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Epidemiologia clínica: nova ideologia médica?.

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Academic year: 2017

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Epidemiologia clínica: nova ideologia médica?

Clinical e p id e mio lo g y: a ne w me d ical id e o lo g y?

1 Dep artam en to d e Med icin a Socia l, Fa cu ld a d e d e Ciên cia s M éd ica s, Sa n t a Ca sa d e Sã o Pa u lo. Ru a Cesá rio M ot t a Jr. 61, 5oa n d a r, Sã o Pa u lo, SP 01221- 020, Bra sil.

Rit a Ba rra d a s Ba ra t a 1

Abst ract In t h is w ork w e d iscu ss t h e em ergen ce of Clin ica l Ep id em iology w it h it s d ou b ly id elogica l n a t u re. W e b egin by p resen t in g d ifferen t con n ot a t ion s of id eology, t w o of w h ich a re ch osen t o be d iscu ssed h ere. Th e first is t h e p osit iv ist ic con cep t of id eology as t h e set of id eas of a giv -en h ist orical t im e; t h e secon d is t h e M arx ist con cep t of id eology, as con cealin g relat ion s of d om i-n ai-n ce. Ui-n d er t h e first m eai-n ii-n g, Clii-n ical Ep id em iology is d iscu ssed v is-à-v is id eas ii-n force ii-n t h e 1980’s, giv in g it a p red om in a n t ly p ost - m od ern ch a ra ct er a lon g w it h t h e loa d of in d iv id u a lism b orn by t h is w ord . Fin a lly, w e p resen t t h e m yt h s u n d erlyin g Clin ica l Ep id em iology, seen n ow a c-cord in g t o t h e secon d m ea n in g of id eology.

Key words Ep id em iology; Clin ica l Ep id em iology; Th eory; M ed ica l Ph ilosop h y

Resumo Est e t ra ba lh o d iscu t e a em ergên cia d a ep id em iologia clín ica e seu ca rá t er d u p la m en t e id eológico. In icia lm en t e sã o a p resen t a d a s d iferen t es con ot a ções d o con ceit o d e id eologia op t a n d o se p or t ra b a lh a r com d ois d esses sen t id os. O p rim eiro é a n oçã o p osit iv ist a d e id eologia en -q u a n t o id éia s d e u m d a d o t em p o h ist órico; e o segu n d o é a n oçã o m a rx ist a d e id eologia com o ocu lt am en t o d as relações d e d om in ação. Sob o p rim eiro sen t id o, a ep id em iologia clín ica é d iscu -t id a com rela çã o à s id éia s v igen -t es n a d éca d a d e 80, o q u e lh e con feriria u m ca rá -t er em in en -t e-m en t e p ós- e-m od ern o, coe-m t od a a ca rga d e in d iv id u a lise-m o q u e o t ere-m o ca rrega . Fin a le-m en t e sã o a p on t a d os os m it os d e qu e se a lim en t a a ep id em iologia clín ica , t om a d a a gora n o segu n d o sen t i-d o i-d a n oçã o i-d e ii-d eologia .

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Introdução

Id eo lo gia é u m term o q u e, d esd e seu a p a reci-m en to n o sécu lo XIX, vereci-m sen d o u sa d o d a s m ais d istin tas m an eiras, isto é, sob as m ais d i-versas acep ções, seja n o âm b ito cotid ian o, seja n o âm bito das p róp rias Ciên cias Sociais (Ch au í, 1982). Assim , con sid ero ú til esclarecer, d e in í-cio, em qu e sen tid o u sam os o term o id eologia.

No âm b ito d as Ciên cias Sociais, o con ceito d e id eologia assu m e d iferen tes con teú d os n os d iferen tes a u to res q u e d ele fa zem u so. Va m o s reter aqu i d u as d essas con ceitu ações: a p rim eira, form ulada exp licitam en te p or Augusto Com -te e a segu n d a form u lad a p or Marx n a crítica à id eologia alem ã (Ch au í, 1982; Lowy, 1985).

