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5 PAIS, FILHOS E VIOLÊNCIA: A FACE CRUEL DA PROTEÇÃO

5.5 Perfil social dos pais

Os pais com história de violência estão inseridos em contextos familiares diversos, com determinada estrutura e hierarquia familiar. Uma maior flexibilidade das normas

apreendidas e reproduzidas pelos membros do grupo familiar, depende da própria dinâmica da vida social em que se insere este grupo. Entendendo a vida social como uma

pluridimensionalidade de relações permeadas por antagonismos, contradições de várias ordens que, a cada momento e em cada lugar, ganham uma configuração própria

(CASTRO, 1992, p. 241).

Na maioria das famílias contactadas neste estudo, um dos cônjuges exerce mais a prática de castigos físicos. Algumas observações abaixo foram construídas e/ou confirmadas ao longo da minha experiência no SOS CRIANÇA:

x História de violência familiar na infância:

Grande parte dos pais afirma ter apanhado na infância. Reconhecem que foi uma experiência ruim ou agradecem por não serem criminosos. A maioria reproduz a violência sofrida nos filhos. Alice Miller (2004) revela que pais com alguma experiência traumática na infância, com ou sem violência física, tendem a reproduzir atos violentos na família e na sociedade.

x Pais que batem para proteger os filhos:

Alguns pais batem, trancafiam ou amarram os filhos na intenção extrema dos mesmos não saírem de casa e não se machucarem. Às vezes, tais atos acompanham a necessidade da mãe sair para o trabalho ou para se divertir.

x Pais que somatizam dificuldades psicológicas e sócio-econômicas:

Pais que, em situações conflituosas envolvendo questões diversas, descarregam a sua ‘indignação’, o seu ‘nervosismo’ nos filhos. Na maioria dos casos, o não reconhecimento social e a baixo-estima aumentam quando não conseguem suprir as

necessidades básicas de vida. Às vezes, indivíduos vivendo sem dignidade, eliminam sentimento valorativo para si e para os demais.

x Perda de autoridade por falta de limites:

A princípio, pais muito permissivos. Criados sem limites, referências e exemplos, os filhos acham que podem tudo. Na medida em que crescem, não se acostumam com o “não” que começam a receber dos pais. No conflito da ‘revolta do não’, os pais perdem sua autoridade (e controle) e começam a bater nos filhos.

x Pais que exigem ascensão social do filho (estudo, comportamento, beleza,

inteligência):

Demonstram superproteção com os filhos. Ficam agressivos quando seus planos são frustrados e quando os filhos não satisfazem seus desejos.

x Pais cuja presença do filho é uma ameaça para a sua liberdade:

Em constante conflito conjugal ou separados, estes pais acham que a sua liberdade está sendo prejudicada pela presença do filho e não renunciam a vida anterior em prol do mesmo. Surge, ainda, a necessidade em demonstrar ao (ex) cônjuge que continua com a sua liberdade. Às vezes, tal necessidade se volta de forma agressiva para o filho. É freqüente a criança, neste espaço, ser ‘objeto de revanche’ entre os pais.

x Pais portadores de deficiência mental:

Em menor número, são pais com visíveis transtornos mentais e história de violência na família, aposentados ou em tratamento especializado. Há também casos de fanatismo religioso e excesso de purificação (medo do mal) direcionado ao filho, anulando o seu processo de socialização.

x Pais drogaditos:

Sem função definida na hierarquia familiar e sem perspectiva de ascensão social, alguns pais são agressivos com todos os membros da família. Em alguns casos, quando o grau da dependência é muito alto, sua figura paterna/materna se torna hilária na estrutura familiar, reforçando sua agressividade.

x A lei quem faz é ele (a) – com história ou não de violência familiar na

infância:

Pais que criam sua própria lei, cujo modelo de honestidade e obediência é obtido através de duros castigos disciplinares. São rígidos e obcecados pela idéia de que a lei é muita falha. Deve-se fazer justiça com as próprias mãos. O filho deve seguir suas regras sem contestação, porque é assim que deve ser.

x A construção social do gênero masculino/feminino em papéis rígidos, como

também a precocidade sexual explícita:

Pais com superproteção aos filhos, pelo seu aspecto sexual. Não sabem lidar com a sexualidade dos mesmos. Rejeitam qualquer demonstração de carinho contrário ao padrão heterossexual. Culturalmente, a repressão sexual se volta para a figura da menina.

x Pais que não tem sensibilidade e/ou conhecimento do processo de

crescimento dos filhos:

Pais que não suportam escutar o choro da criança, ver a mesma se lambuzar ao comer, cair ou se machucar. Não entendem que estas ações fazem parte do processo de desenvolvimento da criança.

