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A violência nossa de cada família: notas sobre a violência intrafamiliar contra a criança

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(1)

DEPARTAMENTO DE SERVIÇO SOCIAL - DESSO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SERVIÇO SOCIAL - PPGSS

Notas sobre a violência intrafamiliar contra a criança

Natal/RN 2004.2

(2)

EDJANE MARIA VALE LINHARES

A violência nossa de cada família:

Notas sobre a violência intrafamiliar contra a criança

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Serviço Social do Centro de Ciências Sociais Aplicadas da Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN como parte dos requisitos para a obtenção do grau de mestre em Serviço Social, na área de Sociabilidade e Relações Sociais.

Orientador:Prof. Dr. Orlando Pinto de Miranda

(3)

EDJANE MARIA VALE LINHARES

A violência nossa de cada família:

Notas sobre a violência intrafamiliar contra a criança

Dissertação aprovada pela Banca examinadora como requisito parcial para a obtenção do grau de mestre em Serviço Social, na área de Sociabilidade e Relações Sociais.

Aprovada em: 26 /11/2004

Banca examinadora:

_________________________________________________________________________ Prof. Dr. Orlando P. Miranda - UFRN – Orientador

_________________________________________________________________________ Profª. Drª. Loreley Garcia - UFPB

(4)

Às crianças,

(5)

Agradecimentos

Ao Programa SOS Criança, rico espaço de experiência de vida, trabalho e pesquisa. Em especial, a Sabino e a Genilda, exemplos de luta e compromisso;

Ao Dept° de Pós-Graduação em Serviço Social, em especial à Célia e à Severina;

A Orlando, orientador e conselheiro, pela paciência, carinho e atenção;

Aos entrevistados, pela porta aberta e pelo tempinho para a conversa sobre ‘coisas de família’;

Aos amigos Carlinhos, Sueli, Keila, Lorena, Marcos, Manu, Karla e Jane, pela força;

A Jô, pela gramática;

A Bosco, pelas normas da ABNT;

A Lígia, irmã e amiga, por acreditar;

Aos meus pais, que sempre estiveram do meu lado;

A Haroldo, que acompanhou boa parte deste trabalho;

A Bartolomeu, a quem também dedico, pelo espaço cedido do computador

E a todos que direta ou indiretamente contribuíram para a realização deste trabalho:

(6)
(7)

Resumo

Este estudo é o resultado da pesquisa de mestrado, cuja temática aborda a questão da

violência intrafamiliar contra a criança. Através do programa SOS Criança, localizado no

município de Natal, foi realizada uma pesquisa documental e de campo, com ênfase nas

situações de violência física contra crianças, em especial, o espancamento praticado por

seus pais. O referido trabalho teve como subsídio, uma pesquisa bibliográfica e a própria

experiência da mestranda, educadora social há 10 anos no referido programa. A intenção

deste estudo é compreender como se processa a reprodução do fenômeno da violência

intrafamiliar contra a criança, tendo como parâmetro o contexto social em que se inserem

(8)

Abstract

(9)

Sumário

1-INTRODUÇÃO...10

2 A CONSTRUÇÃO SOCIAL DO CONCEITO DE INFÂNCIA 2.1 Infância, família e violência: breve histórico...13

2.2 O conceito de infância na sociedade brasileira...26

3 A VIOLÊNCIA FÍSICA CONTRA A CRIANÇA NA FAMÍLIA 3.1 Considerações conceituais...31

3.2 Fatores, mitos e outros discursos...39

3.3 Violência, cultura e identidade...45

4 A POLÍTICA DE PROTEÇÃO À CRIANÇA EM SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA 4.1 A trajetória da política de proteção à infância ...50

4.2 A criança, sujeito de direitos: a cidadania em rede...55

4.3 A experiência do SOS Criança...61

5 PAIS, FILHOS E VIOLÊNCIA: A FACE CRUEL DA PROTEÇÃO 5.1 O universo da pesquisa...69

5.2 A cidade, a rua, o trabalho...72

5.3 A casa, a família, a comunidade...81

5.4 O lugar dos filhos: espaço de obediência?...87

5.5 Perfil social dos pais...89

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS...94

(10)

I INTRODUÇÃO

__________________________________________________________________________

Na sociedade ocidental, o século XX é um marco na luta pelos direitos da criança. O

novo paradigma da proteção integral insere a questão da infância e da adolescência no

campo de forças sociais. A criança passa a ser reconhecida plena de direitos, com prioridade

absoluta, por sua condição peculiar em desenvolvimento. Podemos destacar dois fatores que

contribuíram para esse reconhecimento: o avanço da ciência, (em especial, a psicanálise e a

pediatria) e o movimento social pela cidadania, bandeira levantada desde a revolução

francesa, no século XIX. Posteriormente essa mesma bandeira é levantada pelo movimento

feminista e dos direitos humanos e, mais recentemente, pelas entidades de defesa da infância

e da adolescência.

No Brasil, há pouco mais de uma década, o Estatuto da Criança e do

Adolescente-ECA- veio consolidar a condição da criança e do adolescente como sujeitos de direitos e,

portanto, portadores de cidadania. Apesar dos avanços científicos e jurídicos, a maioria da

população infanto-juvenil convive com várias formas de violência, eliminando, na prática, a

cidadania conquistada por lei.

A violência contra a criança se manifesta através da violência estrutural, visível no

fenômeno “meninos e meninas de rua”, no internamento de crianças e adolescentes, no

trabalho infantil, na exploração sexual, entre outros, como também, através da violência

doméstica ou intrafamiliar, manifestando-se na violência física, sexual, psicológica e na

(11)

Segundo Del Priore (2000, p. 9), as mudanças ocorridas nos últimos tempos fazem das

crianças suas tenras vítimas:

A crescente fragilização dos laços conjugais, a explosão urbana com todos os

problemas decorrentes de viver em grandes cidades, a globalização cultural, a

crise do ensino ante os avanços cibernéticos, tudo isso tem modificado, de forma

radical, as relações entre pais e filhos, entre crianças e adultos.

Em nossa sociedade, a violência doméstica contra a criança é um problema social, de

pouca repercussão e visibilidade. Entidades como a Sociedade Internacional de Prevenção

ao Abuso e Negligência na Infância calculam que 12% das 55,6 milhões de crianças

brasileiras menores de 14 anos são vítimas da violência doméstica. Isso significa que 12

crianças são agredidas por minuto (CUNHA, 2004).

A violência contra a criança no seu próprio lar reflete ‘um estado de coisas’ muito

mais revelador do que muitos tratados gerais sobre a violência. A pioneira Alice Miller

(2004) já alertava sobre as conseqüências desse antigo, lento e massacrante trajeto

civilizatório: o bater nas crianças.

Este trabalho tem como objeto de estudo a violência física contra a criança praticada

por seus pais. Através do atendimento às famílias em situação de violência contra a criança,

no programa SOS Criança, no município de Natal, foi realizada uma pesquisa documental e

de campo. A diversidade de relações familiares e práticas violentas se misturam à exclusão

social e ao discurso da obediência. A violência física contra a criança é apenas uma das

(12)

Entendemos por violência física contra a criança o abuso da força física sobre a

mesma, causando desde uma leve dor, passando por danos e ferimentos de média gravidade,

até a tentativa ou execução do homicídio (MINAYO, 2002). Freqüentemente, é praticada

pelos próprios pais biológicos de diferentes segmentos sociais, credos e raças. As

justificativas para tal ato vão desde a preocupação dos pais ou responsáveis com a proteção

e educação dos filhos, até a hostilidade intensa e o desejo de morte.

No primeiro capítulo, a intenção é compreender, historicamente, a construção social

do conceito de infância na sociedade ocidental e como este conceito se manifesta no

fenômeno da violência contra a criança na sociedade brasileira.

No segundo capítulo, contextualizaremos a violência física contra a criança no

espaço doméstico, através do discurso acadêmico e científico, como também dos mitos e

outros discursos que envolvem a questão.