Para o p rim eiro d esses au tores, id eologia é defin ida com o o con jun to de idéias de um a ép o-ca, tan to com o “op in ião geral”, qu an to n o sen ti-d o ti-d e elab oração teórica ti-d os p en sati-d ores ti-d essa ép oca (Ch au í, 1982). Desse m od o, p ara resp on d er a q u estã o co lo ca d a co m o tem a , p o d ería -m os in vestiga r a s “id éia s d a ép oca”, isto é, e-m qu e con texto teórico su rge a ep id em iologia clín ica, ou seja, sob qu e sigclín o iclín telectu al ela ap a -rece. No p lan o m ais geral d a p rod u ção in telec-tu a l, ela en co n tra su a s ra ízes n o m o d ern ism o dos an os 70 e floresce n a “p ós-m odern a” década de 80.

O qu e isso sign ifica con cretam en te? Ap ó s a exp lo sã o u tó p ica e crítica d o s a n o s 60, q u an d o o m od ern o era sin ôn im o d e tran s-form ações, n egação, ru p tu ra, o m ovim en to cu l-tu ral com o u m tod o p assou p or u m a ten d ên cia à fra gm en ta çã o d o rea l e p o r u m iso la m en to p rogressivo, op on d o ao p red om ín io d o coleti-vo o b ser va d o n o p erío d o a n terio r o p rim a d o do in dividu al (Berm an , 1986). Nesse con texto, a ep id em iologia clín ica ap arece até certo p on to com o u m a releitu ra d a ep id em iologia, cam p o p rivilegiad o d o estu d o d e fen ôm en os coletivos d e saú d ed oen ça, ten tan d o ad eq u ála aos im -p erativos d a ab ord agem clín ica in d ivid u al (Al-m eid a-Filh o, 1993).

Parte-se d a con statação d e q u e a realid ad e é u m con ju n to in fin ito e qu e p ara realizar u m a in vestiga çã o, p a ra fa zer ciên cia , é p reciso tra -b alh ar com d ad os fin itos, relacion ar a p esqu isa a u m ob jeto lim itad o, en fim , estu d ar fatos sin -gu lares (Lillien feld et al., 1980). Esta retaliação d o real, se p or u m lad o lib erta os cien tistas d e gen eralizações “extravagan tes” e “vagas totali-d atotali-d es”, p or ou tro, im p etotali-d e a elab oração totali-d e u m p en sam en to cap az d e con d u zir ao en gajam en -to d os seu s trab alh os e d e su as vid as n o p roces-so d a h istó ria . A m ística d o p ó s-m o d ern ism o se esforça p or cu ltivar a ign orân cia d a h istória e a con sid erar tod a a ativid ad e com o recém in

-ven tad a e com o se fosse in con ceb ível an terior-m en te (Berterior-m an , 1986).

A ep id em io lo gia clín ica , em seu d iscu rso, recu sa a exp eriên cia a cu m u la d a p ela clín ica p or con sid erá-la n ão cien tífica e, p ortan to, n ão m od ern a , e a té certo p on to, recu sa ta m b ém o co n h ecim en to p ro d u zid o p ela ep id em io lo gia reten d o d ela a p en a s os p rin cip a is in stru m en -tos e m étod os d e in vestigação. Ao se d efin ir co-m o “u co-m co-m od o d e p rod u zir e in terp retar ob ser-va çõ es clín ica s em m ed icin a” (Fletch er et a l., 1982), a o m esm o tem p o em q u e se co lo ca co-m o “u co-m a ciên cia relacion ad a coco-m a con tageco-m d e even tos clín icos qu e u tiliza o m étod o ep id e -m io ló gico p a ra p ro ced er a essa co n ta ge-m e à su a an álise” (Fletch er et al., 1982), ela ap arece co m o sín tese en tre d o is ca m p o s d e co n h eci-m en to, reten do de u eci-m o objeto e de ou tro o eci-m é-todo. Nesse p rocesso de sín tese, corre-se o risco d e q u e se p erca m a s “virtu d es” d e a m b o s (Al-m eid a-Filh o, 1992).

