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5 PAIS, FILHOS E VIOLÊNCIA: A FACE CRUEL DA PROTEÇÃO

5.3 A casa, a família, a comunidade

As famílias em situação de violência contra a criança, contactadas através da nossa pesquisa, confirmaram uma característica da família moderna: a heterogeneidade das relações familiares, mesmo em situações sócio-econômicas semelhantes: extensas, ampliadas, famílias nucleares, chefiadas por mulheres ou pais em novos relacionamentos. As quatro famílias estruturadas no padrão nuclear (pai, mãe e filhos) residem em casas alugadas e duas não tem vínculos familiares na cidade. A maioria convive com a família de origem, ou moram em casas conjugadas, prevalecendo à linhagem materna. No universo de 10 mães e 04 pais, apenas 03 entrevistados foram criados pelos pais biológicos.

Na primeira entrevista realizada, tive o primeiro impacto com as mudanças ocorridas no modelo nuclear da família. Encontrei pai, mãe e filha em um domingo de sol se arrumando para irem à praia. D.M.S. tem 23 anos, estudante e auxiliar de secretária. Explicou que a residência onde mora é dos avós do seu esposo. Reside com os mesmos porque é mais próximo do seu trabalho e colégio. Seu esposo reside com os pais dele em outra residência e sua filha passa a semana com a avó materna. Pai, mãe e filha se encontram nos finais de semana.

É essa complexidade interna que faz a família se destacar dos demais grupos sociais. As novas configurações que o mundo moderno reserva para a família fazem com que o exemplo acima seja uma das alternativas encontradas para a sua sobrevivência. Alternativa que, por sua vez, não é característica apenas de camadas sociais mais baixas.

A família, com suas particularidades, linguagem e dinâmica própria, tem na rede mútua de ajuda dos familiares, o seu código de sobrevivência

A família com seus códigos de obrigações, é uma linguagem através da qual traduzem o mundo e, sendo assim, suas possibilidades de negociação e de atuação no mundo social passam pelos caminhos onde é possível falar essa linguagem” (SARTI, 2002, p.140).

No caso acima relatado, o espaço familiar não se limita a um domicílio. As relações de conflito existentes na rede se espelham no papel autoritário da mãe em mostrar a quem a filha pertence. A mãe demonstrou rigidez na educação da filha, afirmando que bate nela pra mostrar quem é que manda. Não a quer reproduzindo maus hábitos dos primos e colegas de escola (como por exemplo, chamar palavrão e bater na cara das pessoas).

A história desta jovem é marcada pela separação dos pais aos 10 anos, agressões físicas por parte da mãe, criação em casas de tios e em residências onde trabalhava como doméstica. Disse que só se encontrou com o pai uma vez, no dia das crianças, quando ele levou os filhos para passear. Mesmo assim tem boa memória dele. A mãe, segundo a entrevistada, não foi uma boa referência em sua vida. É esta que atualmente cuida de sua filha.

Uma das características das jovens mães (mais de 50% dos nossos entrevistados) é que todas convivem com o seu cônjuge e a maioria cuida da casa e filhos. Afirmam que o filho tem que obedecer desde pequeno, para que não venha lhe bater depois. Geralmente, revoltam-se com a interferência da avó materna. É uma relação contraditória – de amor e ódio – cuja referência não é tida como positiva, mas é quem está presente no seu cotidiano. Queixam-se de terem apanhado muito quando pequenos e hoje não podem bater no filho. Uma entrevistada revelou que foi chamada de assassina, por sua mãe, na presença do filho, por estar ‘exemplando’ o mesmo.

O bater forte no filho, neste caso, não implica apenas na disciplina do ‘não palavrão’, mas outros fatores envolvendo a história anterior (e atual) da vida dos pais. Entre os entrevistados, a mãe foi quem mais exerceu a autoridade na família, fazendo uso do castigo físico (apenas um pai afirmou não ter recebido castigos físicos). Mesmo reconhecendo não ser positiva a referência da mãe, acabam reproduzindo os maus-tratos que receberam no próprio filho. Nota-se que a responsabilidade na criação dos irmãos mais novos também contribui para uma maior rigidez na educação dos filhos. Uma mãe reconheceu que é severa com o filho, porque teve que tomar conta dos três irmãos ainda criança, para sua mãe trabalhar.

Há também histórias de ameaças e agressões por parte do cônjuge, depressão pós- parto, internação em hospital psiquiátrico ou reconhecimento de que não nasceu para ser mãe. Esta última é uma mãe que foi notificada por ter batido de cinto no filho de 02 anos. Na época da visita, o filho de E.F.L. morava com ela. A mesma reconheceu que estava perdendo o controle com o filho, por este ser hiperativo. Estava muito nervosa porque dependia totalmente do cônjuge, que não é o pai do seu filho, para sobreviver. Na nossa entrevista, a mesma afirmou que o seu filho não está mais morando com ela. Demonstrou pouco apego ao filho, afirmando que não nasceu para ser mãe. Acha que o filho está muito bem na companhia de sua tia. E.F.L. tem 23 anos, é manicure, veio com a família para Natal, há mais de 10 anos, após inundação que destruiu a cidade onde nasceu, São Rafael. Os pais se separaram após problemas com alcoolismo e agressões por parte do pai. Reside com a mãe, irmão, cunhada, sobrinhos e o cônjuge.

