• Nenhum resultado encontrado

Download/Open

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "Download/Open"

Copied!
151
0
0

Texto

(1)

UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO

ESCOLA DE COMUNICAÇÃO, EDUCAÇÃO E HUMANIDADES

P

ROGRAMA DE

P

ÓS

-G

RADUAÇÃO EM

C

IÊNCIAS DA

R

ELIGIÃO

TAINAH BIELA DIAS

SOBRE RELIGIÃO, ESTADO LAICO E CIDADANIA

LGBT+:

A FRENTE PARLAMENTAR EVANGÉLICA E A DEFESA

DA VERDADE SOBRE A FAMÍLIA

SÃO BERNARDO DO CAMPO

(2)

UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO

ESCOLA DE COMUNICAÇÃO, EDUCAÇÃO E HUMANIDADES

P

ROGRAMA DE

P

ÓS

-G

RADUAÇÃO EM

C

IÊNCIAS DA

R

ELIGIÃO

TAINAH BIELA DIAS

SOBRE RELIGIÃO, ESTADO LAICO E CIDADANIA

LGBT+:

A FRENTE PARLAMENTAR EVANGÉLICA E A DEFESA

DA VERDADE SOBRE A FAMÍLIA

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da Universidade Metodista de São Paulo, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Ciências da Religião.

Área de concentração: Religião, Sociedade e Cultura.

Orientadora: Sandra Duarte de Souza.

SÃO BERNARDO DO CAMPO

(3)

A dissertação de mestrado sob o título “Sobre Religião, Estado Laico e Cidadania

LGBT+: a Frente Parlamentar Evangélica e a defesa da verdade sobre a família”,

elaborada por Tainah Biela Dias foi apresentada e aprovada em 22 de março de 2017, perante banca examinadora composta pelos/as professores/as Doutores/as Sandra

Duarte de Souza (Presidente/UMESP), Naira Carla Di Giuseppe Pinheiro dos Santos (Titular/UMESP) e Marcelo Tavares Natividade (Titular/UFC).

_____________________________________________________ Profa. Dra. Sandra Duarte de Souza (UMESP)

Orientadora e Presidente da Banca Examinadora

________________________________________________________ Prof. Dr. Helmut Renders

Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião

Programa: Pós-Graduação em Ciências da Religião Área de Concentração: Religião, Sociedade e Cultura Linha de Pesquisa: Religião e Dinâmicas Sócio-Culturais

(4)

AGRADECIMENTOS

Gostaria, aqui, de agradecer a algumas pessoas que foram fundamentais em minha vida e que, sem o suporte delas, eu dificilmente teria chegado aonde cheguei.

À Fernanda, minha companheira. Obrigada por todo o apoio, por sempre acreditar em mim, por todos os conselhos, pela paciência, pelo ombro sempre oferecido, por todas as revisões de português e inglês, pela parceria incontestável na vida acadêmica e no dia-a-dia.

Aos meus pais, Lucilene e Amarildo, pelo amor e apoio incondicionais. Obrigada por todos os sacrifícios para que eu tivesse a oportunidade de me desenvolver academicamente com plenitude. Obrigada por todas as orações, e por sempre acreditarem em mim.

À minha avó Rosa e meu avô Élio (in memorian), por apostarem em mim, sua única neta, todas as fichas para que meu futuro fosse o melhor possível.

Aos amigos, que convencionei chamar por “migas” sem distinção de sexo, Pedro, Willian, Gabriel, Kairo, Davi, Alana, Marina, Nathalie, Gustavo Pazeli, Gustavo Gonçalves, Luiza, Nathália Mariano, Natália Cardoso, Gideane, Guilherme, Yan, Junior e Gabriela. Por todas as conversas, por todos os momentos de descontração e por todas as risadas que são tão fundamentais.

À Profa. Dra. Sandra Duarte de Souza, por todas as orientações, pelas críticas construtivas, por todos os toques, pelo conhecimento compartilhado, pelas conversas sérias e pelas brincadeiras pra descontrair após a orientação.

À Profa. Dra. Naira Pinheiro dos Santos, pelo conhecimento compartilhado em sala de aula ou em conversas de corredor, pelos cafés, pelas conversas após as reuniões do Grupo de Estudos Mandrágora/NETMAL.

(5)

Aos integrantes do Grupo de Estudos de Gênero e Religião Mandrágora/NETMAL, por todos os debates, pelas sugestões dadas e críticas feitas durante o desenvolvimento desta pesquisa.

À Universidade Metodista de São Paulo e todo o corpo docente do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião por possibilitarem o desenvolvimento desta pesquisa.

À CAPES, pela concessão da bolsa de mestrado como forma de apoio financeiro durante os dois anos de pesquisa.

À Vrije Unversiteit Amsterdam pela oportunidade de participação no intercâmbio do Bridging Gaps Program, que me proporcionou acesso a conteúdo acadêmico diversificado e ao convívio multicultural com estudantes de diversos países.

(6)

Quanto a nós, estamos em uma sociedade do “sexo”, ou melhor, de

“sexualidade”: os mecanismos do poder se dirigem ao corpo, à vida, ao

que a faz proliferar, ao que reforça a espécie, seu vigor, sua capacidade de

dominar, ou sua aptidão para ser utilizada. Saúde, progenitura, raça,

futuro da espécie, vitalidade do corpo social, o poder fala da sexualidade e

para a sexualidade; quanto a esta, não é marca ou símbolo, é objeto e alvo

(FOUCAULT, 2014, p. 159-160).

(7)

RESUMO

DIAS, Tainah Biela. Sobre Religião, Estado Laico e Cidadania LGBT+:

a Frente Parlamentar Evangélica e a defesa da verdade sobre a família.

2017. 147p. Dissertação de Mestrado (Ciências da Religião). Universidade

Metodista de São Paulo, São Bernardo do Campo, 2017.

A presente dissertação tem o objetivo de analisar como se dá a construção de um

discurso de verdade sobre a família por parte dos parlamentares evangélicos que

compõem a Frente Parlamentar Evangélica (FPE). Para viabilizar tal objetivo, foram utilizados Projetos de Lei (PL) e Projetos de Decreto Legislativo (PDC) propostos pelos membros da FPE e que visam institucionalizar jurídico e politicamente a família heterossexual e monogâmica como única legítima, em detrimento de outros arranjos, sobretudo aqueles formados por indivíduos que compõem a população LGBT+. Também foram utilizados discursos proferidos por estes e que se encontram disponíveis nos Diários da Câmara dos Deputados. Esta pesquisa se utilizou de abordagem qualitativa para atingir aos objetivos propostos, através da explicitação dos discursos de verdade e posterior análise munida do referencial teórico necessário. Concluímos que a defesa de uma verdade sobre a família objetiva perpetuar uma moral sexual tradicional baseada na submissão da mulher ao homem e que é colocada em cheque por famílias formadas por pessoas LGBT+, na medida em que estas questionam os papéis sociais atribuídos a homens e mulheres na sociedade. Além disso, concluímos que esta defesa, feita por agentes políticos e religiosos, coloca desafios à laicidade, à democracia e à consolidação da cidadania das pessoas LGBT+.

(8)

ABSTRACT

DIAS, Tainah Biela. About Religion, Secularism and LGBT+

Citizenship: the Evangelical Parliamentarian Front and the defense of the

truth about the family. 2017. 147p. Master’s Dissertation (Sciences of

Religion). Universidade Metodista de São Paulo, São Bernardo do Campo,

2017.

The purpose of this dissertation is to analyze the construction of a discourse of truth about the family by the evangelical parliamentarians who form the Evangelical Parliamentary Front (FPE). In order to achieve this objective, Law Projects (LP) and Legislative Decree Projects (LDP) have been proposed by FPE members that aimed at institutionalizing legally and politically the heterosexual and monogamous family as the only legitimate one, to the detriment of other arrangements, especially those formed by individuals that integrate the LGBT+ population. Speeches given by them have also been used and are available in the Diaries of the Chamber of Deputies. This research used a qualitative approach to reach the proposed objectives, through the explanation of the discourses of truth and later analysis with the necessary theoretical reference. We concluded that the defense of a truth about the family aims at perpetuating a traditional sexual morality based on the submission of the woman to the man and that is put in check by families formed by LGBT+ people, as they question the social roles attributed to men and Women in society. In addition, we came to the conclusion that this defense, made by political and religious agents, sets challenges to secularism, democracy and the consolidation of the citizenship of LGBT+ people.