Pais que exigem completa submissão dos filhos, porque estes lhes pertencem. Se for o pai, este domínio se estende à esposa. Qualquer discordância é sinal de desrespeito e motivo de agressão.

x Igualdade como conflito:

Pais e filhos vivenciam uma relação com a mesma idade mental. A igualdade, nesse caso, se transforma em grande conflito interno. Nenhum dos dois quer ceder espaço. Um, por ser maior, usa a força física para garantir o domínio do seu espaço. Igualdade que não elimina a diferença, transformando-a em desigualdade (QUEIROZ, 2002).

x Pais agressivos que rejeitam o filho:

Pais sem vínculos afetivos com o filho. Batem na intenção de machucar, sem ‘motivos’ aparentes. Constata-se que a violência é direcionada a um dos filhos do casal (CUNHA, 2004), processo conhecido como a ‘vítima sacrificial’ (GIRARD, 1990).

A complexidade da problemática da violência doméstica contra a criança faz com que essas características se ramifiquem e ganhem novos contornos. Não são estanques e nem totalmente explícitas, freqüentemente revelam-se em conjunto. Uma maior ou menor visibilidade depende do próprio universo familiar. No nosso estudo, o quadro de exclusão social e a precária condição de vida estão presentes nas famílias em situação de violência. A forma de lutar pela sobrevivência e o grau de resolutividade dos conflitos entre seus membros variam de acordo com os valores culturais internalizados por estes.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em um universo de saltos, mil interpretações do pulo

Hoje, a disseminação dos meios de informação, através da globalização, influencia cada vez mais os contextos locais e as experiências individuais e sociais. A família, a classe, a cidadania e a nacionalidade são dimensões ou posições de subjetividade que se combinam nos indivíduos e nos grupos sociais de modos diferentes, segundo os contextos e as culturas, segundo as práticas e as tradições, segundo os objetivos e os obstáculos (LOPES JÜNIOR, 2000).

Segundo Frota e Russo (2003), as relações familiares seguem o movimento de organização-desorganização-reorganização da sociedade, com suas mazelas e contradições. Este movimento mantém uma estreita relação com contexto sócio-cultural dos seus membros, na busca criativa de alternativas para responderem às suas necessidades e projetos.

Historicamente, a família brasileira é alicerçada por valores provindos da tradição ocidental cristã e do modelo patriarcal de família, características marcantes no processo de socialização das crianças. Valores reproduzidos e disseminados por uma rede complexa de informações, onde prevalece um contexto familiar marcado pela vulnerabilidade e exclusão social.

A maioria dos estudos sobre a problemática da violência contra a criança na família, enfatiza a urgência na denúncia, os fatores individuais da agressão e os mecanismos que minimizem esta problemática. O desafio assumido neste estudo é apreender alguns fatores que contribuem para a reprodução desta violência, tendo nos costumes, mitos e crenças, determinantes marcantes nesse processo.

As singularidades de situações encontradas em cada família descartam generalizações sobre a temática. Neste estudo, podemos constatar a existência do vínculo pais/filhos, mesmo que esta relação tenha como instrumento básico, a violência física e a rigidez disciplinar, sustentadas por um discurso autoritário que prega a obediência.

Se olharmos mais atentamente, esta problemática está intimamente ligada às necessidades de sobrevivência do grupo familiar. No universo desta pesquisa temos, por exemplo, a prática correcional relacionada ao receio do filho perder a única renda estável da família ou por não estar cuidando dos irmãos menores. Situações que não serão encontradas em famílias de classe média e alta.

