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Tom Jobim foi colecionador de sua própria obra/vida, pois registrou de várias maneiras, e em vários suportes, as passagens que melhor a ilustravam, segundo ele mesmo. Nem sempre é fácil depreender seus critérios, mas o que queremos enfatizar é que eles existiram no arquivo de Tom e existem em todos os arquivos pessoais.

Desde o início de sua carreira como músico, por volta de 1942 (apenas com quinze anos), Tom Jobim acumulava documentos no intuito de manter o registro das

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letras e melodias que acreditava poder um dia gravar, com o afinco de quem tinha a esperança de se tornar famoso. Durante muitos anos teve de se contentar em andar com uma pasta cheia de composições próprias e mostrá-las apenas aos amigos. Isto porque os responsáveis pelos bares onde se apresentava exigiam que ele tocasse apenas os hits americanos ou os clássicos franceses. Na preciosa gravação da série Depoimentos para a posteridade1, Tom diz: “Comecei a guardar as músicas na gaveta. Não mostrava pra ninguém; tinha medo” (MIS, 1967, K7-127). Mas, quando, em 1956, conseguiu gravar e orquestrar seu primeiro disco, Sinfonia do Rio de Janeiro, junto com Billy Blanco, e constituiu parceria com Vinicius de Moraes para a peça Orfeu da Conceição, Tom resolveu guardar suas composições (e versões) com um cuidado que já indicava o projeto de ser e de se manter famoso.

Como fica claro pela epígrafe deste capítulo, Tom pretendia reescrever os arranjos que se haviam perdido com o tempo2. Embora esse trabalho só fosse levado a cabo por seu filho Paulo Jobim, em 2001, com a publicação Cancioneiro Jobim, era esse o seu desejo, desde 1967, quando menciona: “Outro dia encontrei com a Elizeth [Cardoso] que tem um Saci pra me dar há quatro anos! Eu quero todos os prêmios pra colocar lá em casa. Senão, a coleção fica desfalcada” (MIS, 1967, K7-127). Desde o início de sua carreira, portanto, ele procurava manter os documentos e objetos que comprovassem o resultado do seu trabalho ou que informassem sobre seu processo de criação musical. Longe de parecer um capricho, tal fato mostra que Tom tentava, com cuidado, preencher lacunas abertas, reescrever sua obra e reuni-la num corpo único – sempre no seu arquivo pessoal.

A preocupação de Tom em acumular seus documentos foi herdada pelos filhos e viúva. Algum tempo depois de sua morte (8 de dezembro de 1994), a família tinha a obrigação de cumprir o principal projeto de Tom, antes de morrer: publicar seu cancioneiro, que ele havia começado com Paulinho tempos antes. Ao longo desse “primeiro mergulho no acervo” (JOBIM, 2008), outros projetos inacabados deveriam seguir em frente, como por exemplo:

! a edição de toda a sua obra musical, corrigida por ele mesmo;

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Museu da Imagem e do Som. Depoimentos para a posteridade: Tom Jobim. Rio de Janeiro, 1967. Documento acessado no arquivo pessoal de Tom, no Instituto Antonio Carlos Jobim, K7-127.

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Várias razões contribuíram para esse desaparecimento: além de condições ambientais, perdas e mudanças impostas pelas gravadoras, algumas partituras foram entregues a intérpretes e músicos e não foram devolvidas.

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! a confecção do material que idealizou para sensibilizar crianças para a preservação da natureza e a introdução à música;

! a compilação e repaginação de suas obras sinfônicas; ! a revisão de alguns álbuns e a edição de novos;

! a gravação de músicas inéditas, que preparava e que inclusive, deixou sobre o piano, antes de seguir para o hospital onde faleceu.

Muitos dos documentos necessários para a concretização desses projetos estavam guardados no seu arquivo pessoal, que até então, só ele conhecia. Isso, mesmo que, vez por outra, sua segunda esposa, Ana Jobim, o ajudasse a organizar alguns documentos e que durante um bom período, a amiga Vera de Alencar tivesse sido contratada também para esse fim.