(9)

SUMÁRIO

SUMÁRIO ... 9 INTRODUÇÃO ... 10 1 – LAICIDADE, GÊNERO E CIDADANIA: OS EVANGÉLICOS NA POLÍTICA

BRASILEIRA E A DEFESA DE “PAUTAS MORAIS” ... 15

1.1 – A SIMULTANEIDADE DOS PROCESSOS DE SECULARIZAÇÃO E DA

CONSTRUÇÃO SÓCIO-HISTÓRICA DA LAICIDADE ... 15 1.2 – A CONSTRUÇÃO DA LAICIDADE BRASILEIRA: DA LUTA PELA LIBERDADE RELIGIOSA À ASCENSÃO POLÍTICA DOS EVANGÉLICOS ... 28 1.2.1 Os evangélicos na política brasileira: de grupo minoritário a reprodutor das formas dominantes de se fazer política ... 32 1.3 – A PRIMAZIA DO GÊNERO NOS DEBATES SOBRE LAICIDADE: PARA PENSAR EM DIREITOS SEXUAIS, DIREITOS REPRODUTIVOS E DIREITOS DEMOCRÁTICOS NO BRASIL CONTEMPORÂNEO ... 39

2 – OS DISCURSOS DE VERDADE SOBRE A FAMÍLIA: A NORMALIZAÇÃO DA FAMÍLIA HETEROSSEXUAL, MONOGÂMICA E PATRIARCAL NA POLÍTICA BRASILEIRA ... 51

2.1 – SOBRE A NOÇÃO DE DISCURSOS DE VERDADE: A PRODUÇÃO SOCIAL DO “NORMAL” E DO “DESVIANTE” NOS DEBATES SOBRE O CONCEITO DE FAMÍLIA.. 52 2.2 – OS DISCURSOS DE VERDADE SOBRE A FAMÍLIA NAS PROPOSIÇÕES

LEGISLATIVAS: A BANDEIRA DE LUTA DA FRENTE PARLAMENTAR EVANGÉLICA NO CONGRESSO NACIONAL ... 59 2.3 – A FAMÍLIA EM DISCURSO: O DIÁRIO DA CÂMARA DOS DEPUTADOS E A

DEFESA DA FAMÍLIA DE PARLAMENTARES EVANGÉLICOS... 78

3 – IMPLICAÇÕES POLÍTICO-JURÍDICO-RELIGIOSAS NA PERPETUAÇÃO DA

VERDADE SOBRE A FAMÍLIA ... 92 3.1 – DESMISTIFICANDO A FAMÍLIA NATURAL: SOBRE FAMÍLIAS E

TRANSFORMAÇÕES SOCIAIS ... 92 3.1.1 Família como construção social ... 95 3.2 – A PERPETUAÇÃO DOS PAPÉIS TRADICIONAIS DE GÊNERO NA DEFESA DA FAMÍLIA “NATURAL”... 103 3.3 – QUANDO O PRIVADO SE MOSTRA POLÍTICO: O PLURAL COMO

ALTERNATIVA AO TRADICIONAL NOS DEBATES SOBRE O CONCEITO DE

FAMÍLIA...117 3.3.1 Família como lugar de luta por reconhecimento: sobre a imprescindibilidade de princípios laicos como preceitos jurídicos nos Estados democráticos ... 122 3.3.2 Famílias LGBT+ e as potencialidades de transformação cultural e simbólica do conceito de família ... 127

CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 134 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ... 139

(10)

INTRODUÇÃO

Uma pesquisa científica nunca é feita por acaso. As motivações da pesquisadora para realizá-la envolvem, antes de tudo, questionamentos próprios. Sobretudo nas áreas das ciências sociais, um dia chamadas de soft sciences – que de soft não têm nada, e explicarei o por quê de tal afirmação adiante –, as motivações são sempre derivadas de profundos incômodos com aspectos constitutivos da ordem social na qual vivenciamos nossas experiências enquanto indivíduos dela pertencentes.

Pessoalmente, não acredito na possibilidade de neutralidade científica, pois isso tiraria a paixão que existe entre a pesquisadora e seu objeto. Não vejo sentido na falta de posicionamento e senso crítico por parte de uma pesquisadora de ciências humanas, sobretudo na área dos estudos de gênero. Tais críticas, entretanto, não devem extrapolar os limites do rigor acadêmico necessário, mas podem, e possuem o compromisso, de extrapolarem as barreiras do senso comum. Críticas sejam estas sutis ou profundas, àquilo que está posto e que se busca mudar, àquilo que incomoda a pesquisadora que realiza seu trabalho.

Por conta disso mencionei não haver nada de soft nas pesquisas em ciências humanas, embora os padrões internacionais de pesquisas científicas assim as caracterizem. Perdoem-me a brincadeira com as palavras, mas, no termo literal da expressão popular, “dar a cara à tapa” é, ao contrário de soft, absolutamente hard. Assim, apresento-lhes aqui apenas mais uma pesquisa, de mais uma pessoa disposta a “dar a cara à tapa”, de mais uma pessoa profundamente incomodada com o desrespeito aos direitos humanos, à democracia e à laicidade nas terras Tupiniquins. No exato momento da escrita desta introdução, que foi a última parte desde trabalho, estamos completando 517 anos de desrespeito aos Outros. Por isso, aqui as leitoras e leitores encontrarão sinais de cansaço e indignação, travestidos de palavras rebuscadas que fazem parte do padrão acadêmico contemporâneo, mas hão de encontrar tais sinais, por vezes nas entrelinhas e, por vezes, explicitados com todas as letras.

O presente texto refere-se a um debate não tão recente, mas que ganhou visibilidade a partir do ano de 2010 no cenário político brasileiro. Diz respeito à atuação da chamada Frente Parlamentar Evangélica (FPE) no combate à ampliação dos direitos da população LGBT+. Mais especificamente, nos propomos aqui a discutir a ênfase destes parlamentares em um discurso que pretende perpetuar uma determinada

(11)

configuração de família, notadamente heterossexual, patriarcal e monogâmica. Assim, a defesa de uma moral sexual tradicional, e consequentemente de uma família tradicional, pode ser entendida como uma das principais bandeiras de luta e componentes das plataformas eleitorais desta bancada. Seja ativando mecanismos próprios de sua atividade política enquanto legisladores (como propondo Projetos de Lei ou tentando obstaculizar ou reverter a situação de direitos já adquiridos), ou mesmo expressando em seus discursos eleitorais e políticos seu posicionamento, a percepção destes parlamentares corrobora com o entendimento do conceito de família restrito como monopólio da heterossexualidade, respaldados em concepções religiosas que pensam as formas alternativas de sexualidade como ilegítimas e pecaminosas.

Veremos que os discursos desses parlamentares nem sempre acionam a argumentação com base religiosa. Por vezes, estes se utilizam até mesmo da Constituição Federal e de outros argumentos com tom catastrofista, a exemplo da evocação de uma suposta extinção da espécie humana pela impossibilidade lógica de reprodução biológica por casais homoafetivos ou transafetivos. Entretanto, consideramos que tal defesa possui fundamentação religiosa na medida em que considera somente a heterossexualidade como sexualidade legítima, correta, natural, e discutiremos os sentidos evocados pelos parlamentares evangélicos ao longo do texto, assim como os desafios que tais discursos tecem à efetiva consolidação da cidadania sexual e à autonomia dos indivíduos na escolha de suas relações afetivo-sexuais em sociedades norteadas pelos princípios da democracia e da laicidade do Estado.

