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A PERPETUAÇÃO DOS PAPÉIS TRADICIONAIS DE GÊNERO NA DEFESA DA FAMÍLIA “NATURAL”

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IMPLICAÇÕES POLÍTICO-JURÍDICO-RELIGIOSAS NA PERPETUAÇÃO DA VERDADE SOBRE A FAMÍLIA

3.2 A PERPETUAÇÃO DOS PAPÉIS TRADICIONAIS DE GÊNERO NA DEFESA DA FAMÍLIA “NATURAL”

Até aqui, nos ocupamos de demonstrar como se tecem os discursos de verdade sobre a família tradicional no cenário político brasileiro. Tal discurso tem sido produzido, verbalizado e impresso em proposições legislativas, especialmente, pelos parlamentares evangélicos que compõem a FPE. Vimos que tais discursos apelam pela defesa da família heterossexual, formada por um homem e uma mulher. O elemento da

procriação como aquilo que representaria a função primordial da família enquanto

instituição fundamental da sociedade também aparece nos discursos destes parlamentares. Além da defesa daquilo que consideram ser o modelo legítimo de família, pudemos observar que, concomitante a esta defesa, está a estratégia política de deslegitimação das novas formas de família que, paulatinamente, têm galgado seu próprio lugar no espaço público na luta pela garantia de seus direitos, reivindicando-os junto ao Estado brasileiro.

Levando estes componentes em consideração, a hipótese que gostaríamos de debater neste último capítulo refere-se à relação entre a defesa da família tradicional e a tentativa de perpetuação de papéis de gênero e de expressões da sexualidade tradicionais e historicamente normalizados e sacralizados por instâncias de legitimação, sendo a religião a principal destas. Ora, se consideramos que a defesa de um discurso de

verdade está sempre permeada por relações de poder, podemos também considerar que

a manutenção dos papeis de gênero e das expressões da sexualidade entendidos como

tradicionais representa mesmo a manutenção do poder religioso no campo da moral

sexual. Questionar tais construções sociais a respeito do que é a família é o mesmo que questionar o próprio poder das instituições religiosas conservadoras, visto que, em uma sociedade secularizada, o campo da moral sexual representa um dos principais campos de regulação e nos quais a religião ainda possui formas de ingerência e disciplinamento sobre a vida dos indivíduos. Para isso, a mera discordância das novas formas de família

e das transgressões dos papéis de gênero e das diversas expressões da sexualidade humana não é mais suficiente, pois isso já denota a perda de influência das instituições religiosas sobre indivíduos que têm se libertado das amarras “sagradas” que estabelecem o correto e o desviante. Desta forma, a atuação dos parlamentares evangélicos demonstra novas formas de atuação e de tentativa de perpetuação da moral sexual tradicional. A utilização da política como instrumento para perpetuar a família

tradicional como única legítima e merecedora de proteções e direitos já anuncia, por si

só, que grupos religiosos conservadores não têm tido sucesso em perpetuar suas convicções exclusivamente pela via religiosa, mas tem recorrido a novos espaços de atuação para lutar, defender e impor suas próprias verdades. Sandra Duarte de Souza já havia identificado um processo de produção do inimigo, que é por vezes implícita, por vezes explícita, e que tal título recai sobre a população LGBT+ e as feministas (SOUZA, 2015). Assim, as pessoas homossexuais e transexuais, enquanto indivíduos transgressores que colocam em cheque a concepção heteronormativa de família, ao lado das feministas que também promovem a crítica da naturalização e essencialização dos papéis socialmente atribuídos às mulheres, são produzidos, neste contexto, como os

inimigos que querem destruir a família.

Essa discussão é menos recente do que se pensa. Em texto intitulado O nó e o

ninho, Michelle Perrot já havia notabilizado que: “Toda sociedade procura acondicionar

a forma da família a suas necessidades e fala-se em ‘decadência’ frequentemente para estigmatizar mudanças com as quais não concordamos” (PERROT, 1993, p. 75). Ora, o aparente temor evocado pelos parlamentares evangélicos é expressão concreta da produção do estigma sobre mulheres e pessoas LGBT+ como os responsáveis por diversos planos e esquemas conspiratórios para destruir a família. Entretanto, vale salientar que o que estes atores entendem como “destruição”, nada mais é do que o questionamento da ordem normal das coisas. Se a família tradicional está alicerçada na união entre um homem e uma mulher que podem gerar filhos, tal como propõe o PL no. 6583/2013 – Estatuto da Família, a existência de uniões que acontecem fora desse padrão e reivindicam para si o status de família colocam em cheque os aparentemente naturalizados determinismos biológicos que justificam os papéis sociais que devem ser cumpridos por homens e mulheres na sociedade. Michelle Perrot ressalta as características dessa família:

Essa família celebrada, santificada, fortalecida era também uma família patriarcal, dominada pela figura do pai. Da família, ele era a honra, dando-lhe

seu nome, o chefe e o gerente. Encarnava e representava o grupo familiar, cujos interesses sempre prevaleciam sobre as aspirações dos membros que a compunham. Mulher e filho lhe eram rigorosamente subordinados. A esposa estava destinada ao lar, aos muros de sua casa, à fidelidade absoluta (PERROT, 1993, p. 78).

Embora a autora se refira às famílias patriarcais características das sociedades europeias no século XIX, a discussão encontra perfeito eco na realidade da sociedade brasileira hoje. A família tradicional brasileira ainda é patriarcal. Os papéis de gênero e sexualidade ensinados desde a infância ainda seguem a lógica patriarcal e reproduzem assimetrias que inferiorizam as mulheres e que determinam os lugares em que estas devem permanecer: no espaço doméstico, servindo ao marido e aos filhos, perpetuando as estruturas que fundamentam a maternidade compulsória e a ideia de cuidado.

Entretanto, antes de adentrar especificamente neste tópico, creio que analisar a concepção de homossexualidade na estrutura das religiosidades pentecostal e neopentecostal torna-se pertinente para nossos propósitos, e permite demonstrar como as legitimações religiosas que perpetuam a inferioridade da mulher e que propagam a discriminação de pessoas homossexuais e transexuais estão entrelaçadas e expressas no conceito de família defendido arduamente pelos parlamentares evangélicos. Refiro-me aos pentecostais e neopentecostais, pois são estes os atores majoritários que fazem parte da Frente Parlamentar Evangélica, encabeçados pelas Assembleias de Deus (AD) e pela Igreja Universal do Reino de Deus (IURD). Ora, todas as falas aqui apresentadas, proferidas por estes parlamentares no capítulo anterior, versam sobre a ilegitimidade das relações que não seguem o padrão binário da lógica heteronormativa, ou seja, uma mulher biológica que assume o papel socialmente relegado à mulher, e um homem biológico que assume o papel a ele pré-determinado no escopo social. Além disso, em muitas das falas é possível observar menção aos textos bíblicos, sendo suas interpretações destes o principal fundamento da oposição aos novos modelos de família que reivindicam sua própria legitimidade. É por conta da frequência com que, nos discursos analisados através dos Diários da Câmara dos Deputados, os parlamentares evangélicos acionam interpretações patriarcais das escrituras bíblicas ou àquilo que, em suas leituras expressaria a “vontade de Deus”, que se torna importante compreender qual a base religiosa de seus argumentos, e como todos estes fatores que perpetuam sexismo e heterossexismo/homofobia. Neste ponto, as análises de Cheryl Anderson acerca de Gênesis e Juízes podem nos auxiliar no presente debate. A autora relata que:

Tradicionalmente, Gênesis 19 e Juízes 19 foram interpretados para condenar a homossexualidade. Na realidade, os termos “sodomia” e “Sodomita” para designar homens que fazem sexo com homens são baseados na narrativa de Gênesis 19, e condenam essa atividade por pensarem ser confirmada pela divina destruição de Sodoma e Gomorra (Gên. 19:12-29) (ANDERSON, 2016, p. 129, tradução livre)85.

O texto bíblico de Gênesis tem sido um dos principais textos que as tradições religiosas pentecostais e neopentecostais tomam por base na justificação da condenação de Deus às práticas homossexuais. A partir de tal concepção, os homossexuais estariam vivendo em pecado e assumindo relações afetivas ilegítimas e condenáveis, tal como foi condenada a suposta homossexualidade existente em Sodoma e Gomorra86.