No terceiro capítulo, faremos uma breve trajetória sobre a política de proteção à

criança, uma abordagem sobre o novo paradigma da infância e a exposição da experiência

do programa SOS Criança frente à problemática da violência doméstica contra a criança.

Por último, abordaremos algumas histórias de violência contra a criança, subsidiada

pela pesquisa de campo realizada em vários bairros de Natal, que teve como objeto pais que

(13)

2 A CONSTRUÇÃO SOCIAL DO CONCEITO DE INFÂNCIA

__________________________________________________________________________

2.1 Infância, família e violência: breve histórico

O mistério da ciência implica busca pela verdade; A verdade, por sua vez, tem dois

motivos para que não a alcancemos: ou por sua inexistência, ou porque “a verdade dói”,

como nos diz a sabedoria popular. A dinâmica social que envolve a violência contra a

criança exige que ultrapassemos o estudo do ato em si e apreendamos, a princípio, o

sentimento de infância na sociedade ocidental.

É comum relacionar a imagem da criança a uma ‘ausência de fala’, condição

originária da palavra “infância”, cujo teor tem como idéia ‘aquele que não fala’ (in = prefixo

que indica negação, e fante = origem latina fari, que significa falar, dizer). Sem o exercício

da palavra, a infância é vista como o outro, o de fora, o que não tem voz. É o que nos alerta

Lajolo (1997, p.229) “Enquanto objeto de estudo, a infância é sempre um outro em relação

àquele que a nomeia e a estuda. (...) Assim, por não falar, a infância não se fala e, não se

falando, não ocupa a primeira pessoa nos discursos que dela se ocupam”.

Novos conceitos e modos de ser da infância são construídos no campo das artes e

ciências: pequeno selvagem, adulto em miniatura, ingênua, tábula rasa a ser escrita, força

produtiva, sujeito de direitos. A medicina, psicologia, história, direito e literatura são as

disciplinas que dão mais ênfase à questão da infância.

Desde a antiguidade, a concepção da infância estava fortemente ligada à loucura,

(14)

renegar o filho recém-nascido. Segundo Minayo (2002), o descaso contra a condição infantil

é bem expresso em uma passagem da Bíblia, que relata a prática de comer crianças entre o

povo Hebreu, em momentos de escassez de alimentação: “Dá cá teu filho para que hoje o

comamos e amanhã comeremos meu filho” (II Reis 6, 28).

O único meio capaz de transformar o ‘selvagem’ em homem ‘de razão’ seria a

educação, através de severos castigos físicos. Uma lei hebraica do período 1250-1225 a.C.

dizia que, caso os filhos não obedecessem aos conselhos paternos, caberia aos anciões

puni-los, expondo-os ao apedrejamento ou morte (Deuteronômio, 21, 18-21). Essa concepção de

infância era encontrada em várias civilizações, entre elas, o antigo Egito, a Grécia (berço da

civilização ocidental) e na Roma Antiga.

A Bíblia, no Antigo Testamento, reforça até hoje a educação corretiva através dos

provérbios “Quem poupa a vara, não ama seu filho”; “Quem o ama, porém, disciplina-o

prontamente” (Provérbios, 13:14). É também no Evangelho que temos uma nova concepção

sagrada e inocente da infância: “Em verdade, vos digo, que se não mudardes e não vos

tornardes como crianças não entrareis no reino dos céus” e “Deixai vir a mim as crianças e

não as impeçais, porque o reino dos céus é daqueles que são como elas”. (Mateus, 18:3 e

19:14).

A sociedade cristã ocidental, sob o princípio da autoridade, era baseada nos

ensinamentos aristotélicos e teológicos. A autoridade se fundamentava no princípio de

desigualdade existente na natureza: alguns indivíduos nascem para dar ordens e outros para

obedecer. O homem é designado para a tarefa de comandar, a mulher lhe é inferior e a

criança, por natureza, é destinada a obedecer ao adulto. Segundo Badinter (1980), os

(15)

expressos na seguinte analogia da figura do pai: Deus é a imagem perfeita do pai, o rei a

imagem perfeita do pai na terra e o pai de família a imagem divina e real perante os filhos.

No pensamento ocidental, Rousseau (apud GHIRALDELLI, 2000). vem romper a

visão da criança imersa no pecado e desprovida de razão, por não possuir linguagem (logos).

Ele afirma que o erro, a mentira e a corrupção são frutos da incapacidade de quem não tem

um coração puro e sincero, próprio da condição infantil. Portanto, a inocência e a pureza

seriam necessárias para o acolhimento da verdade e para a participação no que era

moralmente correto.

A partir de Hegel, afirma Ghiraldelli (2000), ‘as coisas do mundo’ começaram a ser

pensadas de um modo diferente. Estas não eram mais vistas como elementos imutáveis,

‘naturais’ (no sentido essencialista do termo), mas como situações historicamente

construídas. No início do século XIX, a infância já aparece como algo obtido por

construção. Ariès (1981) trata a noção de infância como algo que vai sendo montado, criado

a partir das novas formas de falar e sentir dos adultos em relação ao que fazer com as

crianças.

Nos meados do século XVII até a segunda metade do século XVIII, a criança de

camadas populares era tratada como um ser imperfeito e sem valor, vivendo em estado de

abandono quer físico, quer moral. A indiferença social e familiar pelo bem-estar da criança

gerou um alto índice de mortalidade infantil, o que Ariès (1981) denominou de infanticídio

tolerado. A expectativa de vida das crianças portuguesas e de outros povos da Europa, entre

os séculos XIV e XVIII, era de 14 anos, enquanto cerca de metade dos nascidos vivos

morria antes de completar sete anos (RAMOS, 2000).

Segundo Ariès (1981), na Idade Média e início da Moderna, o processo de

(16)

nascer era criada por nutrizes (amas-de-leite). Após o desmame, por volta dos 07 anos, a

criança participava ativamente dos jogos e brincadeiras dos adultos. Neste período, as

relações de vizinhança, amizade e tradições se misturavam à vida familiar, onde as trocas

afetivas e comunicações sociais faziam parte da vida coletiva, não existindo a distinção entre

idade e condições sociais.

A transição do feudalismo para o capitalismo, a partir do século XVII, fez modificar

o modo de vida das pessoas. A sociabilidade privada ganhou importância, restringindo-se às

relações familiares e de amizade. A família começa a se fechar no núcleo composto por pai,

mãe e filhos. Essa mudança ocorreu mais rápido em determinadas classes sociais

(burguesia) e regiões (cidades). A família, ao passar da forma aberta ao mundo exterior para

o modelo nuclear burguês, contribuiu para uma nova concepção da infância, como também,

para as mudanças ocorridas na cidade e na escola.

O interesse de Ariès em abordar as noções do público e do privado no estudo da

criança e da família consistia em saber como se processava a substituição de uma

sociabilidade anônima (“pública”) – a da rua, do pátio do castelo, da praça, da comunidade,

que existia nos meados da Idade Média até o final do século XVIII – por uma sociabilidade

restrita (“privada”), que se confunde com a família, ou ainda com o próprio indivíduo.

O desenvolvimento da alfabetização, a difusão da leitura e as novas formas religiosas

contribuíram para experiências individuais e sociais mais voltadas para a vida privada. As

transformações ocorridas entre a esfera privada e a pública modificaram a própria função do

Estado. Em caso de violência familiar, há uma maior interferência do mesmo, seja na forma

de lei ou em instituições de defesa. Segundo Ariès, o predomínio da sociabilidade privada

fez da família a grande vitoriosa no advento da sociedade moderna, pois “Toda a evolução

(17)

prodigioso crescimento do sentimento de família. Não foi o individualismo que triunfou, foi

a família” (ARIÈS, 1981, p.274).

O sentimento de família, enquanto refúgio e lugar de afetividade entre seus

membros, não conseguiu eliminar a sociabilidade anônima da rua. Esta sobrevive sob novas

e velhas formas. As possibilidades múltiplas de sociabilidades, assim como o próprio

entrelaçamento das relações familiares tradicionais com as novas, nos remetem ao conceito

de comunidade e sociedade.

