UNIVERSIDADE FEDERAL DE OURO PRETO
INSTITUTO DE FILOSOFIA, ARTES E CULTURA
PPG EM ESTÉTICA E FILOSOFIA DA ARTE
RICARDO MIRANDA NACHMANOWICZ
Aspectos lógicos na música clássica do século
XVIII:
o modelo recognitivo enquanto aparato
epistemológico da autonomia do discurso
musical instrumental.
RICARDO MIRANDA NACHMANOWICZ
Aspectos lógicos na música Clássica do
século XVIII:
o modelo recognitivo enquanto
aparato epistemológico da autonomia do
discurso musical instrumental.
Dissertação apresentada ao Mestrado em
Estética e Filosofia da Arte da Universidade
Federal de Ouro Preto, como parte dos
requisitos para obtenção do título de Mestre
em Filosofia.
Linha de pesquisa: Estética e Filosofia da
Arte
Orientador: Prof. Gilson Iannini
N122a Nachmanowicz, Ricardo Miranda.
Aspectos lógicos na música clássica do século XVIII [manuscrito] : o modelo recognitivo enquanto aparato epistemológico da autonomia do discurso musical instrumental / Ricardo Miranda Nachmanowicz - 2012.
viii, 188f.: il. color.
Orientador: Prof. Dr. Gilson de Paulo Moreira Iannini. Coorientador: Prof. Dr. Eduardo Soares Neves Silva.
Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal de Ouro Preto. Instituto de Filosofia, Artes e Cultura. Programa de Pós-graduação em Filosofia.
Área de concentração: Estética e Filosofia da Arte.
1. Música - Filosofia e estética - Teses. 2. Estética - Teses. 3. Lógica - Teses. 4. Juízo (Estética) - Teses. 5. Juízo (Lógica) - Teses. I. Universidade Federal de Ouro Preto. II. Título.
CDU: 111.852:78.01
AGRADECIMENTOS
Agradeço a meu orientador Gilson Iannini pela liberdade de trabalho. A meu co-orientador Eduardo Soares pelo rápido entendimento e avaliação.
Agradeço a meus colegas de turma. Entre eles em especial: Rafael Abras, Lucas Marinho, Cláudia Dalla, Fran Alavina e Marcela Tavares.
Agradeço aos professores da UFOP assim como o departamento como um todo que vêm permitindo um ambiente de trabalho único e bastante gratificante. Em especial aos professores: Cíntia Vieira, Bruno Guimarães e Imaculada Kangussú.
Agradeço a um mote que sempre me faz abrir as páginas certas. A certo magista que envolve nossa vista a cada página. E às súbitas extensões de nosso pensamento em livros.
Resumo
A dissertação consiste em uma investigação de caráter epistemológica acerca da experiência musical, e em especial, da música instrumental tonal clássica produzida no século XVIII. A relação estabelecida foi que o objeto musical escolhido pode ser compreendido a partir do paradigma transcendental kantiano e de seu fundamento para o conhecimento, quer seja um fundamento lógico, determinante ou recognitivo. Contudo, esta mesma vinculação possui um impedimento na própria obra kantiana, que reserva um outro fundamento para o objeto musical, o estético. A dissertação conclui que a relação entre o fundamento lógico kantiano para o conhecimento e as técnicas e artifícios da produção musical instrumental clássica possuem uma complementaridade teórica que não possui o mesmo paralelo no fundamento estético kantiano.
