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1.3 C ONCEITUAÇÃO DE C ULTURA P OPULAR

1.4.4 A LGUNS ENCONTROS I MPORTANTES

Não houve um encontro. Pelo menos não apenas um. Aquele encontro tão conhecido no bar Veloso, em início de 1956, foi apenas o principal. Mas antes dele, Tom e Vinicius já tinham se encontrado algumas vezes no Clube da Chave31, por volta de 1953. Ali, Tom podia tocar sem os insistentes pedidos do público dos bares. Sentia-se à vontade para mostrar suas composições, e conhecia grandes compositores e músicos de seu tempo: Luiz Gonzaga, Jackson do Pandeiro, Braguinha, Antonio Maria, Lúcio Alves, Luiz Bonfá, entre outros. Vinicius lembra a Tom, na gravação do

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Associação idealizada por Humberto Teixeira. Humberto Cavalcanti Teixeira foi advogado e deputado federal. Nasceu em Iguatu (CE), filho de João Euclides Teixeira e Lucíola Cavalcante Teixeira, a 5 jan. 1915 e faleceu no Rio de Janeiro a 3 out. 1979. No entanto, é nacionalmente conhecido como parceiro de Luiz Gonzaga, o Rei do Baião. Um grande sucesso da dupla é a composição “Asa Branca”, lançada em 1947.

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Depoimento para a posteridade, que quando o ouviu tocar numa dessas reuniões, se impressionou: “Nunca ouvi ninguém tocar assim. Um som que parecia um som diferente que estava se fazendo com ‘Foi a noite’ e ‘Outra vez’. Fiquei impressionado”. (Acervo ACJ, K7-147).

A parceria de Tom e Vinicius começou exatamente num aperto de mão no bar Villarino, em 1956, quando Lucio Rangel os apresentou. Vinicius contava ao Lucio que pretendia encontrar um compositor calouro para compor sua peça Orfeu da Conceição. Vinicius disse que “não queria nenhum ‘monstro sagrado’. Achava que precisava de sangue jovem” (Acervo ACJ, K7-147). Vinicius explicou seu projeto e entregou o roteiro a Tom. Tom precisava manter sua casa, chefe de família que era, com esposa e filho pequeno, e por esse motivo, cometeu uma pequena gafe perguntando “Tem um dinheirinho nisso aí? Como todo mundo, eu já tinha entrado pelo cano. Já tinha feito música para aqueles filmes de chanchada. O sujeito leva um ano para fazer o filme e quando vai gravar a música o orçamento está estourado e dizem ‘vamos gravar amanhã’” (Acervo ACJ, K7-147). Estranhamentos à parte, a conversa fluiu e a parceria mais ainda. Não foi só Lucio Rangel e a necessidade financeira que os uniram, mas a empatia de ambos, a competência de Tom e a inventividade de Vinicius. A possibilidade criativa desse encontro foi noticiada em uma coluna de jornal32 com os simples dizeres: “Vai ser formada em breve uma dupla sensacional: Tom e Vinicius de Morais [sic.]. Sabem lá o que é isso?” (Acervo ACJ, Pim 038).

Mesmo que não tenha sido o primeiro, o encontro informal no bar Veloso foi realmente marcante e iniciou sua mais produtiva e intensa parceria musical. Se todos fossem iguais a você foi a primeira música que compuseram juntos. Embora não tenha sido de pronto, pois Tom comentou, em diversas entrevistas, que no início, eles fizeram uma meia dúzia de “musiquinhas sem graça”. No Depoimento para a posteridade, ao Museu da Imagem e do Som, ele declara: “no princípio fizemos uns três ou quatro sambas ruins. Eu disse ‘vamos fazer mais desses ruins que depois solta’, [Vinicius] ‘tava meio preso.’ ‘Ou seja, faltavam uns dois ou três uísques’”. (Acervo ACJ, K7-147).

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Esse é um exemplo da ansiedade de ambos, pois Tom já tinha emplacado algumas boas canções no rádio e gravado em disco a “Sinfonia do Rio de Janeiro”, em parceria com Billy Blanco. De outro lado, Vinicius já era o poetinha que em 1933, lançou seu primeiro livro, O caminho para a distância33. Tinha na bagagem oito livros com boa aceitação, duas peças, As feras e Cordélia e o peregrino e era o diplomata mais excêntrico de seu tempo.