A obra de Tönnies (1995) é fundamentada nos conceitos de comunidade e sociedade.

Tais conceitos, apesar de se excluírem no plano teórico, aparecem combinados

dialeticamente, quando remetidos ao processo histórico. A vida comunitária se refere ao

parentesco, à aldeia, à cidade, às relações de vizinhança e amizade. Caracteriza-se pelo

consenso, costumes, crenças e religião. O espaço societário, por sua vez, é a metrópole, a

nação, o mundo. Tem como base a troca de valores materiais e se caracteriza pelo contrato,

convenção, lei e opinião pública.

A compreensão dos conceitos de comunidade e sociedade fica mais fácil quando nos

remetemos à teoria das vontades humanas, elaborada por Tönnies (1995): A vida

comunitária é a vontade em forma do prazer, hábito e memória, motivadas afetivamente,

enquanto que a vida societária é a vontade em forma de reflexão, conveniência e conceito,

motivada pela ação humana objetiva:

As vontades humanas mantêm entre si múltiplas relações. Cada relação é uma ação

recíproca, exercida por um lado e suportada ou recebida pelo outro. Estas ações

apresentam-se de tal modo que tendem quer à preservação quer à destruição da

(18)

O autor afirma que, no curso da história, há uma tensão, um conflito permanente

entre essas relações. Interdependentes, ora prevalecem as relações comunitárias, ora

predominam as relações societárias. A família contemporânea urbana convive com esse

conflito cotidianamente, onde cada vez mais o domínio das relações societárias vai

impregnando todas as esferas da vida social.

O advento da família burguesa e do capitalismo intensificou o processo de

escolarização e a construção do conceito moderno de infância. A valorização da criança,

segundo Ariès (1981), desenvolve-se através dos mais severos métodos de educação. A

família, a Igreja e os moralistas administradores fizeram segregar a criança, retirando-a do

convívio do adulto e da vida pública, enclausurando-a em colégios e fazendo-a conhecer a

vara - o castigo físico.

Segundo Foucault (1977), no decorrer do século XVII e XVIII as disciplinas se

tornaram fórmulas mais gerais de dominação. As disciplinas são métodos que permitem o

controle minucioso das operações do corpo, que realizam a sujeição constante de suas forças

e lhes impõem uma relação de docilidade-utilidade. Não se fala apenas em submissão do

corpo, mas absorver o máximo de forças, energia e potência deste corpo - é a disciplina

enquanto anatomia política e mecânica do poder (termos de Foucault) - se a exploração

econômica separa a força e o produto do trabalho, conclui, a coerção disciplinar irá

estabelecer no corpo o elo coercitivo entre uma aptidão aumentada e uma dominação

acentuada.

O autor afirma ter a educação rígida várias funções, entre elas: adestrar corpos

(19)

formar indivíduos obedientes (imperativo político), e prevenir a devassidão e

homossexualidade (imperativo de moralidade).

As estruturas do poder parental foram baseadas no paterfamilias romano, cuja figura

do pai onipotente e autoritário tinha poder sobre bens e pessoas, sobre vida e morte dos

filhos (HURSTEL, 1999). Em vários períodos históricos, esta autoridade foi construída

através do disciplinamento corporal ao filho e do domínio do seu corpo como propriedade.

O poder parental atua em diversas esferas da sociedade, que ao fazer parte de uma rede de

micropoderes, articula-se em uma complexa rede de interdependências, apresentando-se de

forma assimétrica na relação pais/filhos.

No estudo sobre a puericultura na sociedade ocidental, DeMause (apud GUERRA,

1998) afirma que a partir do século XVIII, houve uma ‘suavização’ da prática corporal

imposta à criança. Formas sutis de violência vão sendo utilizadas – os chamados ‘substitutos

educativos’. Como exemplo, cita a existência de ‘pequenas bastilhas’ em residências dos

séculos XVIII e XIX: uma espécie de quarto escuro, onde os pais trancafiavam os filhos por

horas e até dias, com direito a pão e água, na intenção de corrigir comportamentos

inadequados.

A partir do século XIX, a ‘aliança’ entre médicos e mães, em torno dos cuidados

com a criança, restaura o poder do médico e dá ascensão à mãe no espaço doméstico. Estava

tendo início o movimento higienista. A instauração do médico na família e os conselhos

educativos recebidos pela mãe fizeram com que aos poucos a prática da amamentação

materna fosse valorizada e o uso de enfaixes nos bebês fosse abolida. A mãe é designada

(20)

Em torno da criança a família burguesa traça um cordão sanitário que delimita seu

campo de desenvolvimento: no interior desse perímetro o desenvolvimento de seu

corpo e de seu espírito será encorajado por todas as contribuições da psicopedagogia

postas a seu serviço e controlado por uma vigilância discreta (DONZELOT, 1980,

p. 48).

Se por um lado, a higiene e a educação seduziram facilmente a família burguesa, por

outro lado, os segmentos mais pauperizados da sociedade, por não ‘acompanhar’ o modo de

vida burguês e suas alianças com o Estado, transformaram-se facilmente em instrumento de

repressão e controle. A condição social da família era quem definia as distintas trajetórias

históricas das políticas de atenção à criança.

No decorrer do desenvolvimento do capitalismo se presenciou uma crescente

inserção da criança e da mulher no novo modo de produção. A criança passa a ser valorizada

enquanto mercadoria e mão de obra barata, servindo como alicerce e ‘base invisível’ ao

sistema capitalista. A mortalidade infantil é combatida. A família nuclear burguesa se

configura como único padrão às relações familiares. O casamento de acordo com os

interesses das famílias é substituído pela relação afetiva por livre escolha, tendo como um

dos objetivos, a procriação. Os pais são incentivados a terem mais cuidado com os filhos,

sem excessos corretivos. Várias publicações são dirigidas às mulheres, exaltando o amor

materno (há quem afirme que o mito do amor materno surgiu a partir desse período). Ao

mesmo tempo, há maior igualdade de autoridade na correção aos filhos.

No início do século XX, o educador e médico Korczak (apud GUERRA,1998)

construiu uma concepção da infância a partir de sua própria experiência com crianças órfãs,

(21)

categorias analíticas, pensamento tão criticado atualmente nas ciências humanas, já que

representa o “muro que construímos para nos separar das crianças, para poder considerar

como animais os seres humanos que nos são confiados, para não sermos implicados no

diálogo, na relação que se poderia estabelecer com eles”.(TOMKIEWICS,1983,apud

GUERRA,1998).

A obra de Korczac é voltada especificamente à opressão infantil. Sem representar a

criança como alguém inocente e o mundo como vilão, faz-nos entender que a opressão

sofrida pela criança é também a opressão que vivemos. Outro aspecto interessante em sua

obra é quando relaciona o falar e o fazer de uma criança com a nossa reação diante dela. A

maioria dos estudos aborda os problemas da infância relacionados a problemas orgânicos ou

aos pais, professores, profissionais e sociedade, nunca como as pessoas se sentem em

relação a ela, aspecto que Freud chama de “contratransferência” (GUERRA, 1998). Por

outro lado, a criança percebe as contradições dos adultos, quando, às vezes, estes defendem

certas idéias, mas na prática as destroem.

A criança visualizada pelo adulto (em especial, os pais) no pensamento de Korczak,

apresenta-se como um ser fraco, impotente, sem direito ao processo decisório de sua família

e da sociedade como um todo, dependendo economicamente do adulto e que deve ser

modelado conforme os desejos deste mesmo adulto.

A relação de forças existente entre adulto-criança (o que sabe tudo e o que nada

sabe), faz a criança seguir para o único caminho existente, a obediência. Resta a criança

apenas o cumprimento do seu papel destinado pela família e sociedade: “A sociedade lhe

confiou um selvagenzinho para que você o civilize, lhe inculque boas maneiras e o torne

mais manipulável (...) e ela espera. Assim esperam o Estado, a Igreja e o futuro patrão”

(22)

preciso “Dar às crianças a possibilidade de um desabrochar harmonioso de todas as suas

faculdades espirituais, liberar a totalidade das formas latentes que contêm, criá-las no

amor do bem, do belo, da liberdade (...)”.