A relevância social desta pesquisa vai de encontro à evidente existência de uma cultura homofóbica na sociedade brasileira, na qual pessoas homossexuais, bissexuais travestis e transexuais seguem sendo estigmatizadas e marginalizadas por não se adequarem aos padrões de sexualidade heteronormativos. Corroborando com tal afirmação, o Relatório de Violência Homofóbica no Brasil referente ao ano de 2013, produzido pela Secretaria de Direitos Humanos e pelo Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos da Presidência da República durante o governo Dilma Rousseff descreve que no ano de 2013, de um total de 3.398 denúncias através do Disque Direitos Humanos (Disque 100), 1.965 dessas referiam-se a alguma violação contra a população LGBT+. Ou seja, mais da metade das denúncias através deste portal referiam-se à violação de direitos da população LGBT+. Deste total, 53,1% das vítimas são homens gays, 26,2% representam as travestis, 13,6% não informaram,

(12)

6,2% são lésbicas e 0,9% representam a população transexual1. Entretanto, devemos levar em consideração também as violações não denunciadas, mantidas no silêncio dos armários daqueles que foram violados. Sabemos que sempre devemos desconfiar das estatísticas e dos dados, sobretudo aqueles apresentados em pesquisas em grande escala como as que abrangem todo o território nacional, pois estes não são capazes de revelar por inteiro a realidade das vítimas de violações na sociedade brasileira, mas dão apenas uma ideia dos problemas existentes.

Neste sentido, quando legisladores que compõem o Estado brasileiro procuram reduzir o conceito de família ao monopólio da heterossexualidade, para com isso deslegitimar as relações afetivo-sexuais de pessoas não heterossexuais, tratá-las como menos dignas da proteção do Estado e como famílias de segunda categoria e desconsiderar as reivindicações da própria população LGBT+ no sentido de conquistar de seus direitos de cidadania e a legitimidade de suas famílias enquanto famílias não diferentes das famílias heterossexuais, este Estado e estes legisladores abdicam de seu compromisso enquanto pessoas públicas e seguem seus interesses particulares, enquanto políticos e religiosos, na manutenção da heterossexualidade como norma, reforçam preconceitos e estigmas já existentes, mas que se tornam mais fortes pela legitimação estatal.

Para dar conta das questões postas acima, este trabalho se divide em três capítulos. O Capítulo 1, que intitulei Laicidade, Gênero e Cidadania: os Evangélicos na

Política Brasileira e a Defesa de “Pautas Morais”, procurei delinear de forma geral o

conceito de laicidade, que considero aqui como essencial para se pensar na garantia de cidadania das pessoas LGBT+. Procurei demonstrar como a laicidade brasileira foi construída de forma controversa, primeiramente pela forte ingerência da Igreja Católica (que segue até os dias atuais em alguns campos, como por exemplo a educação) e, mais recentemente, pela interferência de atores políticos evangélicos na tentativa de perpetuação de sua moral sexual tradicional através da luta contra a ampliação dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres e da população LGBT+. A despeito da forma como se tecem os arranjos da laicidade brasileira, considerei que esta é componente essencial dos regimes democráticos, sobretudo quando consideramos sua importância na garantia da cidadania das populações marginalizadas.

1 BRASIL. Secretaria de Direitos Humanos. Relatório de Violência Homofóbica no Brasil: ano 2013. Brasília, 2016.

(13)

No segundo capítulo, tratei especificamente da forma como se tecem os

discursos de verdade (FOUCAULT, 1999, 2014) sobre a família por parte dos

parlamentares que compõem a FPE. Para isso, foram selecionados Projetos de Lei que visam institucionalizar a família heterossexual como única legítima, encabeçados pelo PL 6583/2013, conhecido como Estatuto da Família, apresentado pelo parlamentar evangélico Anderson Ferreira (PR-PE) e aprovado em Comissão Especial na Câmara dos Deputados no ano de 2015. Também apresentamos Projetos de Decreto Legislativo propostos por membros da FPE. Este recurso legislativo é acionado por estes parlamentares na tentativa de reversão de direitos já adquiridos pela população LGBT+, a exemplo da decisão do Supremo Tribunal Federal, no ano de 2011, que reconheceu a união homoafetiva como entidade familiar. Além de mecanismos estritamente legislativos, também nos ocupamos de discursos proferidos por estes parlamentares a respeito da família heterossexual e contrários às formas alternativas de famílias.

No terceiro e último capítulo, nos ocupamos da análise de tais discursos. Vimos como a tentativa de construção de institucionalização de uma verdade sobre a família não se confirma social e historicamente. A variedade de arranjos familiares encontrados em diferentes sociedades no decorrer da história nos revela a impossibilidade de falar em uma família ontológica. Neste sentido, quando falamos em família, a regra é a

pluralidade. Desmistificada a ideia da possibilidade de existência de uma verdade sobre a família, de uma família natural, tradicional ou normal, discutimos a fundamentação

religiosa que dá base à construção de tal argumento. Nossa hipótese é a da complementariedade entre homofobia e machismo, no qual muito da contrariedade às novas formas de família baseia-se no questionamento que estas colocam às famílias que seguem configurações patriarcais que são sustentadas pela submissão das mulheres, submissão esta que, por sua vez, fundamenta-se em interpretações conservadoras dos textos bíblicos. Por fim, argumentamos que a defesa de um conceito restrito de família coloca armadilhas à laicidade brasileira e impede a consolidação da democracia e da cidadania da população LGBT+. Para isso, nos concentramos na defesa da pluralidade como fundamento imprescindível aos regimes democráticos.

Como conclusão do presente trabalho, foi destacada a necessidade de se garantir às pessoas LGBT+ o direito ao acesso indiferenciado a direitos que são caros à população brasileira de forma geral. A ideia de família e casamento são valores de nossa cultura, cultura esta na qual pessoas homossexuais, bissexuais, travestis e transexuais estão imersas. A despeito de todos os questionamentos em relação às instituições

(14)

casamento e família, consideramos legítima a reivindicação desses conceitos e dos direitos atrelados a estes por parte da população LGBT+ como forma de consolidar o princípio da pluralidade como essencial à democracia e à laicidade brasileira.

(15)

CAPÍTULO 1

LAICIDADE, GÊNERO E CIDADANIA: OS EVANGÉLICOS NA

POLÍTICA BRASILEIRA E A DEFESA DE “PAUTAS MORAIS”

1.1 A SIMULTANEIDADE DOS PROCESSOS DE SECULARIZAÇÃO E DA CONSTRUÇÃO SÓCIO-HISTÓRICA DA LAICIDADE

Dissertar sobre as relações, muitas vezes tensas, entre religião e política no Brasil, faz com que tenhamos que nos debruçar sobre um aspecto fundamental: as discussões acerca da laicidade do Estado de Direito. Embora o “senso comum” entenda, muitas vezes, laicidade como separação entre esfera pública e esfera privada, no qual a secularização dos poderes públicos relegaria à religião seu “lugar” no espaço da vida privada dos indivíduos, esta concepção de laicidade tem se mostrado, no mínimo, simplista para o que apresentam as mais variadas realidades locais e toda uma complexidade apresentada no que concerne às relações entre religião e política. A presença pública das religiões, em especial na América Latina, tem mostrado que estas extrapolam as fronteiras fictícias impostas pela modernidade (SOUZA, 2015), agindo no espaço público seja por meio de veículos de comunicação, por meio de posicionamentos públicos de líderes religiosos no que se refere a temas morais controversos, ou na destacada atuação de parlamentares autodeclarados religiosos no cenário da política institucional, como aqui pretendemos tratar.

Justamente pela complexidade do debate da presença pública das religiões na contemporaneidade, pensamos ser necessário um debate inicial acerca de um conceito que é central para os debates que envolvem o atual posicionamento de parlamentares evangélicos e a defesa de um discurso de verdade (FOUCAULT, 1999, 2014, 2015) sobre a família2. Este debate refere-se ao conceito de laicidade que, como se verá no decorrer deste capítulo, é elemento fundamental para a garantia das liberdades individuais na medida em que se relaciona de forma íntima com conceito de cidadania. Embora a proposta desta discussão não seja a defesa de uma laicidade que se pretenda “modelo” – como por muito tempo foi considerada a laicidade francesa, mas que

2 É importante salientar, de início, que quando nos referimos a “evangélicos” no decorrer deste texto, estamos nos referindo a um grupo específico, aquele que corresponde à Frente Parlamentar Evangélica (FPE), e que não representa os evangélicos como um todo, sobretudo quando consideramos as dissidências dentro deste movimento e o recente fenômeno das igrejas inclusivas. Sobre isso, ver: NATIVIDADE; OLIVEIRA (2013).