A Clín ica se con stitu i com o discip lin a a p ar-tir d a ru p tu ra qu e se p rocessa, já n o fin al d o sé-cu lo XVIII, com a m edicin a das esp écies e a m e-d icin a e-d a s ep ie-d em ia s. Pa ra o s cla ssifica e-d o res d a m ed icin a d a s esp écies, o a to fu n d a m en ta l d o con h ecim en to m éd ico era u m a d em arcação correta d os sin tom a s em rela çã o à s d oen ça s e d esta s n o p la n o gera l d o m u n d o p a to ló gico qu e Fou cau lt ch am a d e o “jard im d as esp écies” (Foucault, 1977). No século XVIII o saber da m e-d icin a era assim e-d escrito:

“A ciên cia d o h om em se ocu p a d e u m ob je-t o m u ije-to com p licad o, abarca u m a m u lje-tid ão d e fa t os ba st a n t e v a ria d os, op era sobre elem en t os d em a sia d a m en t e su t is e n u m erosos p a ra sem -p re d ar às im en sas com bin ações d e qu e é su sce-t ív el, a u n iform id a d e, a ev id ên cia e a cersce-t ez a qu e caracteriz am as ciên cias físicas e m atem á -ticas.”(C. L. Du m as, an o XII d a Revolu ção, cita-d o p or Fou cau lt, 1977).

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p a t o ló gico, e n q u a n t o e le m e n t o p e rce p t íve l, ob servável, a con stitu ição d e u m sab er p ositi-vo p ara a clín ica. O saber clín ico torn a-se assim u m saber sobre a doen ça e n ão sobre o h om em , u m a vez qu e p ara tom ar a d oen ça com o ob jeto d e estu d o fo i p reciso tra tá -la co m o u m ENTE o u u m SER co m e xistê n cia p ró p ria (Cla vre u l, 1983).

Esse n ovo sab er n ão n asce livre d e con tra-d ições. Por u m latra-d o, ele é u m sab er qu e se refe-re a fen ôm en os p a tológicos q u e se exp refe-ressa m através d e sin tom as e sin ais p ossíveis d e serem cap tad os p elo m étod o d e in vestigação clín ica; d e ou tro, é u m sab er q u e se refere à con tagem d e “casos clín icos” a p artir d os qu ais vão se es-tabelecer as relações p robabilísticas en tre sin ais e sin tom as d e u m lad o e sign ificad os ou d iag-n ósticos, de outro.

O m od o p elo q u al a clín ica op era red u ções sob re esse “ob jeto com p licad o e m ú ltip lo” q u e é o h om em doen te, n a bu sca da con stitu ição de u m co n ceito p o sitivo d e d o en ça , terá reflexo s im p ortan tes sob re a p rática m éd ica. A p rática clín ica terá p or fu n d am en to a in d ivid u alização d o s ca so s a tra vés d a d elim ita çã o d a s rela çõ es d o in d ivíd u o, o b jeto d a in vestiga çã o, e o s o u -tros m em b ros d a esp écie. Isto é, a clín ica p ro-cederá a u m a redu ção ao biológico, n ão ap en as en q u an to recu rso m etod ológico, m as tam b ém en quan to p rática de in terven ção (Men desGon -çalves, 1990).

Em b o ra o estu d o d e co n d içõ es, co m o a s ep id em ia s, q u e a feta m a s p o p u la çõ es, seja m con h ecid as d esd e a An tigü id ad e, é som en te n o sécu lo XIX q u e a ep id em io lo gia irá a p a recer co m o d iscip lin a co n stitu íd a (Alm eid a -Filh o, 1988; Bu ck et al., 1988; Lillien feld et al., 1980). Se recorrerm os a d iferen tes au tores e a d iferen -tes trab alh os con sid erad os clássicos, com o os d e Ja m es Lin d (p ela gra ), Sn ow (có lera ), Bu d d (feb re tifó id e) e o u tro s, n o ta rem o s q u e o q u e caracteriza a ep id em iologia é o estu d o d a saú -d e e -d a -d o en ça em gr u p o s p o p u la cio n a is (Roth m an , 1986; Klein b au n et al., 1982). Pod e-m o s o b ser va r ta e-m b ée-m q u e a gra n d e e-m a io ria d a s in vestiga çõ es rela cio n a a o co rrên cia d e d oen ças e as con d ições d e vid a d as p op u lações estu d ad as (Gold b erg, 1982).