Na segunda metade do século XX, surgiram vários movimentos sociais,

destacando-se no cenário político e cultural, o movimento feminista. A indestacando-serção no trabalho remunerado

e a descoberta do anticoncepcional mudaram o papel da mulher na sociedade e na família. A

luta por melhores condições de trabalho, aumento salarial, creche, direito ao aborto e

relações igualitárias entre os sexos, juntava-se aos questionamentos quanto ao papel da

mulher no uso exclusivo da função materna e quanto às relações autoritárias existentes na

família patriarcal. A violência contra a mulher veio unificar a luta feminista (COSTA;

BRUSCHINI, 1992). Mudanças na esfera privada começaram a ocorrer. Apesar da

diversidade de relações familiares, dos métodos modernos de educação, as formas

autoritárias e violentas no trato com a criança permaneceram.

A visão de infância na sociedade ocidental considera a criança como um ser

universal, imaturo, em processo de desenvolvimento bio-psiquico-social com

particularidades socialmente definidas, exercendo papéis e funções conforme idade,

hierarquia familiar e classe social:

(...) Sua participação no processo produtivo, o tempo de escolarização, o processo

de socialização no interior da família e da comunidade, as atividades cotidianas

(das brincadeiras às tarefas assumidas) se diferenciam, segundo a posição da

criança e de sua família na estrutura sócio-econômica (KRAMER apud ARANTES,

(23)

A família extensa é uma constante em camadas de baixa renda. O processo

educativo da criança é compartilhado com o Estado, com os meios de comunicação, outros

familiares e vizinhança. São presenciadas relações de compadrio, a ‘circulação de crianças’

entre parentes e conhecidos e uma rede de mútua ajuda entre familiares para garantirem a

sua sobrevivência.

Para muitas famílias, a luta pela sobrevivência implica entrada precoce da criança no

mundo do trabalho: ou como complemento da renda familiar, ou como único provedor da

família. O espaço de exclusão social em que se encontram, faz com que a criança em

situação de rua e a que está na rua (com vínculos familiares) conviva muito cedo num

cotidiano de violência e exploração, sem tempo para se desenvolverem e crescerem – é a

chamada infância negada (GUARA, 1995). Em alguns casos, a criança passa a ter como

única referência o espaço da rua, por ter sofrido, anteriormente, algum tipo de violência na

família.

Do ponto de vista legal, estão incluídas na fase infantil crianças de 0 a 12 anos

incompletos. Nesse universo são encontrados recém-nascidos ou lactantes, a criança na fase

pré-escolar e escolar. A infância é também fortemente marcada pela diferença de gênero. Os

meninos e as meninas enfrentam obstáculos ou facilidades de acordo com as marcas

culturais que seu gênero conseguiu construir ao longo da história.

A criança, ao nascer, já encontra um contexto cultural determinado: linguagem,

objetos, costumes, leis e signos. O primeiro enigma a desvendar é a presença ou a falta

(FERRARI, 2002). Na medida que cresce, codifica o que está em volta a partir da sua

interação com o meio. Geralmente, o estímulo à participação se dá como objeto manipulável

(24)

de forma impositiva e autoritária. A sua condição de criança está associada à situação de

subserviência a uma autoridade adulta.

A visão da criança como centro das atenções na família é mais observada na classe

média - a idéia do pai se sacrificar pelos filhos e reviver sua infância na eterna dialética

reprodução-melhoramento. O excesso de liberdade e autonomia da criança, segundo Guara

(1995), pode ser uma leitura errada das propostas da Escola Nova e teorias psicológicas. A

autora cita Grünspun e sua teoria tirânica da infância:

Nas últimas décadas vem processando um novo fenômeno social - a

criança centraliza o interesse da família e da própria sociedade, de tal

forma que se organizou um filiarcado, substituindo o patriarcado e o

matriarcado fugaz na década de 50, especialmente nos E.U.A.

(GUARA, 1995, p.61).

Ghiraldelli (1999) ao analisar as teorias educacionais modernas e contemporâneas,

afirma que a teoria pós-moderna não tem uma concepção de infância. A noção de infância é

uma noção moderna. Eis a mudança de paradigma proposta pela pós-modernidade: ela não

precisa de uma noção de infância para falar sobre qualquer temática. Ela quer estar atenta às

novas metáforas, inclusive às novas metáforas sobre as crianças, e, com isso, ver se ela

consegue ampliar e inventar direitos democráticos para todas as crianças. Nessa ótica, o

reconhecimento dos direitos da criança não está intimamente ligado aos modelos

ideológicos de criança.

A luta pela garantia dos direitos da criança passa pela supressão de suas

(25)

basta que todos tenham acesso à escola, mas acesso a escola de qualidade. Se uma das

particularidades da criança é a sua fase de crescimento e desenvolvimento, inclui também

uma aprendizagem qualificada. Ou seja, no processo de educação em geral, são as

instituições (entre elas, família e escola) que “qualificam” a criança, transmitindo

parâmetros valorativos. É nesse processo que se configurará a matriz de identidade e da

construção de “sujeitos de direitos”: na direção de sua emancipação ou na formação de uma

identidade subalterna (GUARA,1995).

Hoje, o discurso formal considera a criança um ser em pleno desenvolvimento

físico, moral e psíquico, portador de cidadania, prioritária de proteção integral pela família,

Estado e sociedade. No Brasil, essa concepção contemporânea de infância é fruto da

organização de forças sociais que atuam em defesa da criança e do adolescente desde a

segunda metade da década de 80.

O desenvolvimento da ciência sempre foi estimulado pela condição social da criança,

assim como pelas necessidades mais gerais da sociedade e principalmente pelo próprio

modelo econômico perverso e excludente, sobre o qual essa sociedade se estrutura. Por sua

vez, os avanços da ciência e da tecnologia não têm melhorado a situação de milhares de

famílias, expostas à exclusão e vulnerabilidade social.

Se por um lado o conceito de infância na sociedade ocidental está relacionado à

exploração e dominação sobre a criança por seus pais e sociedade, p~~or outro, as famílias

violadas de seus direitos e condições dignas de vida refletem as contradições e mazelas de

um determinado contexto societário, cujo modelo econômico alimenta as desigualdades

sociais, fragiliza os vínculos sociais, massifica o modo de vida das pessoas e desumaniza as

(26)

A questão está em saber até que ponto o conceito de infância vem suavizando a

maneira da sociedade e da família se relacionar com a criança, ou se é apenas o início do seu

processo de barbárie. Enfim, se estamos caminhando para o reconhecimento de sua nova

condição, a de sujeito de direitos.

2.2 O conceito de infância na sociedade brasileira

As mudanças ocorridas na sociedade moderna - a emergência da vida privada, a

escolarização e a valorização da criança - não surtiram efeitos imediatos no Brasil, país de

origem colonial e de tardia industrialização. A formação da sociedade brasileira está

fortemente relacionada à situação de violência vivenciada pela infância. As crianças

abandonadas nas ‘rodas de expostos’1, as escravas e as exploradas pelo trabalho no campo,

em pequenas indústrias, carvoarias e minas foram bem retratadas no estudo de Del Priore,

intitulado “História da Criança no Brasil” (2000).

O estranhamento primeiro dos nossos colonizadores portugueses à imagem da

criança despida, pendurada por uma tipóia entre os seios da mãe, também despida, fazia

parte do deslumbramento frente à cultura do Novo Mundo. O impacto cultural em relação às

crianças abastadas européias foi grande, já que estas eram afastadas da família, entregue a

amas-de-leite e imobilizadas por enfaixes.

