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5 PAIS, FILHOS E VIOLÊNCIA: A FACE CRUEL DA PROTEÇÃO

5.2 A cidade, a rua, o trabalho

A cidade de Natal, cantada em verso e prosa, famosa por sua beleza natural e potencial turístico, cresce assustadoramente sem que a qualidade de vida da maioria da população acompanhe esse ritmo. Com quase 800.000 habitantes, nos últimos 20 anos a

região metropolitana da cidade vem recebendo um fluxo muito grande de habitantes provindos do interior e de outros Estados.

As desigualdades sociais se tornam mais visíveis quando tomamos conhecimento de que cerca de 65.000 habitantes vive com renda mensal inferior a R$ 80,00 e 41,62% vive sem rendimentos (IBGE-2000). A situação, gerada pela má distribuição de renda, é agravada pelo desemprego, ‘déficit’ de políticas públicas e sistema judiciário ineficaz, quadro geral da violência estrutural e social que assola o país.

Diferente das cidades pequenas, onde se preservam mais os laços comunitários e sentimentos que favorecem a solidariedade, na cidade grande o que prevalece é a lógica do mercado. Como alertava Simmel (1967), o dinheiro regendo a vida das pessoas, numa rapidez impressionante. É nessa lógica que o espírito individualista suga a vitalidade das relações humanas. O egoísmo individualista passa a ser sinônimo de esperteza – forma de ser e viver contemporânea. Tudo tem que ser vivido aqui e agora. A intensificação da vida nervosa, da velocidade dos impulsos, imagens e informações faz do lema “- Viva o hoje!” o código da cidade.

Nas famílias de baixa renda, o imediatismo e o ativismo marcam o dia-dia das pessoas em busca de novas formas de sobrevivência. Em algumas, há uma rede de ajuda recíproca alicerçada pelas relações familiares. A periferia é o seu lugar na cidade. Cria-se uma identidade própria através das relações sociais no local de moradia e espaço familiar.

As famílias abordadas em nosso estudo são famílias de baixa renda. Residem em bairros periféricos, a maioria convive com a família de origem, outras, sem moradia fixa. Um alto índice de mudança de endereço foi constatado na primeira fase da pesquisa de campo. Vários são os motivos para a instabilidade de moradia e desenraizamento, entre eles: dificuldades em arcar com aluguel (geralmente residem em vilas e próximos ao trabalho),

desavenças com vizinhos e/ou familiares, não ter vínculos familiares na cidade. Como também, pais que retornaram ao interior do Estado, onde reside a família de origem.

O estudo de Ramiro (2001) sobre as estratégias de sobrevivência em uma comunidade de baixa renda revelou a importância do parentesco como rede de auxílio intra e interdoméstico. Constatou-se o grande número de famílias extensas e ampliadas, regidas por valores afetivos e racionais, na busca de alternativas para suprirem suas necessidades básicas.

Neste estudo, a ocupação doméstica, o desemprego e o trabalho informal caracterizam os pais com história de violência. A baixa escolaridade e qualificação profissional fazem com que, para a maioria, a inserção no mercado de trabalho se dê através de ‘bicos’, de biscates, através de serviços autônomos (como mecânico, pedreiro, pintor) ou de diaristas (faxineiras, lavadeiras e cozinheiras).

Em nosso país, a economia informal é historicamente significativa. A pesquisa do Dieese realizada na região metropolitana de Natal revela a predominância dessa economia. É no mercado informal que

a precarização do trabalho toma formas degradantes, revitalizando o

trabalho escravo e o trabalho infantil, ao mesmo tempo em que se acentua o grau de desigualdade entre ricos e pobres, constituindo um verdadeiro paradoxo de miséria e riqueza (2002, p.47).

Em Natal, o maior índice de desempregados é constituído por mulheres. É baixa a sua inserção no mercado formal de trabalho. Sob forte influência cultural, muitas mulheres

revelaram que não procuravam emprego porque os maridos ou pais não permitiam que exercessem atividade profissional contínua, fora de casa (DIEESE, 2002).