A convivência com Vinicius foi maravilhosa. Aquela amizade, a gente ria, a gente saía, comia umas coisinhas, “comidinha de bêbado”, como dizia ele. Uns camarõezinhos e aquele uísque todo. Antes de me conhecer, ele bebia chope no Alcazar. Depois, com a ida para o Itamaraty, foi levando a vida no uísque. Vinicius me levou para aquelas casas bonitas do Cosme Velho, aquelas mulheres bonitas, cheirosas. Ele conhecia a alta sociedade do Rio, esse pessoal tradicional34.

Foi com essa bagagem que começou a produção de Orfeu da Conceição, primeira peça com o elenco inteiramente de negros. A peça trazia como Orfeu o famoso cantor Haroldo Costa, e a iniciante Daisy Paiva no papel de Eurídice. Como a Morte, ou melhor, a Dama negra, o campeão olímpico do salto triplo Adhemar Ferreira da Silva. A direção era de Leo Jusi, figurinos de Lila de Moraes, coreografia de Lina de Luca e cenários de ninguém menos que Oscar Niemeyer. A peça estreou a 25 de setembro de 1956 no Theatro Municipal do Rio de Janeiro. Críticas a favor e contra, o certo é que a peça conseguiu muita repercussão e que, mais tarde, foi adaptada para o cinema. O filme ganhou a Palma de Ouro, em Cannes. Durante a entrevista de Tom no Depoimento para a posteridade, Vinicius de Moraes denuncia a implicância de alguns por esse pioneirismo da peça e lembra que ouviu:

Por que vocês não filmam coisas bonitinhas? Copacabana Palace? [pausa] Inclusive essas coisas devem ser ditas porque as pessoas precisam saber

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Livro de estréia de Vinicius de Moraes, onde reuniu seus primeiros poemas. Substituindo o prefácio, ele escreve: “São quarenta poemas intimamente ligados num só movimento, vivendo e pulsando juntos, isolando-se no ritmo e prolongando-se na continuidade, sem que nada possa contar em separado. Há um todo comum indivisível.” (MORAES, 2004, p. 165)

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Essa citação foi colhida num dos painéis biográficos da exposição Nas trilhas do Tom, realizada no Rio Design Barra, em 2002, para comemorar a inauguração do Instituto Antonio Carlos Jobim. Não foi possível localizar a fonte inicial.

41 delas mais tarde: o Embaixador Alves de Souza lutou fortemente pro filme não ser mandado pro Festival de Cannes porque é de negros. (Acervo ACJ, K7-147).

Foi a partir desse grande sucesso que Tom pôde escolher os lugares onde queria tocar, e se tornou a atração principal da noite, começando a mostrar em público suas próprias composições. Teve reconhecimento de todos os músicos da época, até mesmo de Villa-Lobos, por quem Tom mantinha especial admiração. Tom teve a oportunidade de, em 1957, visitar a casa do maestro junto de Leo Perachi, seu amigo e professor de piano. Esse encontro o marcou tanto que, cerca de trinta anos mais tarde, escreveu um artigo elogioso ao Villa-Lobos e publicou no seu livro Ensaio poético. Tom declara:

Villa era moleque, fazia sempre molecagem. Quando estreou o Orfeu da

Conceição, ele estava vendo aquilo tudo, morava ao lado do Municipal. Eu

perguntei se conhecia o Orfeu da Conceição. Villa disse que sim e começou: “Conceição, eu me lembro muito bem...”, citando o sucesso do Cauby Peixoto. Villa sabia de tudo, inclusive ele falou com o Claudio Santoro: “Olha, eu estou partindo, mas os dois que podem me seguir: um é você, o outro é o Tom Jobim. Cuidado com o Tom na canção de câmara, ele sabe escrever, é um perigo35.