Resume
Sumário
INTRODUÇÃO...01
A Estética musical de um ponto de vista epistemológico 02
Do projeto da dissertação enquanto uma correspondência entre a musica instrumental clássica e o modelo de conhecimento kantiano, e não um estudo acerca do comentário de Kant a respeito da arte musical. 21
SEÇÃO 1: O lógico e o estético...36
CAPÍTULO I - Estatuto e conteúdo do juízo estético puro. 44
1. O juízo estético. 47
1.1. O estatuto do juízo da beleza. 50
1.1.1. O conteúdo expresso no juízo da beleza. 56
1.1.2. A hipotipose. 60
1.1.3. A ligação do estatuto da beleza a um conteúdo belo. 62
2. Os objetos da arte e o objeto da complacência da beleza. 67
2.1. Entre a beleza e a idéia estética: uma arte do inexponível. 69
2.2. Limites de um sistema do juízo de gosto. 73
3. A divisão entre lógica e estética implicada na separação entre natureza e arte. 77
3.1. O ponto de cisão entre o lógico e o estético representado pelo parágrafo §9. 79
CAPÍTULO II – Estatuto do juízo determinante: a legalidade da unidade sintética da apercepção. 84
1. A apercepção enquanto autoconsciência. 86
1.1. Os produtos das faculdades. 88
2. Estatuto e conteúdo do juízo determinante. 89
2.1. A exibição esquemática e simbólica dos juízos. 93
3. O entendimento: a espontaneidade do conhecimento. 94
3.1. A representação da faculdade do entendimento. 96
3.1.1. Conceito: definição do termo. 99
da apercepção. 104
4.0.1. O objeto. 105
4.0.2. Os atos das faculdades transcendentais do conhecimento. 108
4.1 A representação da sensibilidade: a intuição. 109
4.2. O produto da imaginação: o esquema. 111
4.3. A representação do entendimento: o conceito. 113
5. Limites, interferências e ultrapassagem das legalidades. 115
5.1. Pensando o fenômeno musical a partir de um modelo recognitivo do conhecimento. 119
SEÇÃO 2: Extrato lógico-musical...123
CAPÍTULO III – Análise do estatuto musical. 124
1. Os diversos modos em que podemos reivindicar conceitos para uma experiência: a recognição aplicada a objetos. 128
1.1. Análise da constituição de objetos visuais. 132
1.1.1. Análise categorial de um objeto visual. 133
1.1.2. Atos lógicos, gênero e espécie: análise lógica sob o exemplo das garrafas. 135
1.1.3. Propriedades conceituais de um objeto visual. 138
1.2. Diferença entre objetos sonoros e musicais. 141
1.3. Objetividade e subjetividade musical. 144
1.3.1. Relação espaço-temporal dos objetos. 145
2. Análise lógico-musical: correspondência transcendental dos elementos musicais. 153
2.1 Análise lógica sob um exemplo da música instrumental clássica. 155
3. Graus de síntese e ajuizamento sobre um objeto empírico. 162
3.1 Cópula de predicados. 164
CONCLUSÃO 166
1. A hipótese de Hanslick. 166
2. A condição sine qua non da experiência musical. 170
3. Considerações gerais. 174
BIBLIOGRAFIA...178
Introdução
A estética musical de um ponto de vista
epistemológico
Na música há sentido e conseqüência, mas musical; é uma linguagem que falamos e entendemos, mas que não somos capazes de traduzir. Há um conhecimento profundo em aludir também a “pensamentos” nas obras sonoras e, como no falar, o juízo dextro distingue aqui facilmente pensamentos verdadeiros de simples palavrório.
(Eduard Hanslick)
A filosofia conduziu-se historicamente por um modelo de conhecimento norteado por
uma primazia do órgão da visão. Se por um lado Platão criticava aquilo que aparecia à
vista como uma ‘cópia’ ou ‘casca’ do real, em seu mito da caverna dá o máximo
significado à luz que ‘faz ver’ as idéias. As metáforas a este respeito são abundantes e
o repertório da filosofia e mesmo da linguagem ordinária o demonstram: iluminismo,
iluminar, esclarecer, fazer ver, visão, etc. Ver, enquanto conhecer, é de fato uma
metáfora que nos rendeu muitos frutos:
Com efeito, não só para agir, mas até quando não nos propormos operar coisa alguma, preferimos, por assim dizer, a vista aos demais. A razão é que ela é, de todos os sentidos, o que melhor nos faz conhecer as coisas e mais diferenças nos descobre. (Metafísica 980 A: 2001-2)
Antes de qualquer coisa detenhamo-nos ante a um embate entre nossos órgãos
dos sentidos. Comecemos apenas por dar atenção a outro órgão, talvez não tão repleto
de metáforas a ponto delas adentrarem ao vocabulário epistemológico e científico,
mas que sem dúvida estão presentes em outros campos, como a tão rica e pedagógica
metáfora de ‘dar ouvidos’.