Esta percepção, reforçada nos imaginários religiosos pentecostais e neopentecostais também foi identificada por Maria das Dores Campos Machado e Fernanda Piccolo. Utilizando-se de pesquisa realizada pelo World Values Survey, as autoras salientam haver uma “forte correlação entre o grau de engajamento religioso e uma visão tradicionalista da hierarquia de gêneros e da sexualidade humana” (MACHADO; PICCOLO, 2010, p. 15). Com isso não se quer afirmar que apenas religiosos teriam percepções conservadoras a este respeito. O que se quer dizer é que para determinados grupos religiosos a religião tem sido fundamental no reforço destas percepções. Notadamente no caso dos pentecostais e neopentecostais, segmentos religiosos majoritários na Frente Parlamentar Evangélica (FPE), Maria das Dores Campos Machado e Fernanda Piccolo ressaltam forte percepção da homossexualidade como “erro”, “desvio”, “queda” ou “pecado”, e que pessoas homossexuais estariam “desobedecendo” os desígnios divinos (MACHADO; PICCOLO, 2010). Isso se dá porque, segundo as autoras, as vertentes evangélicas puritanas, dentre elas o pentecostalismo e o neopentecostalismo, adotam uma perspectiva teológica no qual “o corpo pode ser a morada do Espírito Santo, desde que o crente rejeite todas as formas de prazer mundano, caso contrário será a morada do demônio” (MACHADO; PICCOLO, 2010, p. 63). E revelam que:

85 “Traditionally, Gen 19 and Judg 19 have been interpreted to condemn homosexuality. In fact, the terms “sodomy” and a “Sodomite” for male same-sex activity are based on Gen 19 narrative, and the

condemnation of such activity is thought to be supported by the divine destruction of Sodom and Gomorrah (Gen 19:12-29)” (ANDERSON, 2016, p. 129).

86 Vale salientar que não temos a intenção de generalizar os grupos pentecostal e neopentecostal como completamente contrários às homossexualidades e transexualidades. Mencionamos estes por serem os grupos mais presentes na FPE, mas é necessário considerar a diversidade inerente a estes próprios grupos, no qual têm sido possível encontrar posicionamentos que não corroboram com os defendidos pelos parlamentares evangélicos e mesmo a proliferação de igrejas inclusivas. A este respeito, ver Natividade e Oliveira (2013).

[...] expressão de uma importante faceta da subjetividade pentecostal e neopentecostal, essa concepção de corpo reforçaria o vínculo da sexualidade com a transgressão e favoreceria a associação da homossexualidade com possessão demoníaca (MACHADO; PICCOLO, 2010, p. 63).

Tais percepções acerca da homossexualidade são evidentes nos discursos e Projetos de Lei que tem como formuladores os atores evangélicos que compõem a Frente Parlamentar Evangélica (FPE). Apenas para exemplificar o que já foi pontuado no decorrer da presente pesquisa, basta rememorar que vários dos parlamentares ressaltaram, nos meandros de seu discurso, serem seguidores dos valores cristãos, e que se baseavam nesses para cumprir aquilo que lhes foi designado enquanto legisladores eleitos via processo democrático. Além disso, cabe dizer que quando estes argumentam que o Estado não deveria propagar a “ideologia de gênero”, ou “comportamentos contrários aos bons costumes”, ou ainda que não deveria “doutrinar” crianças a serem homossexuais através de materiais educacionais, supõem, implícita ou explicitamente, a “normalidade” da heterossexualidade, sacralizada pelo componente religioso que a legitima. Por atender aos desígnios divinos, a heterossexualidade não é entendida como uma expressão da sexualidade também ensinada e reproduzida, mas como aquilo que se espera dos “cidadãos de bem”. A este respeito, Cheryl Anderson, citando Hays, ressalta que:

[...] interpretações dessa perspectiva têm mantido que ‘casamento entre um homem e uma mulher é a forma normal da satisfação sexual do ser humano, e homossexualidade é uma entre muitos trágicos sinais de que somos pessoas corrompidas, alienadas da proposta do amor de Deus’. Claramente, tais interpretações afirmam a heterossexualidade e condenam a homossexualidade. Como resultado, elas privilegiam a heterossexualidade sobre a homossexualidade (heterossexismo) (HAYS apud ANDERSON, 2016, p. 129, tradução livre)87.