A maioria das mães afirmou que são nervosas. Acham que este nervosismo tem a ver com sua relação com a figura materna: alcoolismo por parte da mãe, rejeição, falta de cuidados básicos e agressões na infância. Algumas afirmaram que o seu nervosismo aumenta quando não tem um pão para dar aos filhos: “- Imagine feijão?”. Esse quadro diverge de alguns estudos sobre a violência contra a mulher (MOREIRA, 1992), onde as suas histórias de vida indicam sempre a figura paterna como violenta e a mãe como sofrida e resignada.

Temos o exemplo de R.F.S., 37 anos, catadora de lixo, residente no morro de Cidade Nova, nove filhos, dos quais quatro se encontram abrigados em uma creche, no município de Macaíba. R.F.S. foi notificada por bater constantemente no filho de 11 anos, que está passando as férias em sua companhia. Ao conversarmos com a mesma, explicou que seu filho costuma fugir da creche, onde se encontra abrigado, e vir para a sua companhia. Passa

meses nessa situação. Costuma bater nele pra que vá à escola (é do Tributo à Criança). Nessa hora, as irmãs mais velhas, residentes próximas, interferem, defendendo o irmão.

Esta mãe é do interior (Vale do Açu), provinda de uma família de agricultores, apanhou muito da mãe de ‘quenga’ de coco. Fugiu aos 10 anos de idade para Natal, para trabalhar em uma casa de família. Acha que as pancadas recebidas na cabeça deixaram seu juízo fraco. Já se internou mais de 10 vezes em hospitais psiquiátricos. Está separada do pai dos seus filhos há três anos. Reside em um barraco no alto do morro, com a filha de 02 anos. Não tem escolaridade. É protestante. Vai votar pela primeira vez. Recebeu um material de construção e está construindo sua casa em frente onde mora. Afirma que bate no filho porque sabe o que ele apronta.

O vínculo comunitário das famílias é verificado através da freqüência dos filhos na creche e na escola, como também da ida à igreja. Apesar de todos acreditarem em Deus, apenas 50% dos pais freqüentam a igreja. Destes, a metade se constitui de católicos e a outra metade de protestantes. Não se chegou a um consenso sobre Deus. Os pais acham que Ele traça o nosso destino, mas as mães não concordam. A crença em Deus teve como exemplos as seguintes frases: Deus existe; está presente em tudo; é amigo; é mais do que amigo; é

nosso pai.

É à religiosidade que os pais se apegam nos momentos de dificuldades, na qual a figura divina aparece em forma de ajuda e programas beneficentes. Vejamos o que afirma Chauí sobre a religião na cultura popular:

A religião fornece orientação para a conduta da vida, sentimento de comunidade e saber sobre o mundo, compensando a miséria por um sistema de ‘graças’: cura, emprego, regresso ao lar do marido ou

esposa infiel, do filho delinqüente, da filha prostituída, o fim do alcoolismo (2001, p. 177).

É na religião e na crença em um Deus que se reforça o sentimento de superioridade espiritual e ascensão social como uma forma de compensar o sofrimento terreno. No caso dos pais que não freqüentam igreja, a mesma é fonte de concepções gerais que ultrapassam o contexto especificamente religioso, fornecendo um arcabouço de idéias que dão forma significativa a uma parte da sua experiência moral e emocional.

A comunidade está presente no imaginário das famílias como um órgão regulador dos conflitos: ao mesmo tempo em que denuncia os maus-tratos sofridos pela criança por parte dos pais, cobra destes mais rigor com o filho quando este pratica alguma desordem.

Como exemplo dessa cobrança, temos a situação da criança que apanhou do pai porque soltou uma bomba no mercado, fazendo um senhor hipertenso ir parar no hospital. A princípio, a denúncia chegou ao SOS Criança como sendo a mãe que bateu no filho, mas na visita foi constatado que foi o pai. Na entrevista, encontramos a mãe sorridente, afirmando que podíamos conversar com ela, pois era quem resolvia tudo pelo marido (este não se encontrava). M.D.S. tem 37 anos, convive há 20 anos com o pai de seus 04 filhos. É diarista e o cônjuge vendedor de picolé. Explicou que seu esposo não bate nos filhos (a criação destes fica por sua conta), mas nesse dia o mesmo teve que tomar a iniciativa pela gravidade da situação. Seu filho é do Tributo e foge muito de casa. Divide a casa com outro irmão e sobrinhos em terreno da família materna.

As experiências socializadoras das crianças, através das brincadeiras infantis, é um fator determinante para o desenvolvimento de sua personalidade e amadurecimento social. É através dos jogos que a criança aprende a lidar com situações, com pessoas e com técnicas análogas àquelas com às quais se defrontará, posteriormente, no mundo social dos adultos. É

também nesse espaço que a criança se integra a um fluxo coletivo de existência (FERNANDES, 2001), podendo constituir uma das primeiras oportunidades de participação de comportamentos que envolvem, submetem e conduzem o indivíduo. Existe uma hierarquia e relações autoritárias entre as próprias crianças em suas relações cotidianas, nas quais prevalece a voz (e a força física) da criança maior. O desafio entre as mesmas de ultrapassar o seu próprio limite e desafiar as normas vigentes (soltar bomba na banca do vendedor hipertenso, por exemplo) faz parte do jogo e de tentativas primárias de auto- afirmação no grupo.

O reconhecimento social do papel desempenhado pelos pais no seu cotidiano, muitas vezes, se traduz através da violência contra a criança. Ora prevalece o motivo individual e particular que estimula o ato agressivo, ora prevalece uma coerção social que os leva ao mesmo ato, seja por pressões da família ou comunidade. Nas duas formas de expressão, a violência é um modo específico de afirmação do indivíduo sob a vigência de determinadas formas de sociabilidade.

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