Tal órgão não passou despercebido do mestre de Estagira, que reconhece e
concede certo poder ao órgão auditivo:
desse tipo); ao contrário, aprendem todos os que, além da memória, possuem também o sentido da audição. (Metafísica 980 A: 2001-2)
O filósofo entende, por assim dizer, que aprendemos e ensinamos através da
audição. E toda a proficuidade da expressão ‘dar ouvidos’ parece ao menos perfazer
uma porta de entrada ao reino ‘superior’ do conhecimento.
Não precisamos mais, assim como fez Aristoteles, hierarquizar a função dos
órgãos dos sentidos por seu vínculo cognitivo, mas podemos vir a alcançar uma
perspectiva de nossa capacidade cognitiva a partir do órgão da audição e do que
podemos constatar em seus objetos.
Falamos em ‘órgão’ do ouvido para lembrar que o fenômeno musical possui
uma porta de entrada. E elegemos o ato de ouvir, a escuta1, como ato onde o
conhecimento musical é erigido.
Aproveitando-nos de uma problemática presente em Nancy, lançamos a
questão sobre a própria capacidade da filosofia em compreender as capacidades
auditivas enquanto capacidades cognitivas superiores.
Escutar é algo ao qual a filosofia é capaz? Ou - vamos insistir um pouco, apesar de tudo, correndo o risco de exagerar o ponto - não teria a filosofia sobreposto sobre a escuta [listening], de antemão e por necessidade, ou ainda substituído a escuta, por alguma coisa que pudesse ser mais da ordem da compreensão [understanding]? (Nancy 2002:1)
A língua francesa possui este duplo significado do termo entendre (traduzido como understanding ou to hear). No português, como no inglês, não há qualquer relação entre escuta e entendimento, ou escuta e conhecimento, não há uma relação
prefigurada já na palavra. Nancy quer pensar o quanto escutar e entender se
identificam, e o quanto o sentido da audição, impresso no termo entendre teria sido deixado de lado pela filosofia.
Nosso itinerário é semelhante para com o objeto musical, pois que, em comum
com todo conhecimento, a escuta musical estabelece-se como uma ponte, que
encarrega uma facticidade sonora pelo trajeto de uma compreensão.
Acompanhando ainda o diagnóstico de Nancy somos obrigados a nos
perguntar: como nos tornar atentos, na escuta, à uma compreensão musical? E como
descreve-la a partir de um modelo filosófico ligado a uma concepção de entendimento
1 Definição de ‘escutar’: Tornar-se ou estar atento para ouvir; dar ouvidos a; aplicar o ouvido
que se volta tradicionalmente ao visual?
Há, pelo menos potencialmente, mais isomorfismo entre o visual e o conceitual, mesmo que apenas em virtude do fato de que a morphé, a "forma" implícita na idéia de "isomorfismo" seja imediatamente pensada ou apreendida no plano visual. (Nancy 2002:2)
Como contrapartida, o sonoro, observa Nancy, foi identificado sempre com o
esotérico, o confessional, o secreto.
Porém, desde o século XVI, vê-se que música e ciência tornaram-se cada vez
mais próximas, em grande medida pela necessidade da organização sonora pelos
músicos, e concomitantemente, o interesse do cientista em compreender as relações
sonoras. (Weber 1995). Este mesmo impulso é verificado ao longo dos séculos, mas é
sobretudo a partir do século XX, e presentemente no século XXI, que conquistas
teóricas e técnicas, artísticas e tecnológicas passaram a ter um enlace em proporções
que atualmente suscitam questões acerca dos limites entre arte, técnica e ciência
(Iazzetta 2008).
Porém, retrocedendo alguns séculos, mais especificamente ao século XVIII,
nosso trabalho não quer pensar na interação entre tecnologia, ciência e música,
assunto este que já vem sendo contemplado nos trabalhos musicológicos atuais, mas
diferente, centrarmo-nos na relação que o procedimento composicional e a escuta
musical estabeleceram diretamente com o conhecimento, introduzindo ao debate uma
perspectiva eminentemente epistemológica.