Anos depois, em 1963, já desfrutando de grande fama nacional, Tom viaja para os Estados Unidos, com alguns músicos jovens, lá permanecendo por oito meses. Essa viagem foi um pedido do Itamaraty, ao qual Tom não pôde evitar. Aos 36 anos fez sua primeira viagem internacional, mas disse que

A Bossa Nova, realmente, deu grandes frutos: o encontro com Vinicius, com João Gilberto, com Newton Mendonça, Dolores Duran... a gente acabou fazendo uma porção de músicas. E acabamos sendo mandados para os Estados Unidos pelo Itamaraty. Eu não queria ir. Queria ficar aqui no Brasil e coisa... mas tive de ir. Eu nunca tinha saído do Brasil. Quando me vi lá, disse “peraí, não adianta querer correr pra casa”, o que era muito tentador, por causa daquela neve toda. (JOBIM, 2007).

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Mais do que ninguém, ele sabia da necessidade de estar presente, principalmente para que as versões em inglês de suas músicas não as desfigurassem, mas também para lançar sua carreira. No final de 1964, parte para Los Angeles, desta vez com a família, e prepara seu primeiro disco solo, The wonderful world of Antonio Carlos Jobim. Trabalhos e parcerias não lhe faltavam e sua casa tornou-se ponto de encontro de vários músicos brasileiros de passagem pelos Estados Unidos.

Por conta do reconhecimento que Tom obteve durante sua estada nos EUA, recebeu, no bar Villarino, um breve telefonema de Frank Sinatra. Ele tinha enviado um telegrama, assinando como Francis Albert, pouco tempo antes, solicitando o telefone de Tom e fornecendo seu endereço.

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Tom ainda tinha dificuldades de se comunicar em inglês, mas ouviu atentamente o convite para ir aos Estados Unidos tocar no programa A man and his music, com o próprio Frank Sinatra, e aceitou. O programa foi ao ar a 1 de outubro de 1967 e contou com outra brilhante participação: a da cantora de jazz, Ella Fitzgerald. Sinatra interpretou com ACJ "Quiet nights", "Change partners", "I concentrate on you" e "The girl from Ipanema", numa divertida versão, onde Tom faz brincadeiras com a letra e com a maneira de cantar (Acervo ACJ, E02). A versão da letra para o inglês e o contato com o Sinatra realmente despertaram a atenção do mundo para esse movimento do homem que olha uma moça bonita a caminho do mar. A praia e o nome Ipanema eram desconhecidos e o versionista americano, Normam Gimble, não queria colocar esta palavra porque se aproximava de uma marca de pasta de dentes. Tom insistiu e o convenceu: afinal, “o local é importante. É onde passa a garota! E tem aquele sentimento universal, que é de você estar sentado e aquela garota linda que passa. Talvez por isso a canção tenha furado o tempo, tenha continuado. Porque as moças continuam indo à praia e estão cada vez mais lindas” (JOBIM, 2007 ou Acervo ACJ, D12)

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Figura 2 – Primeiro esboço para “Garota de Ipanema”, Pi 1216 p. 54

Diz Paulo Jobim, em entrevista a Alex Solnik, ainda inédita:

O sucesso de “Garota” foi surpresa para qualquer pessoa. Até pro meu pai. Até o ponto de, um pouco, ele cansar de tocar. [...] Não me lembro do meu

45 pai contando como ela foi feita. Mas tem a história de que ela foi feita para uma peça de teatro que o Vinicius queria fazer. Provavelmente, uma letra completamente diferente, que não tinha nada a ver com isso. [...] Tem um rascunho36 dele ainda falando de gaivota, de pássaro... tem uns rascunhos do meu pai e uns rascunhos do Vinicius, que vão e voltam até virar a letra final. Ela deu um bocado de voltas. (SOLNIK, 2007)

Após esse frutífero contato inicial, Tom e Sinatra ficaram bastante amigos e projetaram o disco Albert Francis Sinatra e Antonio Carlos Jobim. A boa acolhida nos Estados Unidos gera em Tom um sentimento especial de gratidão com relação a esse país. Nunca escondeu de ninguém a sua grande admiração pelos Estados Unidos, ainda que nunca tenha se tornado um americanista ou, como muitos fizeram, americanizado sua música. Como Tom passou a morar nos EUA, para trabalhar sua carreira internacional, é bastante bissexta a correspondência entre ambos. Apenas dois documentos37 a registram brevemente: o telegrama-convite, de 19 de julho de 1968, apresentado anteriormente; e dois rascunhos de carta de Tom Jobim, de janeiro de 1977, referindo-se a Frank Sinatra como “Dear (brother) Francis” (Acervo ACJ, Pi1423 23 e 24).