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4 A POLÍTICA DE PROTEÇÃO À CRIANÇA EM SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA

4.2 A criança, sujeito de direitos: a cidadania em rede

O Estatuto da Criança e do Adolescente, em vigor a mais de uma década, é um instrumento positivo na luta pela emancipação humana. A infância inserida no campo de forças sociais e a criança reconhecida enquanto sujeito social e de direitos, quebra dogmas e tradições no trato com a mesma. O Estatuto criou mecanismos de promoção, defesa e controle social, através do sistema de garantia de direitos para execução de sua política. Frente a este aparato legal, temos milhares de crianças submetidas à violência estrutural e doméstica.

Entre as expressões da violência disseminada na sociedade está a violência estrutural. A criança que vive em precárias condições na família, na rua ou em instituições, sujeita à exploração sexual e do trabalho é fruto desta violência. A mesma aparece ‘naturalizada’, como se não tivesse a ação de sujeitos. Quando vem a tona é por meio de denúncia, geralmente de movimentos sociais. Para Cruz Neto e Moreira (apud MINAYO, 2000, p. 99):

(...) o lócus da violência estrutural é exatamente uma sociedade de democracia aparente que, apesar de conjugar participação e institucionalização e advogar a liberdade e igualdade dos cidadãos, não garante a todos o pleno acesso a seus

direitos, pois o Estado volta sua atenção para atender aos interesses das classes privilegiadas.

Podemos dizer que um dos obstáculos para a criança exercer sua cidadania, dentro do limite permitido pela idade, é a inoperância da sociedade e do Estado em garantir o acesso aos serviços básicos da população. Temos como exemplo da condição de não cidadania, a imposição de novas formas de sociabilidade que contribuíram no processo de colonização, como a proibição da população indígena falar sua língua de origem.

No regime republicano, o país teve oportunidade de investir na infância, através de políticas públicas, mas se limitou a um complexo sistema de tutela. Com isso, institucionalizou a divisão entre a infância privilegiada e a marginalizada. Esta última passa a fazer parte da doutrina de situação irregular e a criança, objeto de tutela do Estado.

Ao estudar a história da legislação para a infância no Brasil, Rizzini (1995), revela idéias em conflito, entre os juristas, sobre a concepção do que seja criança e qual doutrina adotar: há os que defendem a restrição do judiciário, definindo a criança como sujeito de direito, e os que defendem a criança como objeto de lei, ‘judicializando’ o problema sob a forma de leis penais mais duras.

A sociedade tradicional brasileira tem a violência incorporada nas relações sociais como um comportamento regular, positivamente valorizado. Os relacionamentos interpessoais, marcados pela dominação e violência têm sua origem na cultura e instituições do patriarcalismo, como define Castells (2000, p.4):

O patriarcalismo é uma das estruturas sobre as quais se assentam todas as sociedades contemporâneas. Caracteriza-se pela autoridade, imposta

institucionalmente, do homem sobre mulher e filhos no âmbito familiar. Para que esta autoridade possa ser exercida, é necessário que o patriarcalismo permeie toda a organização da sociedade, da produção do consumo à política, à legislação e à cultura.

Ao longo dos anos, o modelo de família baseado na estrutura patriarcal vem sendo contestado: - a autoridade paterna como uma função natural - o direito incondicional sobre o filho – e a desobediência como transgressão desse direito. A reprodução da violência contra a criança na esfera privada pode estar relacionada à transgressão da criança diante da legitimidade desse direito.

Matta (1997), ao estudar o conceito de cidadão, chega à conclusão que, no caso brasileiro, a palavra cidadão é usada sempre em situação de inferioridade, prevalecendo a lógica do “- Sabe com quem está falando?”. O cidadão é a entidade que está sujeita à lei, é um sinal de ausência de relações, enquanto que a família e as teias de amizade são entidades rigorosamente fora da lei, pertencem às redes de relações altamente formalizadas política, ideológica e socialmente. A articulação entre a ordem pública (a lei universal/cidadão)e os códigos particulares (costume/tradição) é o que o autor chama de ‘sociedade relacional’.

A violência contra a criança, enquanto prática de castigo, se reveste da convivência contraditória entre estas duas lógicas (costume/lei), entre o direito costumeiro e o direito formal. Se hoje temos o ECA e uma maior intervenção do Estado na esfera privada, através dos órgãos de proteção à criança, por outro lado, existem relações familiares, com seus códigos próprios, impondo formas autoritárias de convivência.

A ‘publicização’ da violência doméstica, a partir da implementação do Estatuto da Criança, marca um período de extrema importância na história social da criança. O desafio

está em articular de forma orgânica a rede de proteção proferida no sistema de garantias de direitos, que contribua na diminuição desta violência.

A aprovação da nova Carta Constitucional – fruto de intensa mobilização social e do esgotamento das condições políticas para a continuidade do período autoritário – inaugurou para a sociedade brasileira, desde 1988, um novo paradigma legal.