Nosso escopo histórico localiza-se no interior da nascente música clássica,
período este que se destaca pelo uso sistemático e preponderante da tonalidade e do
discurso instrumental. O objeto musical passa a conter e ser o resultado de um
procedimento composicional, de critérios e valores de escuta, concomitantemente
cifrados junto à partitura e aos hábitos de leitura e execução. Notabiliza-se assim,
sobretudo no período clássico, a figura do compositor. Assim, uma filosofia que
pretenda dissertar acerca dos processos de conhecimento inerentes à experiência
musical acaba por levar em consideração os próprios processos composicionais de um
autor e de uma escola.
A inter-relação necessária entre o objeto e a escuta é de tal importância em
uma tradição musical erudita como a que vamos contemplar que podemos ligar o que
seja essencialmente a música ao que seja essencialmente o trabalho de um compositor.
esta, a um objeto. Se lhe pergunto: ‘o que acha de Messiaen?’, pergunto, sob a esfera
da escuta e do objeto, tudo, menos o que se pese acerca deste nome enquanto
signifique uma pessoa.
É aqui que adentramos em um problema bibliográfico, afinal, músicos não se
preocuparam, antes do século XX, em publicar trabalhos teóricos que contemplassem
a escuta, mas apenas a feitura das obras e técnicas as quais trabalhavam, o que não
quer dizer que a escuta não corresse sempre implícita nestes trabalhos. O micrologus
de Guido D’Arezzo, o Le Institutioni Harmoniche de Gioseffo Zarlino, o Der vollkommene Capellmeister de Johann Mattheson, e o Handbuch der Harmonielehre
de Hugo Riemann, entre outros, ilustram esta bibliografia (Christensen 2002).
A partir de certas características destes tratados podemos indicar constantes
presentes nas descrições, embora o conteúdo deste processo se modifique a cada
período histórico. Há um esquema geral, desde o medievo, que atende aos seguintes
critérios: a) a obra musical desperta certo ‘efeito’. b) o ‘efeito’ musical possui vínculo
causal com a organização sonora da obra. c) é possível organizar a obra a partir de um
princípio teórico geral, o tratado.
A ordenação do material musical parece ser assunto essencial desta arte. Os
comentários a este respeito, todos centrados no conceito de harmonia, remontam a
Aristóteles. Em sua concepção a aplicação da harmonia sob as artes se realizaria pela
‘lei’ do movimento: “notas que soam juntas não provocam sentimento” (Menezes
2002:28).
A tradição ocidental vincula, assim, o efeito artístico à idéia de obediência a
uma lei da harmonia, uma ordenação. Notamos tal empresa no conceito de ‘qualidade
e afinidade’ (modi vocum) de D’Arezzo em seu Micrologus de 1026. Observamos também a relação entre ‘ordem’ e ‘efeito’ na idéia de ‘proporção’ onde “Zarlino
pontua em seu importante tratado Le Institutioni Harmoniche de 1558 a relevância sobretudo das proporções para o dado harmônico.” (Menezes 2002:28).
A música renascentista aplicava sons simultâneos e seqüenciais sob diferentes
vozes, enquanto que a música medieval apenas seqüenciais. Essa diferença, contudo,
deu lugar ao conceito de proporção, que permitiu adaptar a idéia de harmonia para os
dois níveis do objeto, horizontal (melodia) e vertical (acorde)2. O conceito de
2 Na música renascentista (erudita) não há uso de ‘acorde’, entendido como ataque simultâneo
‘harmonia’, tratando inicialmente de medidas, proporções e qualidades, ampliava-se
conforme o montante material a que deveria dar forma, e este montante pode se
estender do macro ao microcosmo do objeto musical, o que denotaria a extensão de
uma dada lógica composicional.
Em todos os tratados examinados há descrições sobre a qualidade intervalar,
as regras escalares e estruturação de formas. Tais descrições precisas, acompanham
toda a história da música ocidental e dos subseqüentes tratados. Porém, os tratados, e
mesmo a interpretação dominante acerca de cada época, não se limitavam a tratar da
música apenas em seu aspecto técnico. Estes viam aliados à uma ‘visão de mundo’
que se estruturou tipicamente em cada período.
