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Família como lugar de luta por reconhecimento: sobre a imprescindibilidade de princípios laicos como preceitos jurídicos nos

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IMPLICAÇÕES POLÍTICO-JURÍDICO-RELIGIOSAS NA PERPETUAÇÃO DA VERDADE SOBRE A FAMÍLIA

CONCEITO DE FAMÍLIA

3.3.1 Família como lugar de luta por reconhecimento: sobre a imprescindibilidade de princípios laicos como preceitos jurídicos nos

Estados democráticos

Para discorrer sobre o tópico de reconhecimento, devemos recordar novamente os debates sobre laicidade, democracia e cidadania que ocuparam boa parte do primeiro capítulo desta dissertação. É fundamental rememorar que os processos de construção da laicidade e da democracia estão intimamente imbricados, e que a promoção de direitos de cidadania para as minorias sociais são frutos de lutas políticas travadas no desenrolar deste mesmo processo de construção. São estes nossos nortes na discussão que versa sobre a necessidade de reconhecimento da pluralidade em regimes políticos democráticos, respeitando os princípios da laicidade atrelados a não discriminação e ao respeito à dignidade humana, para a consolidação dos direitos de cidadania de todos os indivíduos que compõem a sociedade brasileira.

É sobre a necessidade de reconhecimento que versa Nancy Fraser (1995), quando se debruça sobre as demandas do movimento LGBT+ já na década de 1990. Diz a autora:

Gays e lésbicas sofrem de heterossexismo: a autoritária construção de normas que privilegiam a heterossexualidade. Junto com isso temos a homofobia: a desvalorização cultural da homossexualidade. Com sua sexualidade feita desprezível, homossexuais estão sujeitos à vergonha, assédio, discriminação, e violência, enquanto são negados direitos legais e igual proteção – tudo isso, fundamentalmente, negação de reconhecimento. Sem dúvida, gays e lésbicas também sofrem sérios prejuízos econômicos; eles podem ser sumariamente demitidos de seus trabalhos e lhes são negados benefícios sociais baseados na família. Mas longe de serem causa da estrutura econômica, são derivadas de uma estrutura de valorização cultural injusta. O remédio para tal injustiça, consequentemente, é reconhecimento, e não redistribuição (FRASER, 1995, p. 77) 96.

96 Gays and lesbians suffer from heterosexism: the authoritative construction of norms that privilege heterosexuality. Along with this goes homophobia: the cultural devaluation of homosexuality. Their sexuality thus disparaged, homosexuals are subject to shaming, harassment, discrimination, and violence, while being denied legal rights and equal protection – all fundamentally denials of recognition. To be sure, gays and lesbians also suffer serious economics injuries; they can be summarily dismissed from work and are denied family-based social-welfare benefits. But far from being rooted directly in the economic structure, these derive instead from an unjust cultural-valuational structure. The remedy for the injustice, consequently, is recognition, not redistribution (FRASER, 1995, p. 77).

Construída uma homossexualidade desprezível, torna-se imprescindível na transmissão dos valores tradicionais que fundamentam a cultura patriarcal, a monogamia institucional e as desigualdades políticas, jurídicas e sociais derivadas destas. Já consideramos aqui que a defesa de um discurso de verdade (FOUCAULT, 1999, 2014, 2015) sobre a família, como única legítima e normal, inerentemente marcada por relações de poder, no qual tal instituição, formada por homem, mulher e filhos submissos à autoridade do primeiro, cumprem os papéis de gênero socialmente outorgados a cada um destes.

Ademais, considerando que tal defesa se estabelece a partir da negação da existência, da afirmação de ilegitimidade e da depreciação de outras configurações que, por sua suposta inerente anormalidade para com a ordem natural, não mereceriam gozar do reconhecimento estatal ou serem colocadas na mesma posição que as famílias heterossexuais e cisgêneras, a institucionalização jurídico-política da família verdadeira não passa de uma investida política excludente e discriminatória, nas quais parlamentares se utilizam de sua posição política enquanto legisladores para perpetuar estigmas e corroborar com a cultura de violência simbólica e física contra a população LGBT+, sobretudo considerando o papel do direito, das leis e das instituições mantenedoras da ordem político-jurídica na perpetuação destas violências. Discorrendo sobre o papel fundamental do direito neste processo, José Reinaldo de Lima Lopes assinala que:

A negativa de direitos, somada ao tradicionalismo do status quo, é mantenedora e fomentadora das formas mais evidentes de violência física e é em si mesma uma ofensa ao regime democrático de iguais liberdades. [...] Em uma ordem democrática, a essa discriminação sexual é juridicamente ilícita (LOPES, 2011, p. 38).