(16)

recentemente tem protagonizado polêmicas atitudes de desrespeito à liberdade religiosa, por exemplo, de mulheres muçulmanas no que concerne ao uso do véu (GASPARD, 2006). O que pretendemos é trazer à tona os debates acerca da laicidade como categoria política e explicitar quais são os aspectos que, nas recentes discussões acadêmicas, têm sido considerados seus princípios fundamentais.

Embora, como discutiremos nas próximas linhas, a laicidade não seja um processo uniforme e linear, mas que possui configurações diversas a depender do contexto e momento histórico, defendemos a necessidade de pontuar seus princípios enquanto elementos norteadores na compreensão de fenômenos que se tecem em atitudes de desrespeito à laicidade e, concomitantemente, à ampliação dos direitos de cidadania das chamadas minorias sociais, colocando em cheque as condições do estabelecimento da efetiva igualdade entre cidadãs e cidadãos de direito.

Antes de adentrar no tema específico da laicidade, entretanto, vale nos debruçarmos nas possíveis aproximações desta temática a outro conceito caro às ciências sociais e às ciências da religião. Refiro-me ao conceito de secularização, que embora não seja possível ser tomado como simples sinônimo àquilo que se entende por laicidade, está associado a esta quando nos referimos ao processo de racionalização que culmina na perda de influência da religião sobre as demais esferas da vida social, a partir da ideia weberiana de autonomização relativa das esferas enquanto uma consequência de um processo de racionalização que se origina no próprio interior do protestantismo, no que concerne à rejeição dos meios mágicos de salvação. Da mesma forma como o capitalismo moderno autonomiza-se da lógica teológica ascética e intramundana característica da ética protestante (WEBER, 2004), Weber salienta que, no decorrer deste processo, “os valores do mundo foram racionalizados e sublimados em termos de suas próprias leis” (WEBER, 1982, p. 379). Neste sentido, entendemos que o processo de racionalização que dá autonomia relativa às esferas de valor é resultado de um processo de perda de influência da religião, ou seja, do processo de secularização.

Corroborando, em um primeiro momento, com Max Weber, Peter Berger faz alusão ao processo de secularização como “o processo pelo qual setores da sociedade e da cultura são subtraídos à dominação das instituições e símbolos religiosos” (BERGER, 1985, p. 119). A despeito de recente texto do mesmo autor que revê suas contribuições referentes ao paradigma da secularização, este diz estar ocorrendo um

(17)

processo de dessecularização (BERGER, 2000), Cecília Loreto Mariz afirma, em comentário ao texto de Berger:

Apesar de afirmar que a teoria da secularização está errada, Berger não nega que a modernidade secularize em alguma medida, e que um processo de secularização e seus efeitos tenham sido frequentemente observados. O que Berger nega, não é o processo de secularização em si, mas a crença de que a modernidade vá necessariamente gerar o declínio da religião como um todo nos diferentes níveis, tanto social quanto individual (MARIZ, 2000, p. 27).

Utilizando-se desta perspectiva ressaltada por Cecília Mariz, é necessário salientar que não existe qualquer incompatibilidade entre a efervescência religiosa identificada por Berger com o termo dessecularização, e o processo de secularização em si, que denota a perda do monopólio religioso enquanto produtor de sentido e a emancipação relativa de outras esferas que, claramente, não mais estão sob a sua influência. É nesta perspectiva que, aqui, retomamos aqui uma discussão essencial daquilo que pode fornecer subsídios para a discussão de secularização e laicidade, que interessa especificamente aos propósitos do presente trabalho.

Este aspecto do processo de secularização pode ser encontrado em vários momentos do conjunto da obra de Max Weber. Uma de suas aparições mais relevantes pode ser encontrada no segundo volume de Economia e Sociedade (1999), especificamente nos capítulos dedicado à sociologia do direito. Neste ponto da obra, Max Weber realiza uma discussão acerca da racionalização/desencantamento da ordem jurídico-política enfatizando a passagem da heteronomia para a autonomia do direito em relação à religião enquanto consequência do processo de secularização. Exemplificando esse processo, Weber percorre o trajeto histórico de racionalização do direito, processo este que é central para que ocorram as transformações que fazem com que o direito passe de sua configuração canônica, submetido aos ordenamentos religiosos, ao direito formal e acadêmico, racionalizado e exercido por juristas profissionais, uma ciência jurídica não mais legitimada e determinada, em última instância, pelo sagrado ou por seus representantes legítimos (autoridades religiosas). Embora este processo não ocorra de forma linear e, assim como todos os aspectos do processo de secularização, se desenvolva de diferentes formas, Weber sintetiza o processo enquanto “etapas de desenvolvimento”. Escreve o autor:

O desenvolvimento do direito e do procedimento jurídico, dividido em "etapas de desenvolvimento" teóricas, conduz à revelação carismática do direito por "profetas jurídicos" – por meio da criação e aplicação empírica do direito por honoratiores jurídicos (criação de direito cautelar e de direito baseado em precedentes) –, à imposição do direito pelo imperium profano e

(18)

por poderes teocráticos e, por fim, ao direito sistematicamente estatuído e à "justiça" aplicada profissionalmente, na base de uma formação literária e formal lógica, por juristas doutos (juristas especializados) (WEBER, 1999, p. 143).

Ainda que em um primeiro momento não fique evidente quais as consequências deste processo, suas vantagens são salientadas por Antônio Flávio Pierucci (1998), na medida em que este, em acordo com Max Weber, considera este processo que seculariza o direito como um “happy end”. Desta forma, o autor afirma que:

[...] as leis, não sendo mais consideradas sagradas nem dadas, podem a partir de agora ser legitimamente modificadas, reformuladas e até trocadas. Elas são, com tudo o que isto implica de maturidade e emancipação genericamente humanas, revisáveis (PIERUCCI, 1998, p. 17, grifos do autor).

Tecendo considerações neste mesmo sentido, Carlos Eduardo Sell (2012) explicita que, no conjunto da obra da sociologia weberiana, o processo chamado de racionalização, também entendido a partir do conceito weberiano de desencantamento

do mundo (este caracterizado pela rejeição da magia através da religião racionalizada e

da ciência moderna), é um dos mais importantes elementos que contribuem para o processo de secularização. Nestes termos, uma das esferas afetadas por tal processo é a esfera política, na qual a legitimidade da autoridade não é mais religiosa, mas ratificada pela própria esfera política. Como salienta o autor:

[...] as formas de organização social e política não retiram mais sua validade de uma visão de mundo religiosa. A legitimidade do poder político reside na própria capacidade humana de organizar-se a partir de critérios racionais. Secularização não quer dizer o fim da existência das religiões e também não necessariamente que ela perde influência na vida das pessoas. Mas, em uma sociedade secularizada, a religião não é o fundamento da ordem social e, principalmente, da legitimidade da ordem política (SELL, 2012, p. 128).

A partir destas considerações, reforçamos que a perspectiva de secularização que adotamos nada tem a ver com a ideia de declínio da religião culminando em seu suposto desaparecimento, que por muito tempo tornou-se paradigmática no estudo das religiões. Neste sentido, não ousamos discordar da asserção de Peter Berger quando sustenta que “o mundo de hoje [...] é tão ferozmente religioso quanto antes” (BERGER, 2000, p. 10). Entretanto, também não ousamos discordar que, no que concerne à esfera das instituições da sociedade e da cultura, entre estas a esfera da ordem jurídico-política, existe um evidente processo de secularização. Esta é a proposição de Antônio Flávio Pierucci, que salienta:

Bato-me há algum tempo [...] pelo seguinte desideratum: oxalá os cientistas sociais e historiadores passássemos pouco a pouco a incorporar, majoritária e

(19)

rotineiramente, a ideia de secularização do Estado como um componente crucial, se não o mais crucial de todos, da conceituação histórico-social de uma secularização da qual não pode abrir mão toda modernidade que se preze. Toda vez que falo propositivamente em secularização, refiro-me com ênfase à secularização do Estado com seu ordenamento jurídico, e menos à secularização da vida, que esta pode mesmo refluir, mas a do Estado, não. A do Estado, se for para mudar nalgum aspecto, deve ser somente para afiar cada vez mais nitidamente seu gume. Isso para mim é cláusula pétrea (PIERUCCI, 2008, p. 12).