Fora do mercado formal de trabalho, ainda predomina o vínculo cultural da mulher às responsabilidades do ambiente doméstico e à socialização das crianças. Por cuidarem dos afazeres domésticos, são consideradas nas estatísticas como inativas. Apenas 1/5 das mães exercem atividades extra-domiciliar como manicure, diarista e auxiliar de secretário. Os pais exercem a ocupação de padeiro e mecânico ambulante.

I.S., 20 anos, demonstrou determinação quanto a sua inserção no mundo do trabalho. A mesma afirmou que o seu lugar é em casa com o filho, lavando e passando, e a obrigação do seu esposo é arranjar trabalho e trazer dinheiro pra casa: “- Eu não trabalho

em casa? Porque ele não pode trabalhar na rua?”.

I. S. foi notificada ao SOS Criança por ter batido de cinturão no filho de 03 anos. Na época confirmou que bateu no seu filho porque ele estava lhe desobedecendo. Afirmou que a causa dessa desobediência é a sua avó, que faz todos os gostos do bisneto. Grávida de 08 meses, I. S. foi criada e ainda reside com a avó materna. A família extensa (avó, tio, primos, esposo e filho,) sobrevive da pensão desta avó. O seu pai biológico é alcoólatra, pedinte e vive na rua. A mãe mora no interior. Explicou que convive há 05 anos com o seu esposo que, às vezes, passa vários dias fora de casa, dependendo da ocupação que arranja.

Segundo Sarti (2003), o fato de estar trabalhando e provendo a família, faz com que o valor do trabalho seja não só pelo rendimento econômico, mas por seu rendimento moral, sendo um instrumento fundamental na afirmação pessoal e social. O ter saúde e disposição para trabalhar, dádivas concebidas por Deus, são atributos de dignidade, respeito e reconhecimento entre seus familiares e vizinhança. É na família e no trabalho que os mesmos constroem suas identidades sociais positivas.

Foi comprovado pela pesquisa do DIEESE que os maiores índices de desemprego se encontram nas famílias extensas. Também se constatou que alguns desempregados demonstraram sentimentos de desolação, angústia, abandono e tristeza, que podem estar relacionados ao não reconhecimento social.

Dos entrevistados em nossa pesquisa, apenas 1/3 tem algum tipo de renda, através do trabalho informal. O restante recebe ajuda de familiares, da Igreja ou da bolsa-escola dos filhos. Os 04 entrevistados do sexo masculino têm história de alcoolismo relacionado ä violência (um dado interessante para ser explorado posteriormente). Destes, dois estão desempregados e um deles não convive com a família.

A lógica do trabalho na família pobre urbana inclui o padrão cultural da socialização das crianças e jovens, contribuindo, de alguma forma, no orçamento familiar. Lembro do pai irritado, comunicando por telefone que iria bater nos filhos (uma de 09 e outro de 11 anos). Em vez de cuidarem do bar, foram jogar bola e acabaram quebrando o vidro do balcão do bar, cuja 1ª prestação ainda não tinha sido paga. É comum a criança trabalhar em pequenos comércios familiares: bares, mercearias, venda de comida, entre outros. Trabalho freqüentemente conciliado com o horário da escola. A argumentação dos pais geralmente recai sobre a sua própria experiência (“-Eu fui criado trabalhando!”) e como forma de evitar os perigos da rua. A violência neste caso é um meio, um instrumento que viabiliza a socialização da criança pelo trabalho.

Algumas crianças em situação de violência acompanham os pais em suas atividades profissionais como vendedor de picolé e mecânico ambulante. Algumas ajudam no trabalho doméstico e nos cuidados com os irmãos menores. Não acompanhar o pai, não ir à escola ou não cuidar dos irmãos é um dos motivos da criança sofrer agressões na família.

