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3 A VIOLÊNCIA FÍSICA CONTRA A CRIANÇA NA FAMÍLIA

3.3 Violência, cultura e identidade

Ainda predomina no nosso imaginário coletivo e individual, o significado do termo etnológico da violência (do latim violentia) como força, vigor, emprego de força física. No contexto da violência física contra a criança, a idéia original do significado da violência (e da infância) concretiza-se no uso da força física por parte do adulto, calando a voz e os desejos da criança.

No entanto, o conceito sobre violência é bem mais amplo e não se limita à força física. Entende-se imediatamente como uma relação assimétrica de poder com fins de dominação, exploração e opressão. Como afirma Chauí (1985, apud AZEVEDO, 2001,

p.132)

A conversão dos diferentes em desiguais e a desigualdade na relação entre superior e inferior. (...)_ a ação que trata um ser humano não como sujeito, mas como uma coisa. Esta se caracteriza pela inércia, pela passividade e pelo silêncio de modo que, quando a atividade e a fala de outrem são impedidas ou anuladas, há violência.

As condições materiais de existência não determinam, necessariamente, se uma sociedade é mais ou menos violenta. O que também influencia, são as relações de poder existente entre seus membros, (...) poder esse decorrente da conversão de diferenças de

gênero, geração, etnia, em desigualdade e, portanto, em pretexto de dominação (GUERRA,

A violência intrafamiliar expressa dinâmicas de poder/afeto, nas quais estão presentes relações de subordinação-dominação. Nas relações interpessoais – homem/mulher, adulto/criança e pais/filhos – as pessoas estão em posições binárias, desempenham papéis rígidos, com comportamentos e valores específicos a cada grupo familiar.

Marcondes Filho (2001), ao estudar o conceito de "cultura da violência", demonstra que a normalidade dos relacionamentos em nosso país é violenta. Temos uma violência

fundadora marcada por uma cultura que tolera excessos, cujo arbítrio se protege

mutuamente, em que uns saem ganhando e outros perdendo. É a ideologia totalitária do ‘faço e desfaço’, só se incomodando quando legalmente acionado. Isto tem raízes em nossa história, mas possui um forte reforço no presente.

O autor aborda alguns conceitos sobre violência em seu texto:

. Violência é tudo aquilo que, vindo do exterior, se opõe ao movimento interior de uma natureza. Refere-se à coação física, em que alguém é obrigado a fazer aquilo que não deseja - imposição física de fora contra uma interioridade absoluta e uma vontade livre - (Aristóteles);

. A violência não é inerente ao homem, seria mais um tipo de relacionamento perfeitamente superável (Hegel e Marx);

. A violência é algo que pertence ao homem e cada passo do desenvolvimento humano é um sinal de degenerescência (Nietzsche);

. A violência seria atribuída como algo instintivo da espécie. O instinto de morte era algo dado, e deveria ser compensado com processos de sublimação e desvio (Freud).

A discussão que envolve a violência é inesgotável e polêmica. Deter-se apenas às características individuais não basta, já que propomos identificar os fatores que contribuem para a sua reprodução. Partirmos da idéia de que a violência não é inerente ao homem, mas sim, construída culturalmente. O que é inerente ao homem é a sua capacidade de produzir cultura. É preciso desmistificar a dicotomia entre natureza e cultura – o homem é a própria natureza em constante transformação (ao destruir a natureza não estarei me destruindo?). Segundo Marcondes Filho (2001), haveria uma “cultura da violência” à medida que a cultura, como habitus, incorpora as práticas de violência no seu cotidiano. Consciente ou inconscientemente, tais práticas vão sendo cultivadas dentro de um certo grupo e as pessoas vão sendo "educadas" segundo esse procedimento.

