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3 A VIOLÊNCIA FÍSICA CONTRA A CRIANÇA NA FAMÍLIA

3.2 Fatores, mitos e outros discursos

A violência contra a criança na família tem nas práticas de castigo um campo fértil para a sua reprodução. De cunho educativo, tais práticas são reconhecidas pelos pais como necessárias e até mesmo indispensáveis. Moderadas ou severas, são encontradas em todos os segmentos sociais. Frases como: “- Ele (filho) apanha em casa, hoje, para não apanhar na

rua, amanhã!" e "-Ele será criado como eu fui, apanhando!" são marcantes no imaginário

dos pais e estão ligadas à crença de que sem castigo, os filhos não lhes obedecem e não existirá obediência às normas estabelecidas.

Segundo Souza Filho (2001), uma das fontes para a produção de um simbolismo de aceitação dessa prática é a existência de mitos de castigos. Propiciadores à formação de uma

verdadeira cultura do medo, tais mitos nos habituam a aceitar como necessária e legítima a utilização da violência sobre o corpo, através da imposição de castigos. Esta aceitação está diretamente relacionada à produção de representações sociais de culto á Ordem como natural, necessária e inevitável. A justificação social do castigo passa pelos caminhos dos mitos, do imaginário, da ideologia.

Em nossa sociedade, muitos são os mitos de castigos que nos acompanham desde a mais tenra idade: fábulas, lendas, relatos bíblicos, histórias em quadrinhos, desenhos e filmes infantis, brincadeiras de rua, entre outros. A ‘pedagogia negra’ (o bater como disciplina), de forma lúdica e sutil, cotidianamente, alimenta o imaginário infantil.

Existe uma função socializadora e educativa nos mitos de castigos, através dos exemplos de castigos. A cultura do medo é construída, geração após geração, manifestada de diversas maneiras. Para Souza Filho (2001), esta cultura funciona como instrumento fundamental na socialização dos indivíduos, como mecanismo de controle social ligada à idéia de poder: sejam humanos e sociais, sejam sobrenaturais e sagrados.

A família, através das funções maternas e paternas, contribui de forma ativa (consciente ou não) no processo de socialização dos indivíduos. Processo este que se dá no campo da cultura, entendida como

(...) a soma total, integrada, das características do comportamento aprendido que são manifestadas e compartilhadas pelos membros de uma sociedade. (...) é integralmente o resultado de invenção social, e pode ser considerada como herança social, pois é transmitida por ensinamento a cada nova geração. (...) sua continuidade é garantida pela punição dos membros da sociedade que se recusam a seguir os padrões de comportamento que lhes são determinados pela Cultura (HOEBEL, apud SOUZA FILHO, 2001).

A perenidade histórica da violência contra a criança se dá através da socialização das crianças fundamentada na Pedagogia do Amor Correcional’ (AZEVEDO, 2001). Cada vez mais aparecem versões modernizadas de velhas crenças que integram a ideologia do bater. Assim temos como exemplos:

. O mito do pai-patrão - com direito de vida e morte sobre os filhos, porque os conceberam e/ou são responsáveis por eles;

. O mito da punição preventiva – bater desde pequeno para evitar males maiores e futuros, como também reforçar o mito da aprendizagem pelo disciplinamento corporal: “- A

criança só aprende apanhando!” ou “ - É de pequeno que se torce o pepino! “;

. O mito da criança má - a merecer punição porque está sempre em erro e/ou pecado, na tradição da concepção pessimista de infância;

. O mito do próprio bem dos filhos - o bater como princípio limitador, onde a força física é o último argumento;

. O mito moderno de bater – saber bater é uma arte, com uma boa conversa dá certo. A condição dos pais nesta problemática envolve a situação de proteção e de risco. Várias são as funções instituídas aos mesmos, entre elas, proteger e educar os filhos. Ao ensinar as normas vigentes ao filho, na intenção de protegê-lo do perigo, acaba fazendo uso da violência física. Nesse ato, os pais transgridem as normas que desejam ensinar, pondo-o em situação de risco pessoal.

No discurso de alguns pais, ainda são citados versículos do Velho Testamento. Os mais lembrados se encontram em Provérbios: "- Quem poupa a vara, odeia seu filho; quem

o ama, castiga-o na hora precisa!" (13:24); "- Não afaste a disciplina de uma criança. Se você bate-lhe com uma vara, salvará sua vida do inferno!" (23:13-14). Para estes pais, é

melhor bater no filho, enquanto pequeno, do que tratá-lo sem castigos. Com isso, o mesmo não será castigado, rejeitado e nem odiado por familiares e pela sociedade.