Entretanto, ainda que concordemos com a efetiva existência de um processo de secularização, deve-se ter a consciência de que o debate weberiano está, evidentemente, localizado no contexto da modernidade capitalista europeia no qual o processo de racionalização, enquanto elemento característico da modernidade Ocidental ocorre de forma diferenciada dos países que compõem o Sul global. Uma discussão que vai em direção a esta evidenciação está presente na discussão acerca da existência de

modernidades múltiplas, proposta por Schmuel Eisenstadt (2001). Segundo este autor:

A ideia de múltiplas modernidades pressupõe que a melhor forma de compreender o mundo contemporâneo – e também para explicar a própria história da modernidade – é vê-lo como uma história contínua de constituição e reconstituição de uma multiplicidade de programas culturais. Estas incessantes reconstruções dos múltiplos padrões institucionais e ideológicos são levadas a cabo por atores sociais específicos em estreita relação com activistas sociais, políticos e intelectuais, e também por movimentos sociais que perseguem diferentes programas de modernidade, defendendo visões muito diferentes acerca do que torna uma sociedade moderna (EISENSTADT, 2001, p. 140).

Seguindo esta mesma lógica, de forma a evidenciar e ao mesmo tempo refletir sobre o processo de secularização desvencilhando-se do paradigma eurocêntrico e sua pretensão de universalidade, José Casanova trabalha com a perspectiva de

secularizações, no plural, ressaltando que “existem secularizações múltiplas e diversas

no Ocidente, assim como modernidades ocidentais múltiplas e variadas” (CASANOVA, 2007, p. 5, tradução livre)3. Além disso, segundo o autor, há que se problematizar a ideia de secularização e modernidade como referências de ideal civilizacional, visto que em determinados contextos, por conta de suas dinâmicas próprias nas relações entre religião, sociedade, política e demais esferas, o próprio termo “secularização” não faria sentido, menos ainda o faria falar em um processo de secularização tal qual entendemos e delimitamos acima (CASANOVA, 2007).

As perspectivas teóricas de múltiplas modernidades e de múltiplas

secularizações tornam-se fundamentais quando o debate se desloca para as regiões

3 “Hy secularizaciones múltiples y variadas en Occidente, así como modernidades occidentales múltiples y variadas” (CASANOVA, 2007, p. 5).

(20)

periféricas do globo, como é o caso da América Latina. Se for possível – e evidentemente o é – localizar efeitos dos processos de secularização nos países latino-americanos, também é evidente o fato de que, em termos de consciências individuais, a religião continua sendo elemento fundamental da vida social. Este aparente paradoxo é salientado por Jean-Pierre Bastian (1997) quando discorre acerca das mutações religiosas na América Latina. A despeito das tentativas de movimentos de elites republicanas de cunho liberal em forçar um processo de secularização através dos Estados latino-americanos, e de o terem efetivado em alguns aspectos institucionais, a Igreja Católica não muda sua postura de enfrentamento e insiste ainda em seu projeto de hegemonia, na tentativa de re-catolicizar a sociedade latino-americana. Segundo Bastian, os confrontos entre ideais seculares e o pensamento hegemônico religioso geraram, conforme seus termos uma modernidade paradoxal, na qual “[...] o Estado tentava desesperadamente secularizar a sociedade civil por meio da educação, às vezes socialista, enquanto a sociedade civil resistia, condicionada, em suas práticas e mentalidades, por um catolicismo anti-liberal e anti-moderno” (BASTIAN, 1997, p. 38, tradução livre)4.

As implicações desta continuidade da hegemonia da Igreja Católica enquanto composição de certo ethos componente da vida nas sociedades latino-americanas será um dos elementos fundamentais acerca da discussão sobre a construção dos arranjos políticos da laicidade brasileira, que serão discutidos posteriormente. Neste ponto do debate, gostaríamos de realizar uma discussão mais conceitual acerca do que entendemos por laicidade, e suas relações com o que até agora foi discutido a respeito do conceito de secularização.

Sem nos esquecermos de tudo o que foi dito sobre a multiplicidade de processos de secularização, retornamos aqui à discussão com a qual abrimos o presente debate, a respeito da perda de ingerência do religioso frente às esferas da vida social, e fundamentalmente da esfera jurídico-política, como componente que consideramos fundamental naquilo que abre as possibilidades de pensar politicamente a laicidade. Nessa perspectiva, Ricardo Mariano (2011) pontua que, na medida em que entendemos o processo de secularização a partir do que o autor denomina noção fulcral do conceito, aquela encontrada na obra weberiana e que diz respeito à autonomização da esfera

4 [...] el Estado intentaba desesperadamente secularizar a la sociedad civil por la educación, socialista a veces, mientras la sociedad civil se resistía, condicionada en sus prácticas y mentalidades por un catolicismo antiliberal y antimoderno (BASTIÁN, 1997, p. 38).

(21)

jurídico-política em relação à religião, podemos falar especificamente “[d]o problema (de natureza política) e [d]a conceituação da legitimidade da autoridade e da ordem política no Estado moderno e, em especial, na democracia” (MARIANO, 2011, p. 245). É também no que concerne à questão da legitimidade política que Roberto Blancarte (2006) define um conceito de laicidade que possa ter validade universal, mas sem desconsiderar especificidades locais. O autor pensa a laicidade como “um regime social de convivência, cujas instituições políticas estão legitimadas principalmente pela soberania popular e não mais por elementos religiosos” (BLANCARTE, 2006, p. 34, tradução livre)5.

A partir destas linhas, percebemos como os processos de secularização e laicização, embora guardadas as devidas diferenças, estariam intimamente imbricados. Aqui, vale a distinção realizada por Jean Baubérot e Micheline Milot (2011), pois, se, como já salientamos, a secularização diz respeito aos processos sociais e culturais de perda de ingerência da religião, a laicidade, por sua vez, refere-se ao ordenamento jurídico-político que, enquanto esfera secularizada, estabelece relações de negociação com o religioso (BAUBÉROT; MILOT, 2011). Nesta perspectiva, pensar em laicidade é muito mais abrangente do que definir o conceito como a mera separação entre Estado e as religiões hegemônicas de contextos específicos. De forma a explicitar melhor a amplitude daquilo que a laicidade engloba, os autores estabelecem quatro aspectos que consideram como princípios fundamentais da laicidade. Em suas palavras:

Para fazer com que o conceito de laicidade seja mais operativo para analisar os diversos regimes de gestão da diversidade religiosa, parece ser necessário tomar quatro princípios inter-relacionados entre si. Os dois primeiros referem-se à tolerância, e têm sido gradualmente convertidos em lei, ou seja, a liberdade de consciência e de religião, e sua extensão necessária na garantia de igualdade; em seguida, ambos princípios de desenvolvimento de políticas que promovam sua implementação, a separação [entre Estado e confissões religiosas] e a neutralidade [do Estado em matéria religiosa] (BAUBÉROT; MILOT, 2011, p. 80, tradução livre)6.

Entretanto, para evitar possíveis confusões, Roberto Blancarte (2006) ressalta a necessidade de distinguir a laicidade enquanto conceito e a laicidade enquanto fenômeno. Quando nos referimos à laicidade, enquanto conceito é possível localizar seu

5 “[...] un régimen social de convivencia, cuyas instituiciones políticas están legitimadas principalmente por la soberania popular y ya no por elementos religiosos” (BLANCARTE, 2006, p. 34).