À m ed id a em q u e o s m éto d o s d e a n á lise q u an titativa vão se d esen volven d o, p arad oxal-m en te, a s a n á lises só cio -eco n ô oxal-m ica s vã o se em p ob recen d o. Já n o sécu lo XX, sob o im p acto d os avan ços técn icos, seja n as d iscip lin as b ási-cas, seja n os in stru m en tos e técn icas d e an áli-se d e d a d o s, o in teresáli-se d a ep id em io lo gia va i se red u zin d o a id en tifica r rela ções en tre “m e-d ie-d as e-d e ocorrên cia e-d e e-d oen ças e con ju n to e-d e d eterm in an tes” (Miettin em , 1985), realizan d o

assim o id eal d a clín ica, em seu n ascim en to, a p ro d u çã o d e u m sa b e r p ro b a b ilístico so b re a d oen ça.

Esta red u çã o, em tu d o sem elh a n te à q u ela op erad a p ela clín ica n a con stru ção d e seu ob -jeto d e estu d o, acab a p or fragm en tar a realid a-d e so cia l, tra n sfo rm a n a-d o a co m p lexia-d a a-d e a-d a s rela ções socia is em fa tores isola d os, p a ssíveis d e m ed içã o e d e tra ta m en to p o r m eio d e m o -d elo s m a tem á tico s q u e, em b o ra so fistica -d o s, são in cap azes d e recon stru ir, m esm o qu e “p ali-d am en te” o real. Com o afirm a Golali-d b erg (1982), o “p rin cíp io d a sim p lificação” se op õe ao “p rin cíp io d a exp lica çã o”, o u seja , é im p o ssível co -n h ecer a p e-n a s a p a r te, sem co -n h ecer o to d o. Não cab e à ep id em iologia sim p lesm en te id en -tificar, isolar, m ed ir fatores d e risco e associálos a m ed id as d e ocorrên cia; é su a tarefa tam -b ém in tegrar esses fatores em u m a exp licação coeren te.

É através d a ep id em iologia q u e a m ed icin a p ron u n cia seu d iscu rso sob re o social. Mas, ao ab rirse p ara o social, a ep id em iologia fica su -jeita a , en q u a n to ca m p o teó rico e p rá tico, ser in vad id a p or d iferen tes con cep ções d o social e ap resen tar d iversos p rojetos d e com p reen são e in terven ção n as d im en sões sociais d a saú d e e d a d oen ça (Men d es-Gon çalves, 1990).

A clín ica e a ep id em iologia têm em com u m , além d e seu in teresse p ela saú d e e p ela d oen ça em h u m an os, o fato d e terem “n ascid o” n o p e-río d o d e a scen sã o d a o rd em b u rgu esa . Ma rs-h all Berm an (1986), citan d o Marx, d escreve as-sim esse m om en to d o p rocesso h istórico:

“O con st a n t e rev olu cion a r d a p rod u çã o, a in in t erru p t a p ert u rb a çã o d e t od a s a s rela ções sociais, a in term in ável in certez a, a agitação d is-t in gu em a ép oca b u rgu esa d e is-t od a s a s ép oca s an teriores. Tod as as relações fixas im obiliz ad as, com su a a u ra d e id éia s e op in iões v en erá v eis são d escartad as; tod as as n ovas relações recém -form ad as se torn am obsoletas an tes qu e se ossi-fiqu em .Tu d o o q u e é sólid o d esm an ch a n o ar, t u d o o q u e é sa gra d o é p rofa n a d o e os h om en s são fin alm en t e forçad os a en fren t ar com sen t i-m en tos i-m ais sóbrios su as reais con d ições d e vi-d a e su as relações com os ou tros h om en s.”