Ao utilizar o conceito de habitus, o autor se refere ao conceito de violência simbólica elaborada por Pierre Bourdieu (apud MARCONDES FILHO, 2001). Este distingue o

habitus do campo social e do capital simbólico. No primeiro, constitui-se a cultura do

indivíduo, formada pela escola e pelo meio social em que vive; lá se constituem os gostos e os diferentes estilos de vida. É no campo social que se identifica a presença de "mercados" e diferentes formas de "capital", como o econômico, o corporal, o cultural, o escolar, o social, o simbólico. É dentro do capital simbólico que as relações arbitrárias se tornam relações legitimadas.

A idéia dualista de que a sociedade esteja dividida entre procedimentos de violência e outros de civilidade ou cordialidade é equivocada. É ilusório pensar a violência praticada em campos pré-determinados e o nosso cotidiano opostamente pacífico. Mais correto seria acreditar que as formas amplamente divulgadas da violência são a face pública de uma

forma de violência, cuja face privada e microssocial é esse tecido de relações cotidianas em todos os níveis e situações tidas como "normais" (MARCONDES FILHO, 2001).

Se por um lado afirmamos que não existem fronteiras para a violência, por outro lado, a própria violência física é uma situação-limite. No conflito com o outro, acaba o diálogo verbal (quando existe) e surgem outras formas de diálogo, entre elas, a linguagem da força física. Por ser destruidora, a violência tem como função manter um tipo de poder legitimado pela dominação (física ou não) e disseminado em diferentes processos sociais. Vejamos como se manifesta a violência nas relações microssociais, tendo como referencial a família. Segundo Saffioti (1989), os três princípios estruturadores da sociedade brasileira são o capitalismo/patriarcalismo/racismo. Enquanto sistemas de dominação- exploração essa tríade transforma as relações sociais em relações de poder. Caracterizam-se pelas relações antagônicas e contraditórias existentes entre classes, raças e gênero. Hierarquicamente, teríamos no topo da escala do poder o macho, branco e rico. Nas categorias sociais subalternas estariam as mulheres, pobres, negros e crianças e, em último lugar, estaria a menina negra e pobre.

Nas relações adultocêntricas (poder do adulto sobre a criança), os interesses entre o adulto e a criança não são antagônicos, pois cabe ao primeiro socializar os instintos da criança, educá-la e transmitir os padrões de conduta vigentes. O papel disciplinador do adulto frente às gerações imaturas é de transformar a criança em pessoa capaz de atuar com o máximo de sociabilidade.

A Síndrome do Pequeno Poder, denominada pela autora, consiste em fazer uso da escala hierárquica de poder. Ou seja, os homens têm amplas categorias sociais para usufruir o seu ‘pequeno’ poder: mulheres, crianças, homens ocupando posições subalternas. A mulher, no entanto, usufrui o seu poder frente às crianças, geralmente de sua família.

Considerações à parte, as relações adultocêntricas e a Síndrome do Pequeno Poder reproduzem a condição inferior da criança na estrutura econômica, social e familiar, favorecendo o espaço para que a infância seja submetida a várias manifestações de violência.

Podemos concluir que a violência não é uma ‘degeneração’ do ser humano, mas um

modo específico de afirmação do indivíduo sob a vigência de determinadas formas de sociabilidade (FRAGA, 2002). Portanto, a sociabilidade privada, em especial a família, é um

espaço privilegiado para o exercício de identidade e auto-afirmação do indivíduo. Vejamos o que afirma Gentile:

A questão da violência suporta-se na busca de identidade. Quando alguém nos ofende, isto é, ataca a nossa identidade, tornamo-nos violentos. É isso o que acontece quando um marginal risca um automóvel, ou exerce a violência gratuitamente. Não por outro motivo ele é marginal, está à margem, no limite da identidade. E não há forma mais profunda de estabelecer a identidade de uma vida do que com o desaparecimento de outra2.

2

GENTILE, S. A Experiência do SOS Criança. Apresentação do coordenador do SOS Criança, Sabino Gentile, na mostra “Sociedade Viva – Violência e Saúde”, Natal, abril, 2004.

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