Em 1549, no Brasil Colônia, chegaram os primeiros padres jesuítas da Companhia de

Jesus. A catequização das crianças indígenas no processo de colonização implicou em

1Instituição filantrópica, surgida na França, Portugal e posteriormente, no Brasil, que recebia os ‘expostos’, na

(27)

mudanças de costumes e de crenças entre as comunidades indígenas. Relatos de padres de

diferentes províncias constataram que, nas comunidades indígenas, a criança era valorizada

por todos os membros adultos e não sofria maus-tratos dos pais. Esta prática foi presenciada

em tribos que praticavam a antropofagia (costume de comer o inimigo). Porém, alguns

costumes não são aceitos em nossa sociedade, como o infanticídio e rituais de passagens,

presentes em determinadas tribos. Temos como exemplo, o costume de executar

recém-nascidos gêmeos e portadores de deficiência física, sob pena de atraírem má sorte.

No período escravocrata, os filhos dos senhores de engenho aprenderam que, se não

obedecessem aos pais, seriam punidos através de palmatórias, varas de marmelo (com

alfinetes na ponta), cipós, galhos de goiabeira, entre outros (GUERRA, 1998).

Nas senzalas, as péssimas condições de higiene favoreciam a alta taxa de

mortalidade infantil. Era comum a criança escrava desconhecer a procedência paterna. Os

filhos eram vendidos e separados dos pais de acordo com a conveniência do senhor de

escravos (CUNHA, 2004). Os castigos físicos, indispensáveis ao sistema escravista, eram

também dirigidos à criança-escrava a partir dos 7-8 anos, servindo, deste modo, como uma

prática de controle social para manter tal sistema. O personagem mais conhecido neste

período era o ‘leva-pancadas’, menino-escravo, trazido da senzala para servir ao filho do

senhor de escravos, sendo alvo de todo tipo de maus-tratos.

Entre o período do Brasil Colônia e o Império, a prática religiosa do batismo estava

relacionada à purificação e a fidelidade católica, como também a uma forma da criança

entrar nas estruturas familiares e sociais, através das relações de compadrio. A afetividade

dos pais com os filhos, os mimos maternos e as brincadeiras dirigidas aos pequenos não

(28)

amor do pai faziam mal ao filho. Os ensinamentos divinos ensinavam que amar era castigar.

Vícios e pecados, mesmo cometidos por pequenos, deviam ser combatidos com açoites e

castigos. A introdução da educação formal, a partir do século XVIII, tinha a palmatória

como instrumento obrigatório.

O surgimento do sentimento de infância no Brasil pode ser creditado, em parte, ao

movimento higienista, no início do século XX. Aliadas do Estado e disseminadas em todas

as regiões do país, as idéias dos médicos higienistas tinham como rótulo ‘a arte de cultivar

crianças’ ou puericultura, dirigidas à educação de crianças ricas das famílias burguesas.

Assim como os criadores de animais, as famílias se tornariam ‘puericultores’: cultivadores

de crianças (ARANTES, 1995). De caráter preventivo e em nome da infância, aconselhavam

e solicitavam a seleção de esposos, efetuada através do matrimônio. Enfatizavam a

predominância do fator genético para a saúde da prole e defendiam o casamento eugênico,

cientificamente planejado.

O projeto de normatização da vida social brasileira, através da conversão do universo

familiar à ordem burguesa, tinha como porta-vozes os higienistas. Não era de interesse do

movimento higienista ‘cultivar’ crianças pobres. Para estas famílias eram direcionadas

outras políticas médicas. Estas famílias serviriam de casos-limite de infração higiênica,

assim como os escravos, mendigos, loucos, vagabundos, ciganos, entre outros (COSTA,

1983). Essa diferenciação na política higienista é crucial para a condição da família

brasileira

É quando as famílias pobres passam a ser definidas – por comparação ao modelo

de família burguesa, tomada como norma – como desagregada, desestruturada,

(29)

situação de patologia social ou irregularidade, estando a partir de então,

assujeitadas aos diferentes agentes e instituições que, no campo social, constituem o

complexo tutelar (ARANTES, 1995, p.214).

De acordo com as novas demandas que o novo sistema de produção exigia, as

políticas intervencionistas da sociedade e do Estado em relação à infância iam se delineando

e ganhando características distintas, direcionadas a dois tipos de atendimento: a família de

classe mais favorecida e a de camadas populares.

Em 1922, ano de efervescência cultural, conhecido pela famosa Semana de Arte

Moderna, ocorreu o 1° Congresso Brasileiro de Proteção à Infância. Uma apresentação nos

chama atenção pela defesa intransigente da prática de castigos em criança. Segundo Guerra

(1998), o texto é enfático em orientar pais a castigarem gradativamente os filhos. Com essa

prática, as más inclinações do filho seriam banidas, como também aprenderiam a distinção

entre o bem (o permitido, o que agrada aos pais) e o mal (o proibido, o que desagrada). As

tendências naturais dos filhos vinham de encontro aos ideais dos pais, por isso a prática do

castigo, que variava desde os castigos corporais (safanões, palmadas e bofetadas) até a

reprovação por gestos, olhares, tom de voz e silêncio.

A infância brasileira teve como primeiro marco legal o Código de Menores, de 1927.

A mesma passa a ser reconhecida através de duas categorias, a criança e o ‘menor’: a

primeira se encontra sob a responsabilidade dos pais e tutores e a segunda em situação de

abandono, orfandade e infração. Enquadrado em ‘situação irregular’, o “menor” necessita de

medidas assistenciais do Estado.

A década de 80 é marcada pela abertura política e o fim da ditadura militar. Os

(30)

de cada categoria. A reformulação da legislação na área da criança (extinção do Código de

Menores e a aprovação do Estatuto da Criança e do Adolescente-ECA, em 1990) fez surgir

um novo conceito de infância: a criança sujeito de direitos, que substitui o conceito de

‘menor’ em ‘situação irregular’.

A universalização dos direitos da criança, preconizada no ECA, ganha validade se

forem consideradas as particularidades e necessidades de cada contexto social em que se

insere a criança. O ajuste neoliberal implantado no país, o alto índice de desemprego e os

cortes sociais, principalmente nas áreas de saúde e educação agravaram o quadro da maioria

da população infanto-juvenil. Portanto, o reconhecimento de sua nova condição, assim como

(31)

3 A VIOLÊNCIA FÍSICA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA

__________________________________________________________________________

3.1 Considerações conceituais

Todo processo de conhecimento é doloroso! Assim como na vida, quanto mais

próximo ao objeto amado, mais sensível às suas angústias, apelos e dengos. Ao parar para

refletir sobre a temática da violência contra a criança, depois de longos anos em contato

direto com a problemática, surgiram os seguintes questionamentos:

. Como limitar o estudo da violência contra a criança à família de baixa renda, se o

fenômeno ocorre em todas as classes sociais?

. A problemática é uma questão sócio-cultural, como a comprovação empírica

indica?

. Como entrar no campo “movediço” da subjetividade, da identidade e da própria

racionalidade do mundo contemporâneo de forma coesa?

O fenômeno da violência contra a criança no âmbito doméstico instiga vários

campos da ciência. O caminho árduo para quem deseja estudá-lo desafia qualquer

pesquisador. Considerado um tema “maldito” no campo das ciências humanas, o momento

está mais para desconstruir parâmetros herdados na relação pais/filhos, do que construir uma

teoria sobre esta violência. O estudo do que representa a infância e a família, segue o mesmo

movimento dialético da construção de conceitos sobre o indivíduo e sociedade no mundo

(32)

“–Eu vou matar você!“. Esta frase, proferida pela mãe que não queria ver o filho

atropelado, surpreende o transeunte, que vê a cena e se choca com as ameaças de morte

dirigidas à criança. Esta mãe mendigava com os filhos, no centro da cidade de Natal. A

mendicância faz parte da cena urbana, em aglomerados de cidades de médio e grande porte.

Para ver crianças pedintes, serpenteando entre carros, basta caminhar pelo centro, próximos

aos shoppings ou canteiros de avenidas movimentadas da cidade.