Embora atualmente possamos estender o adjetivo ‘musical’ a toda obra contida
nesta tradição, o ‘significado’ destas obras para cada período diverge, ou seja, os
valores, afetos, conhecimentos, etc., reivindicados por cada período histórico não
foram os mesmos. Por exemplo, no medievo, dizia-se da música que esta evoca a
ordem divina, porém, apenas quando sob os cuidados da palavra bíblica. No barroco,
as escalas e graus atuam em função de uma doutrina dos afetos (Affektenlehre), e assim por diante.
No classicismo, período pelo qual nos interessamos, há também uma estrutura
pertinente à uma ‘visão de mundo’, porém, destacamos que o que marca
distintivamente o período clássico é o surgimento de um pensamento preocupado com
a autonomia musical, com sua capacidade de prescindir de outros veículos
expressivos a dar fundamento à sua forma artística. Tal novidade ilustrou-se através
de obras musicais e configurou o modelo tonal, onde seu discurso, podemos destacar,
passou por três momentos.
Um primeiro, marcado por uma certa herança dos afetos do barroco, mas que
os interpretou por uma via naturalista, e "tendeu para uma estética da música como
som natural, não como obra de arte" (Dahlhaus 1989:61), resultando na teoria da
Empfindsamkeit, que de acordo com Dahlhaus (1989), ainda se manteve presente nas décadas de 80’ e 90’ do século XVIII.
Um segundo momento veio a suplantar tal tese com o Sturm und Drang e sua apropriação do conceito de sublime:
percebido como uma desvantagem, a indeterminação da música instrumental, foi reinterpretado como uma vantagem. (Dahlhaus 1989:60)
Neste segundo momento percebemos o percurso que as estéticas começam a
empreender em busca de um conteúdo autônomo, unificando o conteúdo artístico ao
caráter formal das produções emergentes.
Este caminho deságua na eleição da música instrumental, gênero já
estabelecido quando do limiar do período romântico, e cunha seu primeiro conceito
autônomo da arte musical, a Música absoluta: “[...] desdenhando qualquer ajuda, qualquer mistura de outra arte, expressa a natureza característica da arte que é
somente reconhecida no interior da música em si." (Hoffmann In. Dahlhaus 1989:60) Dado este percurso, que de modo geral prescinde do pathos a definir a essência da música, surgem propostas acerca do que seria o conteúdo da música
absoluta – atribuindo-se um lugar vazio a esta estética desde o fim da predominância
do pathos enquanto conteúdo - dando lugar a novos discursos estéticos direcionados à música:
Originalmente a música só possuía valor enquanto arte aplicada [angewandte Kunst], isto é, era utilizada somente como expressão de sentimentos de um sujeito e foi preciso um longo tempo antes que fosse praticada como arte pura [reine Kunst], isto é, que a melodia, harmonia, etc. fossem cultivadas como jogo belo [als schönes Spiel], mesmo sem estarem ligadas a um texto ou coisas do gênero. (Triest, Allgemeine Musikalische Zeitung, In. Videira: 2010)
Contudo, esta autonomia que hoje se recobre em excesso com teorias
científicas era por sua vez recoberta por concepções metafísicas. O conteúdo
instrumental autônomo era interpretado enquanto uma inexprimibilidade metafísica.
Neste ínterim não faltaram propostas a conceber os novos elementos da
música instrumental. Segundo Dahlhaus (1989), Körner introduziu entre as tendências
da época uma recuperação do valor do pathos no interior do conteúdo musical autônomo. Neste caso, o pathos é introduzido como o elemento de menor valor em uma hierarquia de valores espirituais que a música poderia alcançar, a saber, um ethos
que perpassaria pelos estados passionais. Körner visa com esta teoria estabelecer um
elo entre o conteúdo formal das sinfonias e um resultado perceptivo humanizado:
- e os estados passionais - pathos. [...] a música clássica que a dialética estético-histórico-filosófica de Körner procura justificar, surge como "unidade na diversidade:" unidade de caráter em uma variedade de estados passionais. (Dahlhaus 1989:65,66)
Havíamos aludido a três momentos das estéticas musicais do período tonal,
mas uma tese mista como a de Körner não configuraria nenhum momento
característico. Compreendemos que um terceiro momento serviria a uma estética que
trouxesse um novo enfoque sobre a música tonal do século XVIII e XIX, sem recair
de algum modo nas estéticas passadas.