A tênue linha que separa o público e o privado faz despir o ‘manto sagrado’ da família. O espaço domiciliar da família extensa e de baixa renda se limita a um vão ou poucos cômodos, em casa conjugada ou vila, ambas com quintal coletivo. São várias gerações convivendo em um mesmo espaço, anulando, deste modo, a privacidade dos seus membros.

Os pais que vivem em situações-limite, determinadas por um modelo econômico excludente, sem acesso a benefícios mínimos, sociais, econômicos e culturais, têm mais dificuldades em exercer suas funções paternas e maternas de proteção, de pertencimento, de construção de afetos, de educação e socialização de seus filhos.

Será que nas sociabilidades das famílias em situação de violência, predominam as relações individualistas e societárias? Estariam as relações comunitárias (ou o ‘sentimento’ de família) perdendo terreno? Anunciação (2002), considerando a perspectiva de Tönnies, afirma que a família pode semear valores comunitários no indivíduo, proporcionando-lhe um sentimento de pertencimento em tempo e espaço específicos, mesmo envolvida num sofisticado sistema de comunicação que produz uma crescente sensação de desenraizamento.

A questão dos direitos sociais da criança, no contexto de exclusão social em que se encontra grande parcela da infância brasileira, cai no risco de se deter a uma cidadania

minimalista (GUARA, 1995), limitada a suprir as necessidades mínimas de sobrevivência. O

momento está mais para a construção de novos paradigmas que contribuam no processo de emancipação humana e de uma cultura de paz. Emancipação que implica a criação de um novo senso comum político (SANTOS, 2000), numa inclusão que leve em conta conceitos de autonomia, qualidade de vida, desenvolvimento urbano e eqüidade.

A dificuldade em transformar as necessidades básicas em direitos está em não reconhecer os aspectos subjetivos dessas necessidades, associadas historicamente à ajuda material aos ‘necessitados’: “(...) ‘A verdadeira necessidade social’ representa a média das

necessidades interiorizadas historicamente a partir de um ‘sistema de necessidades’ vinculado aos costumes, e à moral e em evolução constante” (GUARA, 1995, p.48).

Concordamos com Fraga (2002) ao afirmar que a violência é uma forma de dilaceramento do ser social. Se o comportamento humano se origina das relações sociais, que inclui a própria violência como afirmação do indivíduo em determinadas formas de sociabilidade, o amor materno e paterno também. Construído socialmente, o amor parental

se inclui nas necessidades sociais a ser ‘cultuado’ como uma auto-afirmação do indivíduo

em qualquer forma de sociabilidade.

Se hoje temos a necessidade de consumo, alimentando o ‘apartheid social’, que exclui cada vez mais grupos populacionais do círculo de qualidade de vida, o que irá reverter esse quadro é a tradução qualitativa dessas necessidades feita pela família, comunidade, escola e outros.

No entanto, em nossa sociedade é a quantidade de dinheiro que regula e qualifica o direito. Temos como exemplo, o acesso aos serviços privados de educação e saúde. Se entendermos a sociedade como a soma dos grupos que se auto-atribuem necessidades (HELLER, apud GUARA, 1995), a base da eqüidade social se fundamenta na demanda por justiça apresentada por esta sociedade. A contestação é o que permite a alteração das instituições e essa possibilidade de mudança é o traço da modernidade.

A diminuição de notificações de espancamento na criança praticado por pais, no primeiro trimestre de 2003, no programa SOS Criança, não quer dizer que esta violência esteja diminuindo. Mesmo assim, aos poucos, a base para a sua sustentação está sendo atingida. Hoje temos pais que batem e indivíduos que serão pais e que, provavelmente, irão bater nos filhos. A diferença é que há uma maior organização de forças sociais contribuindo para uma nova cultura: o direito da criança crescer sem violência.

O que é mais sagrado na criança, o riso e a brincadeira, contrasta com a realidade materializada em números alarmantes como o trabalho infantil, a exploração sexual, o tráfico de drogas e a violência doméstica. Estar atento às novas formas de relações, que reconheça a sua presença (e voz) na história da humanidade – o outro em mim – é estar aberto às mudanças.

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