O estranhamento que o outro provoca no transeunte - cenário e linguagem se

misturam à multiplicidade de significados. A princípio, o que se apresenta como inóspito

para quem vê, nada mais é do que os próprios conceitos pré-estabelecidos embaçando nossa

visão.

Neste texto, a intenção é descortinar universos simbólicos que aparentemente se

mostram como uma diversidade gritante – crianças espancadas em famílias de baixa renda.

Na sua essência, respeitando suas particularidades, revelam as relações de poder presentes

em nossa organização e estrutura social, como também as angústias, alegrias, conquistas e

impotência, inerente ao ser humano: a criação dos filhos.

Segundo Magnani (1996), a antropologia vem resgatar as experiências humanas, não

como exóticas, mas constituídas de arranjos diferentes e particulares em torno de temas e

questões mais gerais, comuns a toda a humanidade. Para o mesmo, a antropologia

(...) lá ou cá, na floresta ou na cidade, na aldeia ou na metrópole, não dispensa o

caráter relativizador que a presença do ’outro’ possibilita. É esse jogo de espelhos, é

essa imagem de si refletida no outro que orienta e conduz o olhar em busca de

significados ali onde, à primeira vista, a visão desatenta ou preconceituosa só enxerga

(33)

Paradigmas mais recentes sobre o estudo de famílias urbanas na sociedade

contemporânea enfatizam a importância de minimizar esse estranhamento. As críticas são

direcionadas às teorias voltadas para a noção do sujeito universal. Assim como o transeunte,

o observador desatento terá dificuldade em compreender as relações, emoções ou traumas de

indivíduos, sem situá-los solidamente no seu universo simbólico e lugar histórico.

Segundo Mauss e Lambert (apud FONSECA, 2002), as teorias que priorizam a

noção do sujeito universal se revelam etnocêntricas e a-históricas. Estas poderiam ter

alguma validade se fossem aplicadas em uma mesma sociedade e em um mesmo grupo

minoritário, mesmo assim, com reservas. Vejamos o que Mauss, fundador da antropologia

francesa, afirmou em um artigo de 1937 sobre ‘A sociedade e a infância’:

Uma parte da psicologia da criança, por exemplo, aquela que concebe e

pratica o eminente psicólogo e pedagogo, Senhor Professor Piaget de Geneva,

consiste de fato na análise aprofundada da mentalidade de um pequeno grupo

de crianças, em particular, as dele (LAMBERT, 1996 apud FONSECA, 2002,

p.3).

O contato com famílias de baixa renda (ou grupos populares) com determinadas

práticas sociais, neste caso, práticas violentas de pais, confirma a diversidade cultural

existente nas mesmas. Se antes tínhamos um conceito de cultura estanque, extramuro e

folclorizada, voltado para países e sociedades exóticas e distantes, hoje temos uma

diversidade (ou alteridade) cultural entre famílias, gerações, gênero, orientação sexual e

classe. A perspectiva dos autores Mauss e Lambert, compartilhada por Fonseca (2002) é

(34)

quem mora na esquina pode ser tão exótica (e tão digna de nossos esforços interpretativos),

quanto a dos aborígines que vivem do outro lado do globo.

A multiplicidade de fatores culturais, legais e científicos que envolvem a questão da

violência contra a criança, faz com que a sua conceituação esteja sempre em construção. Em

1626, o médico Zacchia abordou a questão dos maus-tratos na infância do ponto de vista

médico-legal, através de necropsias em corpos de crianças vitimizadas (CUNHA, 2004).

Em 1860, na França, o professor Ambroise Tardieu, presidente da Academia de

Medicina de Paris, observou 32 crianças que apresentavam lesões contraditórias com as

explicações dos pais: 18 delas vieram a falecer. Neste trabalho, o mesmo descreve certas

características do comportamento dos pais e identifica algumas condições sócio-culturais

associadas ao fenômeno (GUERRA, 1998).

O período do estudo de Tardieu foi marcado pelo governo de Napoleão III,

caracterizado por forte censura e controle político sobre a oposição, imprensa e

universidades. Ideólogos do regime, como Frederic Le Play, pregavam a submissão das

mulheres e crianças à autoridade paterna. Este último considerava a infância como “invasão

intestina de pequenos bárbaros capazes de colocar em perigo a civilização” (AZEVEDO,

1995, p.40). Os estudos que revelassem ser a família, em alguns momentos, perigosa para a

criança, não encontrariam apoio, por isso a pouca repercussão do estudo de Tardieu.

No decorrer dos anos, importantes trabalhos foram publicados na área médica,

constatando, através da radiologia, maus-tratos físicos em crianças. Mas apenas no século

XX surgem os primeiros conceitos. Nos EUA, em 1962, os pediatras Kempe e Silverman

(GUERRA, 1998), ao atenderem crianças na rede hospitalar, observaram que várias delas

apresentavam adiantado estado de desnutrição e/ou ferimentos incompatíveis com a idade.

(35)

lesões em diferentes estágios de cicatrização óssea. Esse quadro foi denominado Síndrome

da Criança Espancada.

Nesta síndrome, observou-se que as crianças provinham de diferentes camadas

sociais, eram espancadas por familiares, não sendo estes, necessariamente, doentes mentais

ou criminosos. As vítimas eram de pouca idade, apresentavam repetidos ferimentos, fraturas

ósseas e queimaduras de natureza duvidosa, com explicações não convincentes dos pais,

sendo diagnosticadas através de exames radiológicos.

No início da década de 70, o médico Fontana (AZEVEDO; GUERRA, 2001)

ampliou a definição do conceito de violência física contra a criança, não a limitando a danos

físicos. Considerou esta violência como a Síndrome do Maltrato, na qual a criança pode se

apresentar sem os sinais óbvios de ter sido espancada, mas com evidências múltiplas e

menores de privação emocional, nutricional, negligência e abuso. A criança espancada é a

última fase do espectro desta síndrome.

A multiplicidade dos aspectos que envolvem a problemática da violência física

contra a criança fez quebrar a hegemonia da medicina e introduzir outras áreas do

conhecimento nesta discussão. O exemplo é o estudo pioneiro do sociólogo americano

David Gil (AZEVEDO; GUERRA, 2001) sobre o abuso físico de crianças. O mesmo se

preocupou em desmistificar o caráter acidental deste abuso, introduzindo o conceito de

intencionalidade. Era importante distinguir o comportamento acidental do intencional. O que

aparentemente é um comportamento acidental, às vezes, vem determinado, em parte, por

elementos intencionais inconscientes.

Alguns autores destacam a questão do dano e intencionalidade, na discussão sobre a

violência física contra a criança. É introduzido o termo violência (e não abuso ou síndrome)

(36)

A violência física é considerada como um ato executado com intenção, ou intenção

percebida, de causar dano físico a outra pessoa. O dano físico pode ir desde a

imposição de uma leve dor, passando por um tapa até o assassinato. A motivação

para este ato pode ir desde uma preocupação com a segurança da criança (quando

ela é espancada por ter ido para a rua) até uma hostilidade tão intensa que a morte

da criança é desejada. (AZEVEDO; GUERRA, 2001, p.22).

No Brasil, em 1973, foi publicado o primeiro trabalho científico, por professores da

Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa. Os mesmos descreveram um caso de

espancamento de uma criança de aproximadamente um ano e três meses (GUERRA, 1998).

Posteriormente, casos documentados por pediatras, radiologistas e psiquiatras foram

publicados, especialmente no Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais. Nestes estudos,

prevaleceu a perspectiva clínica, cujo modelo psicopatológico se baseava nas experiências

francesa e americana.

O trabalho pioneiro da assistente social Viviane Guerra, publicado em 1984,

intitulado “Violência de pais contra filhos: procuram-se vítimas” é um marco na literatura

brasileira sobre a temática da violência contra a criança. Este estudo extrapola o modelo

psicopatológico e tem como cenário a sociedade e a cultura brasileira.