O arquivo começou sem intenção. A Thereza começou a guardar em envelopes pardos todos os recortes de jornais e documentos que tinha. Quando me mudei com Tom para a casa da rRua Peri, aquilo tudo veio e não sabíamos muito bem o que tinha lá e o que fazer com eles. Quem sugeriu a Verinha foi a Thereza, porque era amiga dela. Ela começou a catalogar tudo aquilo e criou um sistema de cópias para evitarmos o manuseio. Esse foi o início. Depois a Verinha sugeriu a Piedade Grinberg para trabalhar os jornais fisicamente e a parte do conteúdo também. (JOBIM, 2008)

Como Vera Alencar tinha várias outras ocupações, e tendo dado por findo o trabalho no arquivo de Tom, ele voltou a ser acumulador e organizador de seu próprio acervo, organizando seu passado através desses documentos, e tendo como projeto3 deixar, por meio desse conjunto documental, seu principal legado.

A solução encontrada pela família para levar a cabo tal projeto foi a reunião desse arquivo, que estava dividido entre as três casas de Tom4, e, também, nas casas de seus dois filhos mais velhos, Paulinho e Beth. Esse foi o primeiro passo para tomar

3 Definição de projeto, segundo Alfred Schultz e Helmut Wagner citados por Gilberto Velho em

Projeto e metamorfose: ação deliberada para atingir um objetivo. “A ação deliberada resulta de

planejamento, do estabelecimento de um objeto e de imaginá-lo sendo realizado, e ainda da intenção de realizá-lo, independente do plano ser vago” (VELHO, 2003, p. 103).

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As casas de Tom onde estavam seus documentos eram: na rua Sara Vilela, no bairro do Jardim Botânico (Rio de Janeiro), no seu apartamento, onde morava parte do ano em Nova York, e o sítio Poço Fundo, em São José do Vale do Rio Preto, cidade próxima de Petrópolis (Rio de Janeiro).

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conhecimento de seu volume documental, localizar quais documentos poderiam auxiliar a concluir aquele projeto e juntar informações e idéias para o lançamento de outros. Aos poucos, a família reuniu, na casa do filho mais velho, os baús e armários para então perceber, pelo volume e diversidade – próprio a todo arquivo pessoal –, que essa era a maior obra que Tom lhes tinha deixado. Portanto, faziam-se imperativas a institucionalização do arquivo e a profissionalização de seu trabalho de organização. A partir dessa iniciativa, os principais projetos de vida de Tom puderam ser concluídos. De forma esquemática, os resultados foram:

! os cinco volumes do Cancioneiro Jobim, livro póstumo que reúne sua obra musical, com as correções nos arranjos, que Tom tanto queria. As correções foram feitas, em parte pelo próprio Tom e terminadas por Paulo Jobim. Esses livros motivaram, inclusive, a criação do selo Jobim Music Editora.

! a primeira edição do Tom da Mata5, em 1998, desenvolvido, mantido e distribuído pela parceria entre Furnas Centrais Elétricas, Eletrobrás, Eletronorte, Instituto Antonio Carlos Jobim e Fundação Roberto Marinho. Consiste em um projeto de educação ambiental e musical que capacita professores da rede pública a usarem, de forma criativa, os itens distribuídos, gratuitamente no kit: cinco fitas VHS, uma fita cassete, dois livros didáticos, um mapa, várias sementes de árvores nativas e um jogo de estratégia. Esse projeto deu bons frutos e estimulou, até agora, outras duas versões: Tom do Pantanal, em 2002, e Tom da Amazônia, em 2006, além da reedição do Tom da Mata, em 2007.

! o projeto Jobim Sinfônico, realizado por Paulo Jobim e Mario Adnet, que pesquisaram, reuniram e adaptaram os arranjos sinfônicos escritos do maestro (“Brasília: sinfonia da Alvorada”, “Orfeu da Conceição”, “Se todos fossem iguais a você”, “Lenda” e “Prelúdio”, inéditos) e escreveram outros, que ele não teve oportunidade de aprontar (“Saudade do Brasil”, “Imagina”, “Modinha”, “A casa assassinada”, “A felicidade”, “Matita Perê”, “Gabriela”, “Canta, canta mais”, “Meu amigo Radamés”, “Garota de Ipanema” e “Bangzália”). O show do projeto foi realizado na Sala São Paulo, nos dias 9 e

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11 de dezembro de 2002, sob a regência de Roberto Minczuk. Posteriormente, foi lançado em CD duplo e DVD.

! a remasterização dos álbuns “Tom Jobim ao vivo em Montreal”, “Tom na Mangueira”.

! a edição de Tom Jobim em Minas. Ao vivo, piano e voz, e de dois volumes de Tom Jobim: Perfil.

! e mais recentemente, em 2007, a edição do DVD A casa do Tom; mundo, monde mondo, um filme de Ana Jobim sobre fragmentos, memórias e registros de Tom. Segundo a autora, “uma biografia de quinze anos”.