dans ce double statut de l´écriture qui est instrument de la transparence et obstacle à la transparence (MIRAUX, 1996, p.83) 6.

Nesses cadernos, a maioria das datas não são precisas e uma parte da caligrafia também não pode ser identificada. Conforme descrito anteriormente e segundo Thereza Hermanny, os cadernos ficavam sobre o piano, a “mesa de trabalho” de Tom. Durante encontros e saraus realizados em sua casa, vários amigos eram convidados e vários apareciam como amigos dos amigos. A quem estivesse mais perto do caderno era dada a tarefa de escrever algum momento de inspiração ou um lembrete. Portanto, a tarefa hercúlea de identificação da autoria de todos os textos escritos nos cadernos foi executada, mas não a contento, tendo ficado alguns registros sem identificação de autoria.

A numeração escrita numa etiqueta e colada na capa de cada caderno, pela museóloga Vera Alencar, não é linear, como podemos perceber na Tabela 1 abaixo, pois não obedeceram a um critério anterior ou estruturado. Esse código perdurou pelos anos, mas de forma não muito confiável, pois quando de sua indexação na base de dados do Instituto Antonio Carlos Jobim, algumas etiquetas tinham caído e outras estavam duplicadas. A revisão da numeração ia ser feita após o conhecimento de todo o conteúdo, mas até hoje essa tarefa ainda não foi levada a cabo. Entretanto, isso não

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Tradução livre da autora: O paradoxo da autobiografia se torna aqui doloroso: se a autobiografia

sincera é a que oferece espontaneamente ao leitor a verdade interior do eu, a escrita, instrumento de meditação, impede o projeto ao mesmo tempo em que o realiza. Tudo o que se pode dizer da diferença de escritura, deste duplo estatuto da escrita, que é instrumento da transparência e obstáculo à transparência.

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impede a recuperação da informação e a pesquisa nos documentos, mesmo que digitais. Essas etiquetas eram apenas uma medida de emergência para separar e diferenciar alguns cadernos de outros. Mas, a escrita dos cadernos mostra-nos um encadeamento muito interessante — uma ordem em que foram agrupados. São 37 “caderninhos” que chegaram aos dias de hoje, e certamente contêm lacunas de tempo e espaço; percorrem toda a vida adulta de Tom (dos 25 aos 67 anos); tornam possível mostrar parte do cotidiano do maestro, suas relações com a família (mãe, filhos e esposas) e com os amigos; e até as angústias das obras nas casas em que exercitou seus conhecimentos como arquiteto.

A seguir, há uma breve descrição dos 32 cadernos que foram considerados para esse trabalho, excetuando-se os cinco só de Partituras:

Tabela 1: Descrição dos 32 cadernos

CADERNO CÓDIGO PERÍODO7 QTD DESTAQUES OBSERVAÇÕES

Caderno 1 Pi1090 Sem data 102 fls.

letras e esboços de "Vou te contar", "Soneto da separação" e "Tempo vadio", além da lista das suas 235 músicas, com cada parceiro.

Capa manchada e rasurada. Algumas músicas são inéditas. Caderno 2 Pi1093 1959- 60

72 fls. texto sobre sua iniciação musical; letras de músicas com Newton Mendonça, Aloysio de Oliveira, Vinicius de Moraes; esboços de "Samba de uma nota só" e "Olha pro céu"; roteiros e informações sobre o programa Bom Tom; artigo sobre o mercado fonográfico.

A capa está boleada por umidade. As páginas 145 e 146 estão reservadas. Algumas músicas são inéditas. Caderno 3 Pi1078 1958- 61

53 fls. letra de "Frevo de Orfeu", letra inédita de Di Cavalcanti e Newton Mendonça, contracapa do disco Por

Nunca foi gravada nenhuma música em parceria com

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toda minha vida, várias cópias de letras de músicas. Di Cavalcanti. Algumas músicas são inéditas. Caderno 4 Pi1422 10 fev. 1957 a 12 jan. 1959

58 fls. Poemas, desenhos, notas e letras de músicas passadas a limpo por Vinicius de Moraes, incluindo títulos trocados. Ex.: “O amor demais” x “Canção do amor demais” e a inédita: “Alguém em algum lugar”. Poema bestialógio “Vulvêmora”, assinado por Iktinius de Moraes.

Algumas músicas são inéditas.

Caderno 5

Pi1216 1958 40 fls. Texto de ACJ sobre sua família e a primeira versão de "A felicidade" e "Desafinado".