A violência física contra a criança é uma das modalidades da violência intrafamiliar

ou doméstica. Esta última é considerada como toda ação ou omissão que prejudique o

bem-estar, a integridade física, psicológica, como também, a liberdade e o direito ao pleno

desenvolvimento de outro membro da família. Limita-se ao espaço doméstico, é exercida

entre pessoas com ou sem função parental, incluindo empregados (as), pessoas que

(37)

espaço físico, com ênfase nas relações em que se constrói e se efetua a violência, pode ser

cometida por algum membro da família, incluindo pessoas que passam a assumir a função

parental, ainda que sem laços de consangüinidade (BRASIL, 2001).

Na família em situação de violência doméstica, a resolutividade dos conflitos é

marcada pela violência interpessoal de seus membros, independente do nível social,

econômico, religioso e cultural destes. O que distingue a violência contra a criança, no

contexto da violência na família (adulto/adulto, adulto/adolescente), é a relação assimétrica

de poder adulto/criança, marcada pela diferença de idade e fragilidade física da criança.

As autoras Azevedo e Guerra (1995) conceituam a violência doméstica contra a

criança, abordando tanto os aspectos da intencionalidade e do dano, quanto os aspectos mais

subjetivos desta violência:

É todo ato ou omissão praticado por pais, parentes ou responsáveis contra crianças

e/ou adolescentes que - sendo capaz de causar dano físico, sexual e/ou psicológico à

vítima - implica de um lado, numa transgressão do poder/dever de proteção do adulto

e, de outro, numa coisificação da infância, isto é, numa negação do direito que

crianças e adolescentes têm de ser tratados como sujeitos e pessoas em condição

peculiar de desenvolvimento (p. 36).

A violência também se manifesta quando as necessidades básicas das crianças não

são satisfeitas, impedindo o seu desenvolvimento e até a sua sobrevivência. O psicólogo

Ochotorena (AZEVEDO e GUERRA, 1995) afirma que, em geral, os momentos iniciais da

existência humana são definidos por três características:

(38)

. A necessidade de estabelecer vínculos sociais com as figuras de apego capazes de

garantir a sobrevivência e;

. Um modo organizado de interação com o ambiente que assimila os objetos ou

dados de conhecimento e se acomoda a eles.

O autor cita algumas necessidades da criança importantes para a sua sobrevivência

que, não saciadas, podem ser consideradas maus-tratos:

. As necessidades físicas - alimentação, abrigo e proteção contra o perigo;

. As necessidades sócio-emocionais - interação, afeto, atenção, estimulação, contato,

aceitação, jogo, entre outros.

A negligência é a maior demanda em órgãos de proteção à criança e refere-se à falta

de cuidados básicos com a criança, como alimentação, afeto, higiene e segurança. Está

freqüentemente vinculada à condição sócio-econômica da família, em situação de risco

social e pessoal. Alguns autores não consideram negligência, quando a própria família não

tem como suprir tais necessidades -é a chamada família negada.

Em relação à violência física, a literatura varia quanto ao ato violento: desde a

palmada no bumbum, a utilização de instrumentos como sandálias, pedaços de ferro e pau,

como também, queimaduras, socos e pontapés, até agressões com armas brancas e de fogo.

As várias expressões, manifestações e explicações sobre a violência física contra a

criança, assim como o grau de tolerância da família e da sociedade, variam de acordo com

os contextos sócio-culturais onde a criança está inserida.

No Brasil, as sanções penais em relação a maus-tratos contra a criança se resumem a

casos de lesão corporal de natureza grave ou morte. O Código Penal brasileiro, no art. 136,

(39)

Expor a perigo a vida ou saúde de pessoa sob sua autoridade, guarda ou

vigilância para fim de educação, ensino, tratamento ou custódia, quer privando-a

de alimentação ou cuidados indispensáveis, quer sujeitando-a a trabalho excessivo

ou inadequado, quer abusando dos meios de correção ou disciplina.

A importância do enfoque dado sobre a violência contra a criança está no aspecto

educativo e preventivo, e não apenas punitivo. Entidades de defesa da criança em vários

países, inclusive no Brasil, são contra a palmada como prática pedagógica. O castigo

corporal na criança é uma prática cultural violenta e, por ocorrer de forma gradativa, é

preciso evitar a primeira palmada. A legislação de alguns países proíbe o emprego de

qualquer punição corporal, na relação pais/filhos, entre eles, a Suécia (1979), a Finlândia

(1983), a Noruega (1987), a Áustria (1989).

3.2 Fatores, mitos e outros discursos

A violência contra a criança na família tem nas práticas de castigo um campo fértil

para a sua reprodução. De cunho educativo, tais práticas são reconhecidas pelos pais como

necessárias e até mesmo indispensáveis. Moderadas ou severas, são encontradas em todos os

segmentos sociais. Frases como: “- Ele (filho) apanha em casa, hoje, para não apanhar na

rua, amanhã!" e "-Ele será criado como eu fui, apanhando!" são marcantes no imaginário

dos pais e estão ligadas à crença de que sem castigo, os filhos não lhes obedecem e não

existirá obediência às normas estabelecidas.

Segundo Souza Filho (2001), uma das fontes para a produção de um simbolismo de

(40)

verdadeira cultura do medo, tais mitos nos habituam a aceitar como necessária e legítima a

utilização da violência sobre o corpo, através da imposição de castigos. Esta aceitação está

diretamente relacionada à produção de representações sociais de culto á Ordem como

natural, necessária e inevitável. A justificação social do castigo passa pelos caminhos dos

mitos, do imaginário, da ideologia.

Em nossa sociedade, muitos são os mitos de castigos que nos acompanham desde a

mais tenra idade: fábulas, lendas, relatos bíblicos, histórias em quadrinhos, desenhos e

filmes infantis, brincadeiras de rua, entre outros. A ‘pedagogia negra’ (o bater como

disciplina), de forma lúdica e sutil, cotidianamente, alimenta o imaginário infantil.

Existe uma função socializadora e educativa nos mitos de castigos, através dos

exemplos de castigos. A cultura do medo é construída, geração após geração, manifestada de

diversas maneiras. Para Souza Filho (2001), esta cultura funciona como instrumento

fundamental na socialização dos indivíduos, como mecanismo de controle social ligada à

idéia de poder: sejam humanos e sociais, sejam sobrenaturais e sagrados.

A família, através das funções maternas e paternas, contribui de forma ativa

(consciente ou não) no processo de socialização dos indivíduos. Processo este que se dá no

campo da cultura, entendida como

(...) a soma total, integrada, das características do comportamento aprendido que

são manifestadas e compartilhadas pelos membros de uma sociedade. (...) é

integralmente o resultado de invenção social, e pode ser considerada como herança

social, pois é transmitida por ensinamento a cada nova geração. (...) sua

continuidade é garantida pela punição dos membros da sociedade que se recusam a

seguir os padrões de comportamento que lhes são determinados pela Cultura

(41)

A perenidade histórica da violência contra a criança se dá através da socialização

das crianças fundamentada na Pedagogia do Amor Correcional’ (AZEVEDO, 2001). Cada

vez mais aparecem versões modernizadas de velhas crenças que integram a ideologia do

bater. Assim temos como exemplos:

. O mito do pai-patrão - com direito de vida e morte sobre os filhos, porque os

conceberam e/ou são responsáveis por eles;

. O mito da punição preventiva – bater desde pequeno para evitar males maiores e

futuros, como também reforçar o mito da aprendizagem pelo disciplinamento corporal: “- A

criança só aprende apanhando!” ou “ - É de pequeno que se torce o pepino! “;

. O mito da criança má - a merecer punição porque está sempre em erro e/ou pecado,

na tradição da concepção pessimista de infância;

. O mito do próprio bem dos filhos - o bater como princípio limitador, onde a força

física é o último argumento;

. O mito moderno de bater – saber bater é uma arte, com uma boa conversa dá certo.

A condição dos pais nesta problemática envolve a situação de proteção e de risco.