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O segu n d o sen tid o d a p a la vra id eo lo gia , aq u ele ad otad o p or Marx, faz referên cia à p ro-d u ção e à fu n ção social ro-d a iro-d eologia. A realiro-d a-d e n ão se con stitu i ap en as com o a-d aa-d o sen sível (em p irism o), n em tam p ou co com o d ad o in te-lectu al (racion alism o); ela é m ovim en to in ces-san te através d o qu al os h om en s estab elecem e in stitu cion alizam m od os d e con vivên cia. Nes-se p rocesso, os h om en s p rod u zem id éias e re-p resen tações re-p ara exre-p licar e com re-p reen d er su a vid a. Estas id éias, en tretan to, lon ge d e refletir os p rocessos tais q u ais eles são, ten d erão a es-co n d er d o s h o m en s o m o d o rea l d e p ro d u çã o d e relações sociais d e exp loração econ ôm ica e d om in ação p olítica. Esse ocu ltam en to d a rea-lid ad e ch am a-se id eologia (Ch au í, 1982).

O qu e torn a p ossível a existên cia d a id eolo-gia co m o “in versã o d o rea l” é: a su p o siçã o d e q u e as id éias existem em si e p or si, d esvin cu -lad as d o m u n d o m aterial, su p osição esta p ro-p iciad a ro-p ela sero-p aração, n o m u n d o d o trab alh o, en tre con cep ção ou p rojeto e execu ção; a alin a çã o, isto é, o fa to d e q u e alin o p la alin o d a exp e-riên cia vivid a as con d ições reais d e existên cia n ã o a p a recem a o h o m em co m o p ro d u zid a s p or ele, m as, an tes, com o p rod u toras d ele, ori-gin árias d e “forças sociais” alh eias, tais com o a n atu reza, o Estad o, a razão etc.

Ka rl Ma n n h eim d efin iu id eo lo gia co m o co n ju n to d e co n cep çõ es, id éia s, rep resen ta -ções, teorias, qu e se orien tam p ara a estab iliza-ção, legitim ação ou rep rod u ção d a ord em esta-b elecid a (Lowy,1985). Tod a id eologia tem u m a fu n ção m arcad am en te p olítica, con servad ora e reacion ária n o sen tid o d e im p ed ir as tran sform ações. As id eologias d esesform p en h asform esse p a -p el social, su b stitu in d o n a con sciên cia coletiva a s in stitu içõ es, va lo res, rela çõ es so cia is rea is p o r id éia s a b stra ta s co n sen su a is. Ao la d o d a s id eo lo gia s, a so cied a d e ta m b ém p ro d u z u to -p ias, qu e Man n h eim d efin e com o as id éias, re-p resen tações, teorias q u e asre-p iram ou tra reali-d areali-d e, u m a realireali-d areali-d e ain reali-d a in existen te. As u to-p ia s, to-p o rta n to, têm u m a d im en sã o crítica d e n egação d a ord em social vigen te e se orien tam p ara su a ru p tu ra.

A ep id em io lo gia clín ica , p o r su a filia çã o à ciên cia p ositiva, seja n a verten te in d u tiva (em -p irista) seja n a d ed u tiva (racion alista), b aseia-se em a lgu n s p ressu p o sto s q u e n o s leva m a cla ssificá -la co m o id eo lo gia , n esse segu n d o sen tid o, q u e ap on tam os an teriorm en te.