Respaldados neste autor, consideramos que o direito ocupa um importante papel tanto nos processos de reconhecimento quando nos processos de negação dos direitos de pessoas homossexuais ou transexuais. Entretanto, embora não seja possível negar que o direito serve como aparato de controle, regulação, normalização e manutenção da ordem das coisas, gostaríamos também de ressaltar que é apelando ao direito, argumentando pela defesa dos direitos humanos e da dignidade da pessoa humana que é possível flexibilizar o papel meramente coercitivo das instituições jurídicas e encontrar nestas potencialidades na transformação da realidade social quando se produzem novas políticas de reconhecimento e novas regulamentações protetivas em relação aos direitos de minorias. A este respeito, Lopes salienta:

A diferença, pois, é um construto histórico; e o direito não joga um papel neutro nessa construção: ao contrário, o direito – os ordenamentos jurídicos – ajuda a naturalizar as diferenças e desigualdades na cultura. A mudança no direito não apenas se segue às mudanças culturais, mas ajuda a promovê-las (LOPES, 2011, p. 31).

Neste entendimento, ainda que o direito, entendido como aparato jurídico mantenedor de leis e normas, em muitas ocasiões corrobore com a manutenção ordem social e perpetue suas estruturas discriminatórias, consideramos que este mesmo direito tem a potencialidade de auxiliar propósitos inversos, na medida em que também acompanha as mudanças sociais promovidas por novos sujeitos que ascendem ao campo político na reivindicação de seus próprios direitos de cidadania. Tais reivindicações podem abarcar desde demandas por novas interpretações de leis já existentes quanto a criação de novas formas legais de proteção e amparo a suas relações e vidas íntimas, como no caso que aqui estamos a analisar. É acionando argumentos do campo jurídico que a população LGBT+ tem lutado pela garantia de seus direitos e exigido a legitimidade de suas famílias enquanto famílias, amparadas pelos chamados direitos da

família e pelos princípios da democracia que preza pela pluralidade e pelo respeito e não

discriminação das diferenças. Reforçando esta perspectiva, Roger Raupp Rios diz:

[...] o respeito ao pluralismo é condição necessária para a preservação da dignidade humana e para o desenvolvimento pessoal, na medida em que, sem o respeito às diferenças individuais, desaparece a possibilidade de construção de um mundo onde haja espaço para a subjetividade e a construção das identidades pessoais. Relacionando sociabilidade e pluralismo, verifica-se que a intimidade requer não só o direito negativo de estar só, mas, também, a possibilidade de estabelecer espaços de privacidade e condições sociais para o exercício das escolhas pessoais que estabelecem e mantém relações sexuais e afetivas (RIOS, 2007, p. 117).

Na discussão sobre pluralidade e diversidade convém retornarmos às discussões sobre laicidade, realizadas no início dessa dissertação, pois, como já salientamos, consideramos aqui ser deveras estreita relação entre laicidade e democracia. E mesmo que os conceitos não sejam explicitamente pontuados, é este o caminho que o presente trabalho tem trilhado. Quando falamos no potencial transformador do direito, estamos necessariamente nos referindo ao direito enquanto atrelado aos princípios da laicidade como elemento fundamental do ordenamento de Estados democráticos, entendendo democracia como o regime político que – mais do que meramente permitir – tem suas bases assentadas na pluralidade de concepções. Sobre a relação entre laicidade direito em Estados democráticos, especificamente no debate que nos propomos acerca das

questões que envolvem as controvérsias sobre o conceito de família, Marco Huaco (2008) salienta que:

[...] o princípio de laicidade se manifesta ao desenvolver matérias de direito de família e de direito civil, como o princípio do matrimônio, o status jurídico das sociedades de convivência, os direitos hereditários e sociais dos casais homossexuais, o direito à identidade sexual do indivíduo, o divórcio, etc., as quais precisam basear-se em valores e princípios os mais desprovidos possível de condicionamentos religiosos (laico) toda vez que a norma jurídica está destinada a regular situações cujos sujeitos são diversificados quanto a crenças e a convicções, e tem vocação de aplicação geral, dado que a norma faz abstração de crenças pessoais ao regular, modificar ou criar determinados reconhecimentos jurídicos (HUACO, 2008, p. 41)

É nesta mesma interpretação do direito laico como aparato jurídico que deve proteger a diversidade e pluralidade nos regimes democráticos que, contrariando os esforços de institucionalização de um único modelo de família, a jurista e defensora dos direitos da população LGBT+, Maria Berenice Dias (2015), ressalta a necessidade de se pensar em família como um conceito plural. De acordo com a jurista:

É necessário ter uma visão pluralista da família, que abrigue os mais diversos arranjos familiares, devendo-se buscar o elemento que permite enlaçar no conceito de entidade familiar todos os relacionamentos que têm origem em um elo de afetividade, independentemente de sua conformação. Esse referencial só pode ser identificado no vínculo que une seus integrantes. É o envolvimento emocional que leva a subtrair um relacionamento do âmbito do direito obrigacional – cujo núcleo é a vontade – para inseri-lo no direito das famílias, que tem como elemento estruturante o sentimento do amor que funde as almas e confunde patrimônios, gera responsabilidades e comprometimentos mútuos. Esse é o divisor entre o direito obrigacional e o familiar: os negócios têm por substrato exclusivamente a vontade, enquanto o traço diferenciador do direito da família é o afeto. A família é um grupo social fundado essencialmente nos laços de afetividade após o desaparecimento da família patriarcal, que desempenhava funções procriativas, econômicas, religiosas e políticas (DIAS, 2015, p. 133).

Ora, quando os parlamentares que compõem a FPE apelam para um discurso que defende a família natural, família tradicional, ou apelam para a argumentação de que o Estado não deve legitimar relações afetivas que fogem à naturalidade e ao proposito

único de procriação, trata-se da tentativa de suprimir, politica e juridicamente, aquilo

que deveria ser central no entendimento que aqui adotamos acerca da democracia, negando a cidadania, o reconhecimento e os próprios princípios fundamentais dos direitos humanos para os indivíduos que compõem as chamadas novas famílias. De acordo com Roger Raupp Rios,

Os princípios fundamentais dos direitos humanos exigem que o direito de família contemple em seus institutos e conteúdos as uniões homossexuais. Se não for assim, o resultado seria a violação dos direitos básicos de liberdade,

igualdade, privacidade e respeito à dignidade da pessoa humana; seria disferir um golpe seríssimo contra o convívio democrático, alvejado nos seus fundamentos mais caro do pluralismo e da diversidade (RIOS, 2011, p. 85).

Por fim, vale salientar ainda que a importância do reconhecimento destas uniões como famílias, e da necessidade da pluralidade de famílias, pode também ser entendido como a própria necessidade de se combater o estigma que recai sobre essas pessoas na sociedade brasileira97.

Sua perpetuação dos estigmas, através da negação da existência de sujeitos sexualmente transgressores, por parte mesmo do Estado e de instâncias da sociedade civil ou, no caso que aqui estamos analisando, da ação destes na própria legitimação do estigma, notadamente tendo em vistas as ações de políticos religiosos que compõem a FPE e de instituições religiosas conservadoras que salvaguardam uma moral sexual tradicional se dá, portanto, na contramão dos direitos humanos e da dignidade humana. Na mesma perspectiva argumentativa, Lopes ressalta a necessidade de reconhecimento para o efetivo combate aos estigmas legitimados, também, pela lei. Em suas palavras:

O reconhecimento consiste na afirmação e na valorização positiva de certas identidades. O direito ao reconhecimento, portanto, deve afirmar-se como um direito em primeiro lugar, e precisará traduzir-se em esforços públicos – estatais e não estatais – que retirem de um grupo estigmatizado as consequências jurídicas de um estigma social (LOPES, 2011, p. 44).

Tais debates nos permitem observar como a vida privada, longe de ser um campo separado da política, é permeada por esta. Neste sentido, o privado também é político. E, considerando que as ações dos parlamentares evangélicos possuem claros interesses políticos na perpetuação de uma moral sexual tradicional, encerraremos as discussões que aqui nos propomos no tópico seguinte, ao discorrer sobre o significado, também político, das novas famílias que pululam nas sociedades contemporâneas e que reivindicam seu próprio reconhecimento, pois se a defesa de uma verdade sobre a

família tem implicações políticas na manutenção das relações de poder, seu inverso

também é verdadeiro.

97 Sobre a noção de stigma, nos utilizamos da abordagem de Erving Goffman. Segundo o autor: [...] acreditamos que alguém com um estigma não seja completamente humano. Com base nisso, fazemos vários tipos de discriminações, através das quais efetivamente, e muitas vezes sem pensar, reduzimos suas chances de vida: Construímos uma teoria do estigma; uma ideologia para explicar a sua inferioridade e dar conta do perigo que ela representa, racionalizando algumas vezes uma animosidade baseada em outras diferenças, tais como as de classe social. Utilizamos termos específicos de estigma como aleijado, bastardo, retardado, em nosso discurso diário como fonte de metáfora e representação, de maneira característica, sem pensar no seu significado original (GOFFMAN, 2004, p. 8).

3.3.2 Famílias LGBT+ e as potencialidades de transformação cultural e simbólica

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