A partir desta lógica, a reafirmação da heterossexualidade como norma é entendida, pelos parlamentares evangélicos, como mera constatação de uma espécie de “tendência natural” do ser humano se quisermos utilizar termos seculares, ou da sexualidade legítima perante os olhos de Deus, considerando que a ilegitimidade das relações homoafetivas seria inquestionável, perpassando mesmo vários livros da Bíblia, entendida como a palavra de Deus e como o guia moral que dirige a sexualidade dos indivíduos que compõem a sociedade. Mascara-se, assim, o também caráter de

87 “[…] interpretations from this perspective have maintained that ‘marriage between a man and a woman is the normative form for human sexual fulfillment, and homosexuality is one among many tragic signs that we are broken people, alienated from God’s loving purpose’. Clearly, such interpretations affirm heterosexuality and condemn homosexuality. As a result, they privilege heterosexuality over homosexuality (heterosexism)” (HAYS apud ANDERSON, 2016, p. 129).

construção social da heterossexualidade, uma construção imposta compulsoriamente, justamente por ser entendida em termos normalizadores. Além disso, o que podemos perceber é que tais argumentos, travestidos de reafirmação do “normal”, do “natural” e do “divino”, encobrem a legitimação e a perpetuação das desigualdades sociais que embasam a discriminação por orientação sexual, corroborando assim para a perpetuação de estruturas desiguais e violentas em termos de gênero e sexualidade. Ainda sobre isso, Anderson argumenta que:

[...] a igreja promove compulsoriamente a heterossexualidade, heterossexuais são privilegiados em relação aos homossexuais (violência cultural), e tais privilégios justificam a aceitação de leis que privam essas pessoas de proteção legal no que se refere a habitação, emprego, ou relacionamentos comprometidos (violência estrutural) (ANDERSON, 2016, p. 125, tradução livre)88.

É justamente nessa transposição da violência cultural à violência estrutural, da condenação religiosamente legitimada à atividade política que se empenha na negação de direitos de cidadania que podemos inscrever as investidas da Frente Parlamentar Evangélica (FPE) em relação aos direitos sexuais de pessoas LGBT+ no Brasil. A normalização de um discurso de verdade sobre a família que, concomitantemente, deslegitima quaisquer configurações familiares não heterossexuais, perpetua estruturas de violência sob o argumento da defesa daquilo que é natural. Essa concepção de naturalidade, por sua vez, está baseada em uma série de essencializações, e é sobre estas essencializações que nos debruçaremos agora. Refiro-me aqui à essencialização do que seria uma família, à essencialização de seu papel na sociedade e à essencialização dos papeis de gênero, religiosa e culturalmente legitimados, que são relegados a homens e mulheres enquanto cumpridores dos requisitos necessários para ser família, nos termos propostos pelos parlamentares evangélicos.

É neste ponto da presente reflexão que podemos verificar como se entrelaçam os fatores que justificam a discriminação contra pessoas LGBT+ e a negação da equiparação dos direitos de casais homoafetivos e transafetivos em relação aos casais heterossexuais. Ainda, a estrutura sexista que, na sociedade brasileira (mas não só), justifica a submissão e inferioridade da mulher em relação a seu parceiro do sexo masculino, submissão esta que duplamente legitimada pelas perspectivas religiosas

88 “[…] the church promotes compulsory heterosexuality, heterosexuals are privileged over homosexuals (cultural violence), and such privileging justified the acceptance of laws that deprive these persons of legal protection concerning housing, employment, or their committed relationships (structural violence)” (ANDERSON, 2016, p. 125).

majoritárias. Como salienta Valéria Busin, a crença bíblica de que a mulher teria sido a responsável pela queda, através da figura de Eva, é um dos elementos que justifica (e santifica), em nossas sociedades, a submissão das mulheres. Em suas palavras:

Não se pode afirmar que a inferiorização da mulher e o patriarcado tenham sido criados pela religião. Os autores do texto bíblico certamente estavam expressando algo que já era presente em sua cultura. Ao registrá-la no contexto de um livro sagrado, o que ocorreu foi a reificação e uma legitimação da discriminação das mulheres que já ocorria naquela sociedade, naquela época e naquele contexto, tornando-a uma expressão da vontade divina (BUSIN, 2011, p. 117-118).

Como já pontuamos anteriormente, as novas formas de família que reivindicam para si este conceito colocam em cheque as construções tradicionais dos papéis de gênero, pois não basta ser uma família formada por um homem e uma mulher, mas, através do argumento bíblico, também a figura do pai é central como aquela que simboliza o lugar de poder na constituição dessa família. De acordo com Elisabeth Roudinesco:

[...] o cristianismo impõe o primado de uma paternidade biológica à qual deve obrigatoriamente corresponder uma função simbólica. À imagem de Deus, o pai é visto como a encarnação terrestre de um poder espiritual que transcende a carne. Mas não deixa por isso de ser uma realidade corporal submetida às leis da natureza. Como correspondência, a paternidade não decorre mais, como no direito romano, da vontade de um homem, mas da vontade de Deus, que criou Adão para gerar uma descendência. Só é declarado pai aquele que se submete à legitimidade sagrada do casamento, sem o qual nenhuma família se integra (ROUDINESCO, 2003, p. 14).

