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4 A POLÍTICA DE PROTEÇÃO À CRIANÇA EM SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA

4.3 A experiência do SOS Criança

Em 1990, após a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente, a articulação entre a sociedade civil e amplos setores governamentais, conhecida como Pacto pela Infância, objetivava a legitimidade social e a efetividade do ECA. Para tanto, era preciso criar ações e programas de atendimento à criança e adolescente de acordo com a sua formulação, tendo como essência, a criança enquanto sujeito de direitos. O resultado deste pacto foi a criação em todos os Estados do Programa SOS Criança.

Em nosso Estado, o Programa foi criado em 1992, com sede no município de Natal, e é pioneiro na área de proteção e defesa dos direitos da criança e do adolescente. Inicialmente foi vinculado ao Gabinete Civil do Estado, posteriormente, à FUNDAC (Fundação Estadual da Criança e do Adolescente), que por sua vez, é vinculada à Secretaria de Trabalho e Assistência Social-SETAS.

O SOS Criança é um programa público estatal, de caráter emergencial, que atende crianças e adolescentes em situação de risco social e pessoal. Tem como suporte jurídico o art. 227 da Constituição Federal e o Estatuto da Criança e do Adolescente-ECA, nos artigos 4°, 5° e 87 incisos III, IV e V e artigo 88 inciso V:

Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade, opressão, punindo na forma de lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais (ECA, Art. 5°).

O SOS Criança tem como principais objetivos:

1. Ser um serviço de atendimento emergencial a crianças e adolescentes, violados em seus direitos;

2. Ser um órgão integrado e articulado com as várias ações e serviços de defesa e atendimento à criança e adolescente, tanto na esfera do Poder Público como na Sociedade Civil;

3. Agilizar o encaminhamento de crianças e adolescentes em situações de risco, evitando internações desnecessárias em abrigos;

4. Resgatar, sempre que possível, o vínculo familiar / comunitário;

Anualmente, são registradas cerca de 3.000 notificações, entre elas: negligência, maus-tratos, espancamento, situação de risco, abuso sexual, abandono, fuga de casa, reaver filho, desaparecimento, exploração do trabalho infantil na esfera doméstica, a criança fora da escola ou sem atendimento médico. O acesso à população é facilitado através do sistema de plantão 24 horas, da ligação gratuita e do anonimato do denunciante. É comum a participação do Programa em eventos da comunidade em geral, com o objetivo de uma maior interação e prevenção.

Os autores da violência contra a criança são de vários níveis sociais, econômicos, religiosos e culturais. O próprio Estado é também autor desta violência, seja pela inexistência ou pela inacessibilidade de serviços essenciais como saúde e educação. As famílias mais vulneráveis socialmente, com suas vidas expostas a partir do próprio local de moradia, estão mais sujeitas à notificação, ao contrário das classes mais favorecidas, por sua reclusão e privacidade.

As dificuldades enfrentadas pelo programa vão desde à falta de recursos humanos qualificados e sensibilizados com a problemática, à falta de estímulo salarial, à ineficiência das políticas básicas, à desarticulação da rede de atendimento à infância, até ao próprio contexto da sociedade, cujas desigualdades sociais produzem um cenário de extrema miséria em milhares de famílias.

Atuar na área da violência contra a criança é estar em contato com famílias em situação de risco pessoal e social, em um quadro de exclusão social. O que esta violência está querendo dizer? É o que questiona Sabino Gentile, coordenador do SOS Criança, no município de Natal:

Lembro-me daquela senhora que foi denunciada por ter espancado sua filhinha de seis anos de um jeito que ela não apresentava mais nenhum pedacinho de pele que não

estivesse com marcas de sangue. Apesar disso, apavorada com a idéia de que a mãe pudesse vir a sofrer algum tipo de castigo, a filhinha se agarrava à saia como a protegê-la. Soubemos que a mãe vivia a mesma situação de violência no seio de sua família. Mãe e filha revelavam a mesma dor de abandono e de falta de perspectiva.(GENTILE, 2002)

O espancamento à criança e ao adolescente está entre as três maiores demandas do Programa (305 notificações em 2003), depois de maus-tratos-801 e negligência-973. É quando o programa atua a nível terciário, pós-facto, isto é, intervém quando a violência já tem ocorrido. Apesar de ser importante esta intervenção, é necessário intensificar a atenção nos níveis primários e secundários. Compartilho a idéia do LACRI (laboratório de Estudos da Criança)-USP: “-É preciso chegar antes que uma criança se torne um prontuário

médico, um boletim policial, um processo judicial, um dossiê psicossocial, uma notícia de jornal ou um corpo no necrotério” (AZEVEDO, 2002, p.135).