O p rim eiro m ito é o m ito d a ob jetivid ad e: o co n h ecim en to cien tífico b a seia -se n o estu d o d e fen ôm en os e fatos ob jetivos regid os p or leis n atu rais e in d ep en d en tes d a von tad e e d a ação h u m an a. A q u estão d a ob jetivid ad e d o con h ecim en to ap arecia, in icialm en te, com o u m p en

-sam en to u tóp ico, n a m ed id a qu e os en ciclop e-d istas fran ceses p rocu raram e-d em arcar os lim i-tes en tre a s “verd a d es d o clero e d a n o b reza feu d a l” e a “verd a d e” d a ciên cia . Este ca rá ter crítico e revo lu cio n á rio fo i sen d o p erd id o a té q u e se tra n sfo rm o u em u m in stru m en to d e ocu ltação d a realid ad e. Afirm ar o caráter n atu -ra l d a d istrib u içã o d esigu a l d a sa ú d e e d a d oen ça é retirar d a clín ica e d a ep id em iologia, a p ossib ilid ad e d e com p reen são d a totalid ad e e p ortan to d e su a tran sform ação.

Du rkh eim afirm a qu e “é tarefa d o p ositivis-ta exp lica r a o s estu d a n tes q u e o s fen ô m en o s p síq u ico s e so cia is sã o fa to s co m o o s o u tro s, co m o o s fa to s n a tu ra is, sã o su b m etid o s a leis q u e a vo n ta d e h u m a n a n ã o p o d e p ertu rb a r. Com o os fatos sociais n ão d ep en d em d a von ta-d e h u m a n a , p o r co n seq ü ên cia , a s revo lu çõ es são tão im p ossíveis qu an to os m ilagres” (Lowy, 1985).

É claro qu e n ão p reten dem os n egar a n ecessid a d e d e b u sca d e o b jetivid a d e n a in vestiga -çã o cien tífica , d esd e q u e ela n ã o sign ifiq u e a d istorção d os fatos reais, ou o ocu ltam en to d os p rocessos d e p rod u ção d os fen ôm en os estu d a -d os.

O segu n d o m ito se refere à q u an tificação e ao raciocín io p rob ab ilístico com o ferram en tas p or excelên cia d o con h ecim en to cien tífico. Es-tá su b jacen te aqu i a m áxim a d a estatística qu e a firm a : “m ed ir q u a n d o fo r p o ssível m ed ir e co n ta r q u a n d o n ã o fo r p o ssível m ed ir”. Essa ob sessão p ela q u an tificação tem u m a série d e con seqü ên cias p ara a clín ica: p od e levar, e tem levad o, a u m ab an d on o d as h ab ilid ad es trad icion ais d o clín ico e a su b stitu ição d os elem en -tos forn ecid os p ela an am n ese e p elo exam e fí-sico p o r in fo rm a çõ es q u a n tifica d a s o u “sem i-q u an tificad as” d os exam es; p od e levar ain d a à q u a n tifica çã o a rtificia l d e elem en tos q u e, p or su as p róp rias características, n ão seriam p assí-veis d e q u an tificação sem serem d esfigu rad os, su p on d ose q u e assim os raciocín ios n eles b a -sea d o s se to rn a ria m m a is cien tífico s. É sem d ú vid a em p ob reced or o ab an d on o d e tod as as form as d e d eterm in ação em favor d e u m a ú n i-ca, ain d a q u e esta seja a d eterm in ação p rob a-b ilística.

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d ú vid a o m elh or exem p lo, n as artes, d o p od er d estru id or d o p rogresso e d o d esen volvim en to in d iscrim in ad os, en qu an to a b om b a atôm ica é o fato con creto m ais gritan te d os efeitos d evas-tad ores d a n ossa ciên cia n eu tra, ob jetiva e téc-n ica.

Fin alm en te, m as n ão m en os im p ortan te, o m ito d a n eu tralid ad e. Deixei-o p ara o fin al exa-tam en te p or con sid erá-lo o m ais relevan te sob o a sp ecto id eo ló gico. A regra fu n d a m en ta l d a ob jetivid ad e cien tífica é a sep aração en tre su -jeito e ob jeto d o con h ecim en to p ara qu e se ga-ran ta a n eu tralid ad e d o cien tista. Tod o con h e-cim en to con tam in ad o p or valores é d ito id eo-lógico e n ão cien tífico. Esta p osição d o p ositi-vism o e d e tan tas ou tras p ostu ras form ais rela-tiva s a o con h ecim en to cien tífico é d ia m etra l-m en te op osta a ou tras p osições d en tre as qu ais vale lem b rar a p osição d e Max Web er. Para We-b er, se n ã o h o u vesse o en vo lvim en to d o p es-q u isa d o r co m seu o b jeto n ã o h a veria in vesti-ga çã o, p o is, sem seu s va lo res, o p esq u isa d o r n ão sab eria o q u e in vestigar. Para ele, os valo-res d eterm in am a escolh a d o ob jeto, o qu e é ou n ã o essen cia l, o a p a relh o co n ceitu a l q u e será u tilizad o. Os valores d efin em a “p rob lem ática” d o estu d o (Lowy, 1985).