Várias são as funções instituídas aos mesmos, entre elas, proteger e educar os filhos. Ao

ensinar as normas vigentes ao filho, na intenção de protegê-lo do perigo, acaba fazendo uso

da violência física. Nesse ato, os pais transgridem as normas que desejam ensinar, pondo-o

em situação de risco pessoal.

No discurso de alguns pais, ainda são citados versículos do Velho Testamento. Os

mais lembrados se encontram em Provérbios: "- Quem poupa a vara, odeia seu filho; quem

o ama, castiga-o na hora precisa!" (13:24); "- Não afaste a disciplina de uma criança. Se

(42)

melhor bater no filho, enquanto pequeno, do que tratá-lo sem castigos. Com isso, o mesmo

não será castigado, rejeitado e nem odiado por familiares e pela sociedade.

Outro aspecto a ser considerado é o sentimento de pertença quando se fala na relação

violenta pai/filho. É comum ouvirmos a frase: "- Só os pais têm o direito de bater nos

filhos!". Ao abusar da autoridade que lhe é devida, os pais têm o poder de maltratar o filho,

porque este lhe pertence, independente de sua ação ter caráter disciplinador ou não.

Segundo Cunha (2004), os fatores geradores de violência física doméstica contra a

criança estão relacionados:

. À crença dos pais de que a punição corporal dos filhos é um método educativo e

uma forma de demonstrar amor, zelo e cuidado;

. A ver a criança como um objeto de sua propriedade;

. À baixa resistência ao stress do agressor que projeta seu cansaço e problemas

pessoais nos filhos e demais dependentes. Como exemplos: desemprego, dívidas,

desentendimento conjugal, etc;

. Ao uso indevido de drogas;

. Ao abuso de álcool;

. A pais que, quando crianças, foram vítimas de violência doméstica e que

reproduzem nos filhos o mesmo quadro vitimizador;

. Ao fanatismo religioso;

. A problemas psicológicos e psiquiátricos.

A preocupação deste trabalho é não limitar a violência contra a criança a fatores

individuais. É preciso extrapolar esta visão e descobrir que mecanismos mais gerais da

(43)

Os meios de comunicação é um desses mecanismos e entre os mais populares estão a

imprensa e a televisão. O estudo de Guerra (1998) sobre a violência física doméstica contra

a criança, abordada pela imprensa paulista, através de 05 jornais, chegou a algumas

considerações:

. O espaço dedicado à problemática é extremamente restrito;

. Os casos mais graves são veiculados de uma forma sensacionalista;

. Os fatos colocados levam a relacionar a violência com famílias desfavorecidas

socialmente (desemprego, alcoolismo, pobreza, etc.);

. Limitam a violência às ações básicas voltadas para a criminalização do agressor.

Vale salientar que as notícias se encontram nas páginas policiais e é de interesse que se

veicule este tipo de solução;

. Deixa-se de lado as formas de prevenção e proteção para a vítima, como a

importância da notificação da denúncia por qualquer cidadão.

A autora conclui que o discurso da imprensa é superficial, alienante, pasteurizado e

ao mesmo tempo mítico e tranqüilizador. Mantém o manto sagrado da família, associando a

violência a camadas populares.

A forma sensacionalista como a mídia trata a violência só serve para reforçá-la no

interior da percepção humana do mundo, reconhecida, naturalizada e aceita como parte do

nosso cotidiano. Os meios de comunicação, em especial a televisão, através das notícias

policiais, estreitam os laços entre ficção e realidade, como bem retrata o exemplo a seguir.

Há alguns anos atrás, a TV mostrou imagens aterrorizantes de um adulto pisando o

abdômen de uma criança de aproximadamente 02 anos, até a mesma defecar. A repercussão

das imagens mostradas em horário nobre foi tanta, que no dia seguinte, ao meio-dia, a nível

(44)

perplexidade, repugnância e reprovação do ato em si se misturam a exemplos e estímulos,

onde os pais ou qualquer adulto pode muito bem olhar para a criança ao lado e dizer: “- Veja

bem o que posso fazer com você!”.

O ciclo da violência contra a criança na família nos faz questionar até onde a sua

reprodução se dá de forma linear. A constatação de pais agressivos com histórias de

maus-tratos na infância, não implica, necessariamente, que todas as crianças abusadas serão

futuras agressoras.

Alice Miller (2004) vem nos ajudar nessa reflexão. A mesma afirma que o fator

chave desse aspecto é o que denomina 'testemunhas de ajuda'. Alguém que serviu como

protetor ou amigo, mesmo que não tenha solucionado o problema, compreendeu o que a

criança estava passando. Esta testemunha poderia ter sido um parente, um avô, por

exemplo, ou um professor, ou até mesmo um vizinho. Graças a esta experiência boa, as

crianças não são forçadas a repetir o abuso, posteriormente, com seus filhos.

No processo de naturalização e reprodução da violência física sobre a criança,

podemos considerar a história de vida do grupo familiar, os valores internalizados por seus

membros e o meio social. A sociedade, de alguma forma, tolera esta violência em silêncio e

até estimula, legitimando-a através dos costumes e a justificando como ‘tradição’ cultural. A

compreensão desta problemática, passa pela desmistificação da sacralização da família

perfeita, do amor natural e incondicional dos pais, como também, da relação direta da

(45)

3.3 Violência, cultura e identidade

Ainda predomina no nosso imaginário coletivo e individual, o significado do termo

etnológico da violência (do latim violentia) como força, vigor, emprego de força física. No

contexto da violência física contra a criança, a idéia original do significado da violência (e

da infância) concretiza-se no uso da força física por parte do adulto, calando a voz e os

desejos da criança.

No entanto, o conceito sobre violência é bem mais amplo e não se limita à força

física. Entende-se imediatamente como uma relação assimétrica de poder com fins de

dominação, exploração e opressão. Como afirma Chauí (1985, apud AZEVEDO, 2001,

p.132)

A conversão dos diferentes em desiguais e a desigualdade na relação entre superior

e inferior. (...)_ a ação que trata um ser humano não como sujeito, mas como uma

coisa. Esta se caracteriza pela inércia, pela passividade e pelo silêncio de modo

que, quando a atividade e a fala de outrem são impedidas ou anuladas, há

violência.

As condições materiais de existência não determinam, necessariamente, se uma

sociedade é mais ou menos violenta. O que também influencia, são as relações de poder

existente entre seus membros, (...) poder esse decorrente da conversão de diferenças de

gênero, geração, etnia, em desigualdade e, portanto, em pretexto de dominação (GUERRA,

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A violência intrafamiliar expressa dinâmicas de poder/afeto, nas quais estão

presentes relações de subordinação-dominação. Nas relações interpessoais – homem/mulher,

adulto/criança e pais/filhos – as pessoas estão em posições binárias, desempenham papéis

rígidos, com comportamentos e valores específicos a cada grupo familiar.

Marcondes Filho (2001), ao estudar o conceito de "cultura da violência", demonstra

que a normalidade dos relacionamentos em nosso país é violenta. Temos uma violência

fundadora marcada por uma cultura que tolera excessos, cujo arbítrio se protege

mutuamente, em que uns saem ganhando e outros perdendo. É a ideologia totalitária do

‘faço e desfaço’, só se incomodando quando legalmente acionado. Isto tem raízes em nossa

história, mas possui um forte reforço no presente.

O autor aborda alguns conceitos sobre violência em seu texto:

. Violência é tudo aquilo que, vindo do exterior, se opõe ao movimento interior de

uma natureza. Refere-se à coação física, em que alguém é obrigado a fazer aquilo que não

deseja imposição física de fora contra uma interioridade absoluta e uma vontade livre

-(Aristóteles);

. A violência não é inerente ao homem, seria mais um tipo de relacionamento

perfeitamente superável (Hegel e Marx);

. A violência é algo que pertence ao homem e cada passo do desenvolvimento

humano é um sinal de degenerescência (Nietzsche);

. A violência seria atribuída como algo instintivo da espécie. O instinto de morte era

Referências

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