6 Afin de rendre la notion de laïcité la plus opératoire possible pour analyser les régimes d’aménagement de la diversité religieuse, il nous paraît nécessaire de tenir compte de ces quatre principes interdépendants qui s’articulent entre eux. Les deux principes relatifs à la tolérance qui ont graduellement été trauits dans le droit, la liberté de conscience et de religion et son prolongement nécessaire dans l’égalité, puis les deux principes d’aménagement politique qui favorisent leus concrétisation, la séparation et la neutralité (BAUBÉROT ; MILOT, 2011, p. 80).

(22)

nascimento na França e nos debates sobre a autonomia da educação pública em relação à religião no século XIX. Como fenômeno, seus elementos fundamentais já eram possíveis de ser observados antes da formulação do conceito e em outros países que não a França. Nas palavras do autor,

[...] há a necessidade de distinguir, porque a noção de laicidade foi formulada em 1870, mas a laicidade existia antes. Existem elementos da laicidade em muitas sociedades antes de 1870. Se entendemos isso, entendemos também que estes elementos podem ser distintos em cada país, podem ter se alimentado de maneira distinta e alimentado a própria experiência francesa [no qual surgiu enquanto conceito], e isso não tem relação com a maneira que vem se desenvolvendo a noção de laicidade (BLANCARTE, 2006, p. 33, tradução livre)7.

Pontuar este elemento no presente debate é importante para nos desvencilharmos da ideia (ainda demasiadamente corrente) de que a França seria o “berço” da laicidade e de que, portanto, é o “modelo” que serviu de inspiração para todos os países que aderiram a um regime político que preza pelos princípios laicos. A este respeito, Jean Baubérot (2013) escreve sobre a influência da laicidade mexicana (que já em 1859 concretiza a separação entre Estado e Igreja Católica) para a formulação da laicidade francesa (esta firmada em 1905), o que evidencia processos de laicização não só anteriores, mas também inspiradores.

Ao pensar a laicidade nas perspectivas já mencionadas, procuramos, portanto, entendê-la como formas de arranjos políticos que nos permitem perceber como se configuram as relações entre Estado e religião nos mais diversos países (GIUMBELLI, 2013). Na medida em que sabemos que esses arranjos políticos se estabelecem de diferentes formas, assim como nos utilizamos das expressões modernidades e

secularizações, a utilização de laicidades, no plural (COSTA, 2006; MILOT, 2009;

BAUBÉROT, MILOT, 2011), contempla de melhor forma a discussão que se propõe. Por conta dessa variedade de arranjos políticos da laicidade, Ahmet Kuru propõe quatro “tipos ideais” (tal como propõe a sociologia weberiana) com o intuito de contribuir com recursos metodológicos para o estudo das laicidades: o estado religioso, o estado com

7 “[...] hay que distinguir entre el fenómeno y el concepto, porque sucede que la noción de laicidad puede haberse contruido a partir de 1870, pero hay laicilaicidadee antes. Hay elementos de laicidad en muchas sociedades previas a 1870. Y si vamos entendiendo esto, vamos entendiendo que esos elementos pueden ser distintos en cada país, pueden haberse alimentato de manera distinta y alimentado a la propia experiencia francesa, y eso no tiene nada que ver con la manera en que la noción de laicidad específicamente se ha venido desarrollando” (BLANCARTE, 2006, p. 33).

(23)

uma religião oficial, o estado secular e o estado antirreligioso8. Dentro dos arranjos dos estados seculares, o autor ainda identifica aqueles regimes políticos marcados por um secularismo passivo e por um secularismo “agressivo” (KURU, 2009). Entretanto, novamente, trata-se apenas de tipos ideais que podem auxiliar metodologicamente a pesquisa. Nas palavras de Kuru,

[...] os dois tipos de secularismo sugerem tipos ideais, enquanto na realidade as políticas estatais existem perpassando por entre eles. Há Estados que não se encaixam nem no secularismo completamente agressivo (excluindo totalmente a religião da esfera pública), mas também não são passivamente seculares (permitindo algum tipo de visibilidade pública da[s] religião[ões]) (KURU, 2009, p. 31-32, tradução livre)9.

A metodologia do estabelecimento de tipos ideais de laicidade também é utilizada por Baubérot e Milot (2011). Ampliando, de certa forma, aquilo que propôs Ahmet Kuru (2009), estes autores trabalham com seis tipos ideais de laicidade: a laicidade separatista, a laicidade autoritária, a laicidade anticlerical, a laicidade de fé cívica, a laicidade de reconhecimento e, por fim, a laicidade de colaboração (BAUBÉROT; MILOT, 2011). Na concepção dos autores, “a tipologia de laicidade parece, portanto, útil para identificar essas [diferentes] concepções de laicidade que nos fazem lembrar [...] que não existe algo como uma ‘essência’ da laicidade” (BAUBÉROT; MILOT, 2011, p. 90) 10. Desta forma, os tipos ideais nos servem para evitar possíveis julgamentos valorativos em relação às diferentes formas com que a laicidade se manifesta em contextos específicos. Além disso, possibilita análises comparativas e auxilia na percepção das próprias transformações dos arranjos políticos da laicidade que se estabelecem, dentro de um mesmo contexto, ao longo das conjunturas sociais. Isso é evidenciado pelos autores, quando salientam:

Na realidade empírica, de acordo com as áreas, as épocas, as circunstâncias geopolíticas, os períodos de alguns e os medos de outros, a representação dominante dos grandes princípios democráticos, também projetos políticos em competição – em suma, uma vasta gama de parâmetros – um Estado ou segmentos da sociedade podem estar relacionados, predominantemente, a um

8 O termo “secular” refere-se aqui à noção de secularismo, que é equivalente à noção de laicidade e diferencia-se, portanto, de secularização. Para melhor compreender essa discussão terminológica, ver: GIUMBELLI (2013).

9 The two types of secularism imply ideal types, while the real state policies exist through the continuum between them. States are neither completely assertive secularists (excluding religion entirely from the public space) nor purely passive secularists (allowing any sort of public visibility of religion” (KURU, 2009, p. 31-32).

10 […] Une typologie de la laïcité nous paraît donc utile pour repérer ces conceptions de la laïcité qui nous rappellent, si besoin est, qu’il n’esxiste pas quelque chose comme une << essence >> de la laiïcité (BAUBÉROT ; MILOT, 2011, p. 90).

(24)

determinado tipo de laicidade e/ou promover uma mistura de vários tipos (BAUBÉROT; MILOT, 2011, p. 117)11.

Apesar das evidentes limitações no estabelecimento de modelos típico-ideais de laicidade, concordamos com o fato de que tal tipologia possa ser utilizada como recurso metodológico com o intuito de facilitar análises panorâmicas e comparativas, além de mostrar a dinamicidade inerente aos processos de construção da laicidade. Ainda assim, reiteramos que não se deve utilizá-los com o intuito de estabelecer julgamentos valorativos que buscam classificar “melhores” ou “piores” arranjos políticos de laicidade. Aqui está a importância de enfatizar o propósito unicamente analítico dos tipos ideais para melhor percepção das laicidades, considerando-as como processos que se inventam e reinventam de diferentes formas a depender das conjunturas histórica, política, social e cultural.

Desta forma, em ambos os modelos sugeridos por Kuru (2009) e por Baubérot e Milot (2011), é possível pensar como se dão as negociações, no campo político, entre religião e Estado. Pensar tais negociações e como se dá o problema da legitimação, da neutralidade e da igualdade entre os cidadãos nos permite ir além da noção de laicidade como mera separação entre Estado e Igreja. Com isso, também, nos desfazemos da ideia diretamente atrelada à separação e fruto da racionalidade e da ciência modernas (tipicamente eurocêntricas), de que o único “lugar” legítimo da religião seria o espaço da vida privada. Corroborando com Boaventura de Sousa Santos (2014), adotamos aqui uma perspectiva que dá devida importância às teologias políticas enquanto movimentos contra hegemônicos, possuidores de grande potencial para o desenvolvimento de uma práxis libertadora (SANTOS, 2014). Ainda que, de fato, a separação institucional entre Estado e Igreja seja um importante elemento dos arranjos políticos da laicidade, consideramos, corroborando com Giumbelli (2015), que não impede articulações e cooperação entre Estado e religiões. Segundo o autor:

É muito significativo que essas situações [de cooperação entre Estado e religiões] não dependam de um rompimento do arranjo separatista. Ou seja, cooperação e separação, antes de se oporem, estão a conviver [...] é fundamental que rompamos com a concepção segundo a qual a separação entre Estado e religiões não produz ou não depende de relações entre esses termos [...] toda separação é uma relação. (GIUMBELLI, 2015, p. 68).