Caderno 6

Pi1221 1976 61 fls. Contracapa do disco Urubu e vários desenhos para a construção da casa em Poço Fundo. Essa construção, cheia de paus e pedras, gerou a música “Águas de março”. Caderno 7 Pi1229 Sem data

12 fls. Letra de "Two Kites", letra inédita "A chestnut tree in blossom…" Caderno

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Pi1233 1970- 79

40 fls. Repertórios de shows, listas dos discos Urubu e Elis & Tom, tentativa de versão para o inglês da letra de "Matita perê".

A versão de “Matita perê” nunca foi terminada. Caderno 9

Pi1234 1973 48 fls. Esboço da letra de "Lígia" escrito por Chico Buarque.

Caderno 10

Pi1247 1973 52 fls. Letras de "Ana Luiza", "Ângela", preparação para a construção da casa no sítio em Poço Fundo.

A capa está solta.

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11 data Chico Buarque. caderno, escrito

na capa, está riscado. Caderno

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Pi1255 1974 67 fls. Letras de música de ACJ e Chico Buarque, esboços para a construção da casa em Poço Fundo.

Caderno 13

Pi1256 Sem data

48 fls. Contracapa do disco Miúcha e Antonio Carlos Jobim e esboço das versões de "Ligia", "Matita perê" e "Ana Luiza". Esboço de "Double rainbow" no verso da capa.

Há alguns documentos com caligrafia de Vinicius de Moraes e Chico Buarque. Caderno 14 Pi1095 1973- 76

65 fls. Plantas e croquis do sítio em Poço Fundo, trabalho de arquitetura de Paulo Jobim e desenho de Elizabeth Jobim.

Esses desenhos datam do início da carreira de Beth Jobim como pintora.

Caderno 15

Pi1423 1973- 77

60 fls. Esboços de "Matita perê", tanto para a letra quanto para o disco, de "Bebel", além de carta a Frank Sinatra.

Caderno 16

Pi1105 1975- 77

57 fls. Descrição de orixás, estudos para o disco Urubu.

Caderno 17

Pi146 1962 48 fls. Repertório para The Composer of Desafinado plays; estudos de letras para “The Girl from Ipanema”, “Dreamer” e “The Jazz and samba”.

Algumas letras da parceria com Norman Gimble não foram usadas. Caderno

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Pi1149 Sem data

38 fls. Esboço do poema "Chapadão", das músicas "Bebel", "Maria é dia" e "É eterno". Algumas músicas são inéditas. “Chapadão” é o maior poema de ACJ.

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19 89 elogioso sobre Villa-Lobos e

desenho do Horácio, de Maurício de Souza.

Caderno 20

Pi1156 1983 52 fls. Esboço da letra da música

"Gabriela". Caderno 21 Pi1160 1987 110 fls. Esboço de "Chansong" e "Gabriela"; roteiro para o show no Palácio das Artes, letras de várias músicas e versão em francês de "Luiza".

Esse show saiu em CD em 2004, com o título de Tom Jobim em Minas, piano e voz. Caderno 22 Pi1161 1970- 79

50 fls. Roteiros de ACJ para os filmes A casa assassinada e Tempo do mar, listas de afazeres pessoais, lembretes, telefones e crônica sobre José Carlos Oliveira.

Tom fez trilha para os dois filmes mencionados. Caderno 23 Pi1114 1950- 59

32 fls. Letras de músicas transcritas por Thereza Hermanny.

Quase todas estão copiadas com papel carbono e serviam uma para ser registrada como estava e a outra para ser modificada. Caderno

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Pi1056 1950 a

52

27 fls. Relação das despesas domésticas da casa durante dois anos.

Caderno 25 Pi1180 Sem data 100 fls.

Experiências com palavras em inglês, lista de problemas com seu

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carro e repertórios de shows. Caderno

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Pi1260 1950- 52

46 fls. Relação de despesas domésticas e esboços de letras de música em parceria com Newton Mendonça. Caderno

27

Pi1132 77 fls. Roteiros de shows; letras de

músicas para a minissérie O Tempo e o vento; esboço de poema para Luma de Oliveira.

Caderno 28

Pi1158 1954 11 fls Esboços e letras de músicas contidas na Sinfonia do Rio de Janeiro.

Caderno 29

Pi1166 Sem data

7 fls. Transcrição das letras de músicas "Não devo sonhar" e "A chuva caiu". “Não devo sonhar” permaneceu inédita. Caderno 30 Pi1136 1980- 89

13 fls. Esboços de músicas, repertório do show no Carnegie Hall e com Gal Costa. Algumas folhas estão rasgadas. Caderno 31 Pi1146 1990- 94

14 fls. Esboços de músicas, roteiros de shows e de figurinos para show. Caderno

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Pi1264 1950 18 fls. Esboços de letras de músicas inéditas e o poema "Triste romance".

Um dos poucos poemas de ACJ.