No primeiro semestre de 2002, foi realizada uma pesquisa documental no SOS Criança, tendo como objeto a violência física contra a criança. A pesquisa não se deteve aos encaminhamentos jurídicos referente aos casos, mas ao teor das notificações e ao contexto sócio-familiar em que ocorreu o ato agressivo. A mesma poderia ter sido mais rica, se não fosse a limitação das informações dos dados colhidos nas planilhas.

No universo de 75 notificações de espancamento praticado em criança na faixa etária de 0 a 11 anos, 30 delas foram constatadas pela equipe do Programa após visita domiciliar. Seguem algumas observações, a partir das referidas informações:

Quase 50% das crianças residem com os pais biológicos. Em seguida, com a mãe. Temos também pai se responsabilizando pelos filhos. A avó se encontrava com a guarda do neto quando este foi agredido por seus pais.

Os agressores mais comuns são os pais biológicos. Estatísticas internacionais indicam que este índice chega a 70%. Nesta pesquisa, temos o pai e a mãe, seguida do padrasto e do tio. Freqüentemente temos a figura da mãe como a principal agressora, principalmente em denúncias de negligência e maus-tratos. Entre alguns fatores, podemos indicar o seu papel como provedora e chefe de família ou a que mantêm maior permanência com o filho. Neste levantamento, percentualmente, o pai está agredindo mais. Foi constatado um baixo índice de companheiros (as) dos respectivos pais no conflito direto com a criança.

Responsável Pela Criança

Pais 46% Avó 4% Pai 18% Mãe 32% Quem Bate Pai 47% Mãe 43% Padrasto 7% Tio 3%

A idade média das crianças agredidas é de 07-08 anos, prevalecendo o sexo masculino. Constatou-se que a mãe bate mais no filho de menor idade, enquanto que o pai bate mais nos de maior faixa etária. Isto pode estar relacionado ao fato da criança até a pré-escola está mais em contato com a mãe. Ao crescer e mais exposta a rua, o conflito se volta para a figura do pai.

Ocupação dos Pais:

A maioria dos pais está inserida no trabalho informal, sem estabilidade e com baixa remuneração. Não se constatou um alto índice de desemprego e a aposentadoria é devido a distúrbios mentais. Em Quem Fem 21% Masc 79% Pai Desemp. 8% Aposent. 8% T. Informal 53% T. Formal 31%

A maioria das mães não exerce atividade remunerada. Apenas uma se encontra no mercado formal de trabalho (operária). Duas mães foram aposentadas por distúrbios mentais.

Apesar de 10 planilhas não especificarem o instrumento usado contra a criança, constatou-se que o cinto, o pau e a mão foram os instrumentos mais utilizados.

Os hematomas caracterizam o espancamento na criança. 1/3 não especificou o local da agressão. Predominou a região do rosto.

Mãe Desemp. 14% Aposent. 29% T. Informal 43% T. Formal 14% Batem de Que Cinto 6% Mangueira 1% Pau 5% Mão 4% Fio 2% S/ Dados 10% Onde Braços 10% S/Dados 33% Lábios 10%

Face 10% Tórax/om bro 7%

Pernas 7%

Dedos 3%

Costas 13%

Quanto à justificação do ato agressivo, o motivo mais alegado é a desobediência do filho. O descontrole emocional, revelado mais pelas mães, é também citado em um contexto que acumula vários fatores, entre eles, o de não conseguir suprir as necessidades básicas da família.

A maioria das notificações é anônima. As pessoas que denunciam preferem não se identificar. Nas família predomina as notificações por parte da mãe, tia e avó. As demandas institucionais provêm de postos de saúde e hospital. Neste levantamento, não existiram notificações de escola ou creche. As situações mais graves foram encaminhadas à Delegacia e ao Conselho Tutelar.

Observou-se que a criança em situação de violência atendida pelo programa reside, na maioria, em bairros periféricos de Natal. As relações familiares encontradas foram as mais diversas: extensa, nuclear, chefiada por mulheres, pais em novos relacionamentos, entre outros. Encontramos 05 famílias com história de alcoolismo e 03 pais com distúrbios mentais. A metade das crianças convive com um dos pais (prevalecendo a mãe).

É comum a violência física se estender a mais de um membro da família. O pai pode estender a agressão à esposa e demais filhos. E a mãe, aos outros filhos. Observou-se que 04 mães foram agredidas pelo cônjuge, após bater no filho. Neste caso, as relações de forças,

Por quê Desobediência 13% Acidente 2% Alcoolism o 2% Transtornos Mentais 3% S/ Dados 2% Nervosism o 6% Filho Hiperativo 2% Quem Notifica Vizinha; 7% Família; 17% Instituição; 10% Anônimo; 66%

presentes nas relações familiares violentas, retratam uma idéia de poder em que os sujeitos, com exceção da criança, se alternam entre receptor e propagador dessa violência.

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