11 Dans la réalité empirique, suivant les domaines, les époques, les conjonctures géopolitiques, les requêtes des uns, les craintes ressenties par les autres, la représentation dominante des grands principes démocratiques, également les projets politiques en compétition – bref, selon tout un ensamble de paramèters –, un État ou des segments de la société pourrount se rattacher de façon dominante à tel ou tel type de laïcité et/ou mixer plusieurs types (BAUBÉROT ; MILOT, 2011, p. 117).

(25)

A partir das discussões feitas até o presente momento, procuramos entender a laicidade como essa construção e transformação dos arranjos políticos que permitem negociações entre Estado e religiões mesmo em regimes separatistas. Entretanto, há outros elementos que consideramos fundamentais e que são importantes de se pontuar, na medida em que consideramos que a laicidade possui íntima relação com o conceito de cidadania. Isso também fica evidente na própria Declaração Universal da Laicidade no Século XXI12, elaborada por Jean Baubérot, Micheline Milot e Roberto Blancarte que, dentre outras coisas, versa sobre a laicidade como princípio fundamental do Estado Democrático de Direito.

Embora longo, vale destacar de forma integral os artigos 4, 5, 6 e 7 da Declaração acima referenciada:

Artigo 4. Definimos laicidade como a harmonização, em diversas conjunturas sócio-históricas e geopolíticas, dos três princípios já indicados: respeito à liberdade de consciência e sua prática individual e coletiva; autonomia política da sociedade civil com relação às normas religiosas e filosóficas particulares; nenhuma discriminação direta ou indireta contra os seres humanos.

Artigo 5. Um processo laicizador emerge quando o Estado não está mais legitimado por uma religião ou por uma corrente de pensamento específica, e quando o conjunto de cidadãos puder deliberar pacificamente, com igualdade de direitos e dignidade, para exercer sua soberania no exercício do poder político. Respeitando os princípios indicados, este processo se dá através de uma relação íntima com a formação de todo o Estado moderno, que pretende garantir os direitos fundamentais de cada cidadão. Então, os elementos da laicidade aparecem necessariamente em toda a sociedade que deseja harmonizar relações sociais marcadas por interesses e concepções morais ou religiosas plurais.

Artigo 6. A laicidade, assim concebida, constitui um elemento chave da vida democrática.

Impregna, inevitavelmente, o político e o jurídico, acompanhando assim os avanços da democracia, o reconhecimento dos direitos fundamentais e a aceitação social e política do pluralismo.

Artigo 7. A laicidade não é patrimônio exclusivo de uma cultura, de uma nação ou de um continente. Poderá existir em conjunturas onde este termo não tem sido utilizado tradicionalmente. Os processos de laicização ocorreram ou podem ocorrer em diversas culturas e civilizações sem serem obrigatoriamente denominados como tal (DECLARAÇÃO, 2009, s/n).

Quando partimos dos elementos pontuados acima, pode-se dizer que entendemos, como pilares fundamentais da laicidade, a garantia da liberdade de consciência dos indivíduos (do qual fazem parte a liberdade de crença ou de não crença)

12 A referida Declaração foi apresentada no Senado francês no ano de 2005 em ocasião da comemoração de 100 anos da separação entre Igreja Católica e Estado na França. A versão aqui apresentada se encontra em livro organizado por Roberto Arriada Lorea (2009), intitulado Em defesa das liberdades laicas.

(26)

e, na medida em que a ordem jurídico-política não é mais determinada e legitimada por uma moral religiosa específica, a laicidade configura-se como o arranjo político que possui como característica central a neutralidade do Estado em matéria religiosa, a fim de que este seja o responsável por garantir o respeito à liberdade de consciência, à liberdade de culto para toda e qualquer denominação religiosa e a igualdade entre os cidadãos de direito independentemente de crença ou não. Esta neutralidade, entretanto não deve ser confundida meramente como isenção/omissão estatal. A este respeito, Micheline Milot (2009) salienta que:

O Estado não é representante de uma parcela da sociedade civil nem de maiorias políticas ou circunstanciais, mas sim do conjunto da sociedade. [...] Em nosso ver, o Estado que não intervém para reequilibrar a força política de uma maioria que pode limitar os direitos de minorias, perde de certo modo sua neutralidade, já que não preza por assegurar equitativamente os interesses de todos os cidadãos e por corrigir as desigualdades concretas (MILOT, 2009, p. 19-20, tradução livre)13.

Nesta compreensão, a neutralidade do Estado em matéria religiosa e enquanto força política garantidora da equidade de direitos e do necessário equilíbrio entre maiorias e minorias sociais, configura-se como elemento necessário para a consolidação de ideais de justiça social e, desta forma, encontra-se em íntima consonância com os princípios democráticos do Estado de Direito. Falar em neutralidade e em promoção de igualdade, afinal, extrapola os limites que concernem aos direitos garantidos no exercício da vivência religiosa dos cidadãos. Falar em laicidade é falar de algo que está além dessas fronteiras e que permeia a totalidade da vida social. Segundo Florence Rochefort (2007), um olhar atendo às negociações que envolvem grupos religiosos e Estado e sociedade revela, por exemplo, a centralidade das questões de gênero desde os primeiros anos da laicidade francesa. Segundo Rochefort,

Os entrelaços entre religião e política são determinantes na construção e organização social e cultural do gênero. Religiões, Estados, nações, grupos sociais estão a desenvolver ou a reforçar ideologias de gênero, por vezes junto, por vezes rivais, mas sempre estreitamente ligadas a escolhas políticas, morais, formas de autoridade, hierarquias, heranças culturais e linhas de divisão sexuada entre a esfera privada e pública (ROCHEFORT, 2007, p. 13)14.

13 El Estado no es el representante de una de las partes de la sociedad civil ni de las mayorías políticas o circunstanciales, sino más bien del conjunto de la sociedad. […] A nuestro parecer, el Estado que no interviene para reequilibrar la fuerza política de una mayoría que puede limitar los derechos de las minorías, pierde en cierto modo su neutralidad, ya que no vela por asegurar equitativamente el interés de todos los ciudadanos y por corregir las desigualdades concretas (MILOT, 2009, p. 19-20).

14 Les imbrications entre le politique et le religieux sont déterminantes dans la construction et l’organisation sociale et culturelle du genre. Religions, États, nations, groupes sociaux développent ou confortent des idéologies de genre, parfois conjointes, parfois concurrentes, toujours étroitement liées à

(27)

Falar em laicidade é falar, também, em questões de gênero. Mais que isso, é pensar em como interesses na manutenção das assimetrias de gênero se colocam em meio às disputas religiosas por espaços na política, tensionando e (re)produzindo formas de desrespeito à laicidade e à democracia, visto que a igualdade de gênero, os direitos das mulheres e os direitos sexuais constituem o eixo central do novo paradigma político-religioso. A respeito destas posturas de desrespeito, Roberto Blancarte salienta:

[...] a democracia moderna e a laicidade tem elementos comuns de identidade: não pode haver uma laicidade real sem uma democracia constitucional e uma democracia constitucional, para ser de tal maneira completa, requer ser laica. Isso significa que a laicidade não é tampouco uma imposição da vontade absoluta da maioria a toda uma população, mas supõe o respeito dos direitos humanos de todos e em particular o respeito dos direitos das minorias, sejam estas religiosas, étnicas, de gênero, de orientação sexual ou de qualquer tipo. É por isso que a laicidade defende o respeito à liberdade de consciência e a igualdade de todos sem discriminação (BLANCARTE, 2013, p. 300-301)15.