Desta forma, atrelado à centralidade da figura paterna na ocupação do posto alto da hierarquia da família nuclear, está também o papel da mulher como receptáculo da descendência. Ora, o papel da família entendido como instituição que fundamentalmente atende aos desígnios divinos da procriação para a perpetuação da espécie é um dos principais elementos que aparecem nas falas dos parlamentares evangélicos que compõem a Frente Parlamentar Evangélica (FPE). Lembremos aqui da fala indignada do deputado Ronaldo Fonseca (PROS-DF): “O casamento civil veio para proteger a procriação! [...] Como é que duas pessoas do mesmo sexo vão procriar?”. Ou então o discurso de Ronaldo Nogueira (PTS-RS), enfatizando: “Como se forma uma família? Pela união civil de um homem e uma mulher que geram filhos”. Esta concepção de família com propósitos reprodutivos encontra seu eco em concepções religiosas típicas das tradições abraâmicas. De acordo com Luiz Mott,

[...] os povos espiritualmente descendentes de Abraão, judeus, cristãos e muçulmanos, somos herdeiros típicos da ideologia demográfica pró-natalista,

onde a religião e a moral ensinam que o sexo se destina precipuamente à reprodução, tendo como base a ordem do Divino do Criador: “crescei e multiplicai-vos” (MOTT, 2001, p. 43).

Nesta concepção religiosa do ato sexual, toda e qualquer relação que não visasse cumprir os propósitos de reprodução, considerados como o objetivo final da família e como a única forma de atender aos propósitos de Deus, colocariam a espécie humana em ameaça iminente. Essa, novamente, é a lógica subjacente ao discurso de Ronaldo Fonseca (PROS-DF) quando aborda a questão da adoção por homossexuais: “No futuro não vai haver filho para adotar”. A utilização do tom catastrófico e apocalíptico no discurso destes parlamentares foi também identificada por Christina Vital e Paulo Victor Leite Lopes. Segundo os autores:

Os argumentos que acionam pânico moral para refrear a ampliação de direitos para a população LGBT acentuam o risco que o crescimento dessa população no Brasil e no mundo causaria para a reprodução familiar e para a própria preservação da espécie humana. O pânico acionado em torno do fim da espécie passa pela impossibilidade óbvia de reprodução natural na relação homossexual (VITAL; LOPES, 2012, p. 153).

A concepção de pânico moral ao qual nos referimos, juntamente com os autores supracitados, está presente na obra de Stanley Cohen (2011). Segundo este autor, o pânico é criado, sobretudo, pelo temor que se constrói em relação a transformações de aspectos essenciais na sociedade. Nas palavras de Cohen (2011):

Uma condição, episódio, pessoa ou grupo de pessoas torna-se ameaça aos valores e interesses sociais; sua natureza é concebida de forma estilizada e estereotipada pelos veículos midiáticos; as barreiras morais são feitas por editores, bispos, políticos e outras pessoas de bons costumes; especialistas socialmente aceitos mostram seus diagnósticos e soluções; formas de enfrentamento são desenvolvidas; a condição desaparece, submerge deteriora ou se torna mais visível. Às vezes o objeto do pânico é completamente estranho e em outras vezes é algo que tem longa existência, mas repentinamente ganha destaque. Às vezes o pânico passa e é esquecido, menos no folclore e na memória coletiva; em outras vezes é mais sério e de longa duração, podendo produzir mudanças na política legal e social ou mesmo na forma como a sociedade se concebe (COHEN, 2011, p. 1, tradução livre)89.

89 A condition, episode, person or group of persons emerges to become defined as a threat to societal values and interests; its nature is presented in a stylized and stereotypical fashion by the mass media; the moral barricades are manned by editors, bishops, politicians and other right-thinking people; socially accredited experts pronounce their diagnoses and solutions; ways of coping are evolved or (more often) resorted to; the condition then disappears, submerges or deteriorates and becomes more visible. Sometimes the object of the panic is quite novel and at other times it is something which has been in existence long enough, but suddenly appears in the limelight. Sometimes the panic passes over and is forgotten, except in folklore and collective memory; at other times it has more serious and long-lasting repercussions and might produce such changes as those in legal and social policy or even in the way the

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