O m arxism o recu sa a d u alid ad e en tre su jeito e ob jejeito d a in vestigação, d en u n cian d o am -b as as p osições com o id eológicas: u m a p or n e-gar a existên cia d a su b jetivid ad e avocan d o p a-ra si u m a p reten sa n eu ta-ra lid a d e e o u ta-ra in d i-can d o a p resen ça d e valores su b jetivos p ara em segu id a a firm a r a p o ssib ilid a d e d e co lo cá -lo s en tre p arên teses tão logo a p rob lem ática esteja d efin id a.

Não existe ciên cia p u ra de u m a lado e ideo-logia de ou tro. Existem diferen tes p on tos de vis-ta cien tíficos vin cu la d os a d iferen tes filia ções teóricas e p raxistas. A ep id em iologia clín ica re-p resen ta h oje u m a corren te de re-p en sam en to for-te n o con for-texto m édico e de p rodu ção cien tífica: o p ositivism o, ren ovad o ou n ão p elas elab ora-ções d o racion alism o p op p erian o. Qu an d o ela se ap resen ta com o a face cien tífica da m edicin a clín ica e com o a versão n atu ralizad a e d ócil d a

ep id em io lo gia está p reen ch en d o u m p a p el fran cam en te ideológico de delim itação daqu ilo q u e p od e ou n ão p od e ser ob jeto d e in vestiga-ção cien tífica n o cam p o d a saú d e e d a d oen ça; e m ais, de que m an eira tal objeto pode ser ab or-d aor-d o e m an ejaor-d o tecn icam en te.

A in d icação d a d im en são id eológica d a ep i-d em iologia clín ica n ão p reten i-d e n egar as p os-síveis con trib u ições q u e ta l m ovim en to p ossa ter trazid o p ara a p rática d a in vestigação cien -tífica n o cam p o d a clín ica m éd ica. Os con h eci-m en tos p rod u zid os n as qu estões relativas à va-lid ação d e p roced im en tos d iagn ósticos, eficá-cia d e técn icas d e in terven ção e ao estab eleci-m en to d e p ro gn ó stico s estã o eleci-m o d ifica n d o d e m an eira sign ificativa a p rática clín ica, em b ora n em sem p re seja p ossível aq u ilatar se tais m o-d ificações são too-d as elas p ositivas e b en éficas p a ra o s p a cien tes. O q u e se p ro cu ra a ssin a la r a q u i é o ca rá ter id eo ló gico d e ta l m ovim en to, q u e se ap resen ta, sim u ltan eam en te, com o cap a z d e co n ferir m a io r “cien tificid a d e” a o s co -n h ecim n tos em p íricos d a clí-n ica e aos co-n h e-cim en tos “excessivam en te” con tam in ad os p ela sociologia e p olítica n a ep id em iologia.

Ao red u zir a in vestiga çã o ep id em io ló gica aos estu d os d e eficácia d e p roced im en tos d iag-n ó stico s e tera p êu tico s a p lica d o s a gru p o s d e p acien tes, con stitu íd os com b ase ap en as n o fa -to d e serem p ortad ores d e d oen ça, a ep id em io-logia clín ica op era su a red u ção m ais sign ifica-tiva n a realid ad e, exclu in d o d o cam p o m éd ico os estu d os em qu e o caráter social d o p rocesso saú d e-d oen ça p ossa ser evid en ciad o.

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