Ora, não precisamos ir muito longe para perceber que, ainda nos dias atuais, os princípios da laicidade têm sido alvo de desrespeito no que concerne às questões que envolvem temas morais controversos, notadamente as questões de gênero e sexualidade. Articulações entre religião e política têm sido feitas no sentido de obstaculizar a ampliação dos direitos das mulheres e da população LGBT em diversas partes do mundo. Constatações destas relações já foram identificadas como um “casamento fatal” (RAVAZI; JENICHEN; HEINEN, 2006). E é disso que se trata quando dizemos que os princípios da laicidade necessitam ser respeitados, pois estão em íntima relação com os direitos de cidadania. Esta será a discussão que nos propomos na sequência deste capítulo. Direitos de cidadania, afinal do que se trata? Quais suas relações com os arranjos políticos da laicidade? Após estas explanações, nos voltaremos à laicidade brasileira, indagando como tais arranjos têm sido tecidos ao longo da história e se tem sido feitos em consonância com aquilo que aqui pensamos ser fundamental para a laicidade.

des choix politiques, moraux, des formes d’autorité, de hiérarchies, des héritages culturels et des lignes de partage sexuées entre les sphères privée et publique (ROCHEFORT, 2007, p. 13).

15 [...] la democracia moderna y la laicidad tengan elementos comunes de identidad: no puede haber una real laicidad sin una democracia constitucional y una democracia, para ser tal de manera cabal, requiere ser laica. Lo anterior significa que la laicidad no es tampoco la imposición absoluta de la voluntad de la mayoría la toda población, sino que supone el respecto de los derechos humanos de todos y en particular el respecto de los derechos de las minorías, sean éstas religiosas, étnicas, de género, por preferencia sexual o de cualquier otro tipo (BLANCARTE, 2013, p. 300-301).

(28)

1.2 A CONSTRUÇÃO DA LAICIDADE BRASILEIRA: DA LUTA PELA LIBERDADE RELIGIOSA À ASCENSÃO POLÍTICA DOS EVANGÉLICOS

Para analisar como estes processos de consolidação de direitos em relação com os princípios da laicidade aconteceram no Brasil, podemos primeiramente considerar as reivindicações pela liberdade de culto e de crença por parte de matrizes protestantes, espíritas kardecistas e segmentos afro-brasileiros. Embora estes cultos ocorressem de forma clandestina no período imperial (à exceção dos cultos protestantes que, por razões comerciais envolvendo a abertura dos portos, já ocorriam em âmbito doméstico), tais iniciativas no que concerne ao reconhecimento e à legitimidade pública de outros cultos que não os da Igreja Católica seriam inviáveis no período imperial, uma vez que a Igreja Católica era religião oficial do Império e catolicidade e brasilidade se colocavam como sinônimos (as próprias relações de dominação presentes no Império estavam religiosamente legitimadas). É sob esta égide que a Constituição do Império promulgada em 1824 estabelece, em seu artigo 5º, que: “A Religião Catholica Apostolica Romana continuará a ser a Religião do Imperio. Todas as outras Religiões serão permitidas com seu culto domestico, ou particular em casas para isso destinadas, sem fórma alguma exterior ao Templo” 16.

Os processos que envolvem a presença pública das religiões no Brasil desde o período imperial são demasiadamente complexos para explorá-los aqui de forma aprofundada. Entretanto, é necessário nos determos minimamente nestes processos de busca por legitimidade que, paulatinamente, promovem avanços concernentes à laicidade brasileira e, consequentemente, à cidadania religiosa, que foi o primeiro elemento a consolidar-se (ainda que com ressalvas que demonstram a continuidade dos privilégios católicos). Tais avanços, entretanto, não se deram de forma pacífica e imediatamente à separação entre Igreja e Estado brasileiro no início do período republicano. Apesar da relativa perda de influência da Igreja Católica com a secularização dos cemitérios, dos registros civis (nascimento, casamento, etc.) e do ensino público, todas estas ações promovidas no marco republicano, além da separação institucional já mencionada, os clérigos católicos seguem na luta (em parte vitoriosa!) pela manutenção de privilégios institucionais em meio a um processo de muitas idas e vindas. Em linhas gerais, pode-se dizer que o processo de construção da laicidade

16 Constituição Política do Imperio do Brazil (de 25 de março de 1824). Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao24.htm>. Acesso em: 28/05/2016.

(29)

brasileira manteve íntima relação com o catolicismo, o que nos leva a perceber os paradoxos entre os princípios da laicidade no plano formal e a forma como este processo tem se constituído no Brasil por mais de um século, no início relacionado à liberdade religiosa e, mais recentemente, aos direitos de minorias.

No plano estritamente formal, o princípio da separação entre o Estado brasileiro e a Igreja Católica foi estabelecido através do decreto 119-A de 1890, já rodeado da influência dos preceitos republicanos. O caput do referido decreto: “Prohibe a intervenção da autoridade federal e dos Estados federados em materia religiosa, consagra a plena liberdade de cultos, extingue o padroado e estabelece outras providencias” 17. Apesar das reações contrárias por parte da Igreja Católica no que concerne à separação institucional, a Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 1891 mantém o separatismo e consolida-se como novo marco na garantia e proteção dos direitos de liberdade religiosa, ao proclamar, em seu artigo 72, § 3, que “Todos os indivíduos e confissões religiosas podem exercer publica e livremente o seu culto, associando-se para esse fim e adquirindo bens, observadas as disposições do direito comum” 18. De acordo com Joana Zylbersztajn (2012):

A constituição federal de 1891 delineou as linhas de separação entre Estado e Igreja que norteou toda a evolução constitucional desde então, bem como os aspectos da liberdade religiosa. Isoladamente na evolução constitucional republicana, previu a exclusão religiosa absoluta em questões públicas antes protagonizadas pela Igreja Católica e reconheceu as demais confissões existentes. Foi a única constituição republicana democrática que não mencionou deus em seu preâmbulo (ZYLBERSZTAJN, 2012, p. 20, grifos nossos).

Certamente, a Constituição de 1891 inspira-se nos princípios da laicidade na medida em que prevê a separação institucional e garantia da liberdade de confissões religiosas. Entretanto, quando percebemos o que de fato ocorre na vida prática, percebemos haver a necessidade de se fazer algumas relativizações no que concerne à efetivação de tais princípios. A aceitação da separação institucional por parte de clérigos católicos não se deu de forma pacífica e as disputas que aí se sucederam culminaram no princípio de “colaboração recíproca em prol do interesse coletivo” 19 que foi estabelecido na Constituição de 1934, assim como o retorno do ensino religioso e o

17 Decreto 119-A, de 7 de janeiro de 1980. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1851-1899/d119-a.htm>. Acesso em: 28/05/2016.

18 Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil (de 24 de fevereiro de 1891). Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao91.htm>. Acesso em 28/05/2016. 19 Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil (de 16 de julho de 1934). Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao34.htm>. Acesso em: 28/05/2016.

Referências

Documentos relacionados

A prova do ENADE/2011, aplicada aos estudantes da Área de Tecnologia em Redes de Computadores, com duração total de 4 horas, apresentou questões discursivas e de múltipla

17 CORTE IDH. Caso Castañeda Gutman vs.. restrição ao lançamento de uma candidatura a cargo político pode demandar o enfrentamento de temas de ordem histórica, social e política

Não houve diferença significativa para as variáveis comprimento de raízes comerciais e diâmetro de raízes comerciais; os clones 06 e 14 e a cultivar sergipana apresentaram

introduzido por seus orifícios e daí se descarrega no difusor secundário e depois no difusor principal, e a seguir para o coletor de admissão e cilindros... 8-C

Por vezes, o localizador necessita de alterar não só o texto como também possíveis imagens ou a forma como estas são apresentadas, sendo o exemplo mais óbvio o caso de

Equipamentos de emergência imediatamente acessíveis, com instruções de utilização. Assegurar-se que os lava- olhos e os chuveiros de segurança estejam próximos ao local de

Tal será possível através do fornecimento de evidências de que a relação entre educação inclusiva e inclusão social é pertinente para a qualidade dos recursos de

9º, §1º da Lei nº 12.513/2011, as atividades dos servidores ativos nos cursos não poderão prejudicar a carga horária regular de atuação e o atendimento do plano de metas do