Temos o exemplo do pai mecânico que faz ponto na ponte de Igapó. C. M. é enfático em não querer o filho, de 11 anos, viciado em videogames, mentindo pra isso e andando com ‘quem não presta’. Quer ver o mesmo lhe acompanhando no seu trabalho, como faz seu outro filho de 09 anos. Este pai divide as despesas e a criação dos filhos (tem mais a caçula de 07 anos) com a esposa, que também trabalha (cuida de idosos). Demonstra certa agressividade em suas palavras. No meio de uma conversa, afirmou reconhecer que tem que ‘maneirar’ com os filhos e esposa porque é a única coisa que tem.

A história de vida de C. M. é marcada pela morte da mãe quando tinha 02 anos de idade. Ele e seus 07 irmãos foram distribuídos entre parentes e conhecidos. Foi criado por uma tia, no interior. Com 11 anos foi morar com a irmã mais velha e esposo desta, no Pará. Afirma que, na verdade, quem lhe criou foi a vida, se teve que apanhar de alguém foi da vida.

Das crianças em idade escolar, 04 têm bolsa-escola, através do Tributo à Criança (Programa municipal de incentivo escolar). A situação da criança que recebe alguma renda para permanecer na escola é delicada. Por um lado, existe a intenção de coibir o trabalho infantil e evasão escolar, sendo o segundo turno da criança preenchido com o reforço escolar, esporte e cultura; Por outro lado, quando a bolsa-escola é a única renda da família, dependendo do contexto familiar, a criança pode não saber lidar com a nova condição: a de ‘provedora’, chegando a ter autoridade sobre os pais e irmãos, invertendo os papéis na estrutura familiar.

Um dos critérios para a obtenção de bolsa é a pouca, ou ausência, de renda familiar. Todas as crianças do Tributo têm histórias de fugas de casa. Entre elas está uma menina de 11 anos, cuja mãe, durante nossa conversa, se queixou de que foi obrigada a deixar o emprego doméstico para ‘vigiar’ a filha que menstruou, não quer estudar, mas só saber de

“homens”. Segundo a mãe, a filha não conhece o pai. Foi notificada por ter espancado a filha. Na época, demonstrou arrependimento pelo ato, reconhecendo não saber lidar com a rebeldia da filha, que repetia pela 4ª vez a 1ª série.

A princípio, A. C. V. S., 27 anos, se recusou a conversar conosco, alegando falta de tempo – só tinha uma folga na semana e muita atividade doméstica. Na segunda visita, concordou com a entrevista. A sua história de vida começa pelo abandono por parte da sua genitora (esta doou os 06 filhos que teve). Criada por um casal paulista até os 08 anos de idade (o casal foi embora e não a levou porque não tinha documento), afirma que apanhava muito dos filhos adolescentes deste casal. Trabalhou em residências de conhecidos do casal até 03 meses atrás. Não tem escolaridade. Reside com o cônjuge (atualmente desempregado), o enteado adolescente, a filha e o caçula do casal. Sobrevivem da renda do Tributo (R$50,00) e da ajuda de familiares.

Vários depoimentos colocam a rua como um fator constante de perigo: por residirem em favelas, morros ou proximidades, os filhos podem ser influenciados por más companhias (roubo e droga) e as filhas, aliciadas, seduzidas, podendo ficar grávidas. No caso acima, as constantes fugas da filha são agravadas pela questão da sua sexualidade aflorada e da preservação da única renda familiar, a qual só seria possível, freqüentando a escola. Lembro do pai que chegou no SOS Criança afirmando que não iria mais ‘guardar’ a filha adolescente e que preferia entregá-la a avó. Este pai tinha espancado a filha na frente de uma pizzaria, na presença do namorado.

Os pais com história de violência, em sua maioria, acham que não tiveram uma boa educação porque precisaram trabalhar cedo. Mais de 50% trabalharam na infância: trabalho doméstico e ambulante, lavagem de carro, jardinagem e agricultura. Os mesmos afirmaram que os filhos estão tendo uma vida bem melhor do que a deles, já que estão tendo acesso à

escola, ao lazer, não trabalham e com um pouco de sorte, ainda ganham dinheiro (bolsa- escola).