Outro aspecto a ser considerado é o sentimento de pertença quando se fala na relação violenta pai/filho. É comum ouvirmos a frase: "- Só os pais têm o direito de bater nos

filhos!". Ao abusar da autoridade que lhe é devida, os pais têm o poder de maltratar o filho,

porque este lhe pertence, independente de sua ação ter caráter disciplinador ou não.

Segundo Cunha (2004), os fatores geradores de violência física doméstica contra a criança estão relacionados:

. À crença dos pais de que a punição corporal dos filhos é um método educativo e uma forma de demonstrar amor, zelo e cuidado;

. A ver a criança como um objeto de sua propriedade;

. À baixa resistência ao stress do agressor que projeta seu cansaço e problemas pessoais nos filhos e demais dependentes. Como exemplos: desemprego, dívidas, desentendimento conjugal, etc;

. Ao uso indevido de drogas; . Ao abuso de álcool;

. A pais que, quando crianças, foram vítimas de violência doméstica e que reproduzem nos filhos o mesmo quadro vitimizador;

. Ao fanatismo religioso;

. A problemas psicológicos e psiquiátricos.

A preocupação deste trabalho é não limitar a violência contra a criança a fatores individuais. É preciso extrapolar esta visão e descobrir que mecanismos mais gerais da sociedade reproduzem e banalizam esta violência no imaginário da população.

Os meios de comunicação é um desses mecanismos e entre os mais populares estão a imprensa e a televisão. O estudo de Guerra (1998) sobre a violência física doméstica contra a criança, abordada pela imprensa paulista, através de 05 jornais, chegou a algumas considerações:

. O espaço dedicado à problemática é extremamente restrito;

. Os casos mais graves são veiculados de uma forma sensacionalista;

. Os fatos colocados levam a relacionar a violência com famílias desfavorecidas socialmente (desemprego, alcoolismo, pobreza, etc.);

. Limitam a violência às ações básicas voltadas para a criminalização do agressor. Vale salientar que as notícias se encontram nas páginas policiais e é de interesse que se veicule este tipo de solução;

. Deixa-se de lado as formas de prevenção e proteção para a vítima, como a importância da notificação da denúncia por qualquer cidadão.

A autora conclui que o discurso da imprensa é superficial, alienante, pasteurizado e ao mesmo tempo mítico e tranqüilizador. Mantém o manto sagrado da família, associando a violência a camadas populares.

A forma sensacionalista como a mídia trata a violência só serve para reforçá-la no interior da percepção humana do mundo, reconhecida, naturalizada e aceita como parte do nosso cotidiano. Os meios de comunicação, em especial a televisão, através das notícias policiais, estreitam os laços entre ficção e realidade, como bem retrata o exemplo a seguir.

Há alguns anos atrás, a TV mostrou imagens aterrorizantes de um adulto pisando o abdômen de uma criança de aproximadamente 02 anos, até a mesma defecar. A repercussão das imagens mostradas em horário nobre foi tanta, que no dia seguinte, ao meio-dia, a nível local, houve reprise com direito a comentários da Promotora da Infância e da Juventude. A

perplexidade, repugnância e reprovação do ato em si se misturam a exemplos e estímulos, onde os pais ou qualquer adulto pode muito bem olhar para a criança ao lado e dizer: “- Veja

bem o que posso fazer com você!”.

O ciclo da violência contra a criança na família nos faz questionar até onde a sua reprodução se dá de forma linear. A constatação de pais agressivos com histórias de maus- tratos na infância, não implica, necessariamente, que todas as crianças abusadas serão futuras agressoras.

Alice Miller (2004) vem nos ajudar nessa reflexão. A mesma afirma que o fator chave desse aspecto é o que denomina 'testemunhas de ajuda'. Alguém que serviu como protetor ou amigo, mesmo que não tenha solucionado o problema, compreendeu o que a criança estava passando. Esta testemunha poderia ter sido um parente, um avô, por exemplo, ou um professor, ou até mesmo um vizinho. Graças a esta experiência boa, as crianças não são forçadas a repetir o abuso, posteriormente, com seus filhos.

No processo de naturalização e reprodução da violência física sobre a criança, podemos considerar a história de vida do grupo familiar, os valores internalizados por seus membros e o meio social. A sociedade, de alguma forma, tolera esta violência em silêncio e até estimula, legitimando-a através dos costumes e a justificando como ‘tradição’ cultural. A compreensão desta problemática, passa pela desmistificação da sacralização da família perfeita, do amor natural e incondicional dos pais, como também, da relação direta da violência com a precária situação sócio-econômica da família.

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