As ações e mobilizações se voltaram para a regulamentação dos artigos constitucionais aprovados e o reconhecimento efetivo dos novos direitos da criança, preconizados no artigo 227 da Constituição (1988):

- É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente,

com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

A articulação em defesa dos direitos da criança teve como principais atores: a Pastoral da Criança, o Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua (MNMMR) e o Fórum DCA (Fórum Nacional Permanente de Entidades Não-Governamentais de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente), culminando na elaboração do Estatuto da Criança e do Adolescente-ECA.

Promulgada em 13/07/90, a lei 8.069/90-ECA se constitui objetivamente no elo de ligação entre a Constituição Federal e a Convenção Internacional dos Direitos da Criança, aprovada pela Assembléia Geral das Nações Unidas, em 1989, ano do 30° aniversário da Declaração Universal dos Direitos da Criança.

No plano simbólico, a aprovação do Estatuto ultrapassa o conceito de regulamentação formal da Constituição. Faz um resgate do valor da criança e do adolescente, como ser humano, titular de direitos especiais, em virtude de sua condição peculiar de pessoa em desenvolvimento.

Surge um novo paradigma em relação à infância: a doutrina da proteção integral (do direito), que substitui a doutrina da situação irregular (da necessidade). O atendimento às necessidades (saúde, educação, moradia e lazer) passa a dar lugar para o atendimento aos direitos. A criança deixa de ser objeto de tutela. As necessidades não atendidas se constituem em violação de direitos.

O problema da criança freqüentemente é visto como exclusivo da família, da paternidade irresponsável e da falta de assistência aos filhos, onde as precárias condições de saúde, habitação, educação e alimentação ocorrem por comodismo dos pais. Esta visão reducionista da infância no Brasil deixa de lado questões mais amplas para a compreensão do empobrecimento das famílias brasileiras, desconsiderando aspectos sociais, econômicos, políticos e culturais.

No plano mais geral, o Estatuto exige um reordenamento no conjunto da política, da economia e da organização social, uma revisão de prioridades políticas e de investimento, como também coloca em questão o modelo excludente e perverso de desenvolvimento e respectivo projeto de sociedade, que na prática não reconhece a nova condição da criança.

Em um país onde transgredir os direitos da criança é comum, lutar para que estes sejam respeitados soa ilusório. Mas é preciso acreditar nessa possibilidade. O desafio atual para os atores sociais que lidam com esta problemática é reconhecer a nova condição social da criança e suas singularidades. É fazer funcionar a articulação da rede de atenção à

criança: a busca na especificidade (com ênfase na interdisciplinaridade), na identidade, na missão e no papel de cada espaço, de cada instrumento, de cada ator.

A articulação da rede de atenção não se limita a entidades que trabalham diretamente com a violência contra a criança. É importante a parceria com outras instâncias que atuam direta ou indiretamente com a infância e a adolescência, seja nos serviços básicos (educação, saúde, creche), seja em instituições governamentais e não governamentais de promoção e defesa da criança (promotorias, conselhos, programas e movimentos sociais) ou em eventos culturais, igrejas e meios de comunicação.

Nos anos 90, o trabalho em rede surgiu como estratégia do governo e sociedade civil para implementar a nova política na área da infância, prevista no ECA e na Constituição. Nesse contexto, a noção de redes foi compreendida como um espaço de formação de

parcerias, cooperações e articulações dos sujeitos institucionais, no âmbito público e privado (LORENCINI, 2002, p.298).

No Brasil, não temos a cultura de participação da sociedade no enfrentamento da violência intrafamiliar contra a criança. A sua visibilidade é frágil, devido, entre outros fatores, a ineficácia de um sistema de informação, que sistematize os dados através da notificação de denúncias. A participação nos Fóruns de Defesa da Criança e do Adolescente, o fortalecimento do SIPIA-Sistema de Informações para a Infância e Adolescência e a atuação eficaz dos Conselhos Tutelares e de Direitos da Criança e do Adolescente são importantes para a articulação, promoção e controle da política de atendimento dos direitos da criança e do adolescente.

Pela complexidade da problemática, cada caso de violência representa a criação de uma rede específica de atendimento e exige o conhecimento de programas existentes na gestão local para o seu enfrentamento. Em qualquer intervenção, é importante ter uma visão

interinstitucional, tendo a clareza de que a interrupção da violência é tão importante, quanto a não exposição desnecessária da criança e da família, exigindo eficiência e conhecimento dos papéis de cada órgão envolvido no atendimento.

A articulação em rede é o mecanismo mais eficaz para o enfrentamento da violência contra a criança. Por isso a importância dos serviços essenciais de saúde, educação, habitação, geração de renda, como também da assistência social, justiça e comunidade (associações de moradores, grupos de mulheres, religiosos e culturais, entre outros). Para que os discursos e práticas não caiam no vazio, é preciso que cada ator social, cada entidade tenha incorporado, na sua prática cotidiana, ações integradas com a comunidade, fóruns de discussões, pesquisa e capacitação profissional.

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