A escola ainda é o meio de garantir uma ascensão social e suprir o próprio desejo dos pais, que não tiveram essa oportunidade na infância. O nível mais freqüente de escolaridade destes é o ensino fundamental incompleto. O disciplinamento corporal ao filho, às vezes está relacionado as queixas recebidas da escola. A maioria dos pais vê o estudo e o respeito como o mais importante para ensinar o filho, sendo a escola e a família fundamentais nesse processo.

A violência veiculada pelos meios de comunicação, através dos jornais televisivos, faz parte do cotidiano dos pais. Apenas duas famílias não têm televisão. Apesar da maioria não concordar com esse tipo de programação, mais da metade assiste diariamente. Um pai afirmou que é preciso saber o que está se passando ao nosso redor.

As causas da violência em nossa sociedade, segundo os pais, estão relacionadas à droga, à miséria, ao governo, ao desemprego e o alto custo de vida; ainda à falta de educação e de oportunidade; devido à falta de tudo, principalmente de amor (crianças abandonadas e revoltadas). Em pequeno número, relacionam a violência a fatores individuais, tais como: a pessoa procura; já nasce ruim ou com uma fraqueza; por ambição e ignorância, ou por falta de solidariedade e respeito entre as pessoas.

Não foi verificado, entre os pais com história de violência, o predomínio de valores conservadores e autoritários. São a favor da igualdade entre os sexos, mesmo reconhecendo que as mulheres têm mais limites que os homens. Quanto à existência de relações homossexuais, a metade se pronunciou a favor. A maioria não concorda com pena de morte e nem com um país sem eleições livres.

A intervenção na família, onde ocorre a violência intrafamiliar, é delicada pelas particularidades inerentes a cada situação encontrada. O vínculo entre pais e filhos existe e o desafio está em distinguir até onde este vínculo está pondo em risco a vida da criança e se, diante do contexto familiar, é possível torná-lo positivo.

As interferências de órgãos de proteção, como o SOS Criança, em casos de violência na família, foram aceitas por mais de 50% dos pais. Poucos assumiram que praticaram violência contra o filho. Como a intenção é discipliná-los, quando exageram é puro acidente, já que não é uma constância. Vejamos os comentários em relação à intervenção na família quanto à violência dos pais:

Porque concordam:

Tem pai que gosta de fazer sangue; O tempo está muito violento; Tem família que exagera;

Às vezes ultrapassamos os limites; Tem pais que batem para maltratar. Quando orienta a família:

Os pais que maltratam os filhos merecem orientações;

A intervenção na família deve existir, desde que oriente todos: pais e filhos;

É importante ser orientada, porque a pessoa às vezes se abre mais, conversa mais, pois a própria família não lhe compreende;

Não tem nada contra órgãos de proteção, porque com ela foi bom por ter aprendido muito e por ter sido orientada a saber como lidar com o filho;

Quando passou por um problema, recebeu orientação do SOS. Foi uma aprendizagem. Porque não concordam:

Porque a violência ‘tá’ aí fora, o mundo ‘tá’ perdido, tem que bater; A mãe quando bate é porque sabe o que o filho apronta;

Porque se os filhos não apanharem em casa, vão apanhar da polícia;

Só concorda com órgãos de proteção quando eles não aumentam os fatos, porque a criança tem que apanhar, ser exemplada.

As diversas opiniões dos entrevistados revelam a dificuldade em assumir o ato violento contra o filho como uma violência. O disciplinamento corporal, nesse caso, significa o melhor tipo de educação a ser dada ao filho. Quando há necessidade de um esclarecimento, que se estenda também ao filho. Nota-se também que o medo da violência extrafamiliar, como a polícia, é um forte fator para o bater em casa, na intenção de coibir o filho de cometer contravenções na sociedade.

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