Dado a teoria naturalista da Empfindsamkeit, e a estarrecida conclusão do
Sturm und Drang a respeito da inexprimibilidade da arte musical, parece que este terceiro momento viria apenas com Eduard Hanslick na obra Do belo musical. Ao invés de criar uma teoria conciliadora entre estes pólos, os absorve no sentido de uma
sublevação teórica a abarcar ambas as percepções, por isto, um terceiro momento
interpretativo, posterior aos demais.
Hanslick trabalha por diferentes flancos. De um lado rebate a ainda vívida
teoria dos afetos, e recorre até a psicoacústica para exemplificar que tipo de estado
anímico o som pode provocar. Mas, diferente da teoria da Empfindsamkeit, Hanslick não se fixa nestes dados enquanto expressão do musical, por entender que esses são
apenas suportes os quais a música não pode prescindir, mas que não configuram a
expressão musical ela mesma:
A música, pelo contrário, pode, com os seus peculiaríssimos meios, representar de modo substancial certo domínio de idéias. Tais são, em primeiro lugar, todas as idéias que se referem a modificações audíveis do tempo, da força, das proporções, por conseguinte, as idéias do crescimento, do esmorecer, da pressa, da hesitação, do artificiosamente intrincado do simples acompanhamento e coisas semelhantes.[...] meras idéias que podem encontrar nas combinações sonoras a correspondente manifestação sensível. [...] mas ainda, costuma-se confundi-la, não poucas vezes, com as propriedades puramente musicais. (Hanslick 2002:25)
Sua análise, incorporada a uma teoria tonal sólida, interpreta os sons sob uma
perspectiva estética bastante diferente da perspectiva programática impulsionada por
Wagner, e assim se distancia do romantismo que vinha dominando o discurso artístico
(Dahlhaus: 70,71).
Hanslick promovia uma ‘filosofia crítica’ para a estética musical, cumprindo a
modo transposto, sair da perspectiva da mera crença na realidade do discurso estético
aplicado à música até então, para encetar uma investigação das condições de
possibilidades inscritas a priori em nossa subjetividade.
Tal refreamento produziu uma visão bastante divergente, porém não
completamente desvinculada das tendências interpretativas de então, já que seu
trabalho contemplava produções e decisões estéticas da época, sobretudo no que diz
respeito ao compositor Johannes Brahms. O inexprimível, significando a poética do
infinito, do inalcançável e, por decorrência, do transcendente, um problema comum
ao romantismo, ganha em Hanslick uma expressão transcendental, argüindo portanto
seus próprios limites. O inexprimível passa a se delinear em um corpo filosófico. Para
ilustrar esta nova relação, tipicamente tonal, Hanslick por vezes se utiliza de imagens:
Cada um de nós, como criança, ter-se-á deleitado no variável jogo de cores e formas de um caleidoscópio. A música é semelhante caleidoscópio a um nível de manifestação infinitamente mais elevado. Produz formas e cores belas em constante e progressiva alternância, ora em transição suave, ora em contraste pronunciado, sempre simétricas e em si cumuladas. (Hanslick 2002:42)
O discurso da autonomia musical, que transcorreu desde o século XIX,
passando de uma inexprimibilidade metafísica para um discurso conceitual e
não-representacional, ou seja, vinha por tendências interpretativas pautadas na
inexprimibilidade do conteúdo musical, sobretudo entre o pré-romantismo e o
romantismo, foi tomado por Hanslick enquanto problema, mas sobre este problema
pretendeu dar um passo extra e que contudo o retirava da concepção anterior, ao tentar
especificar o sentido desta inexprimibilidade típica da música.
Este impulso não foi exclusivo de Hanslick, embora sua resposta, de caráter
formalista, seja única. Esta mesma problemática da inexprimibilidade deu lugar a uma
das teses musicais mais radicais acerca do conteúdo musical, a de Schopenhauer, e
sua identificação metafísica da música com a vontade.
Se voltarmos ao exemplo do caleidoscópio veremos que Hanslick está dando
um enfoque extremamente prosaico à experiência musical, em detrimento ao
conteúdo metafísico e poético típico do século XIX (Dahlhaus 1989:69,70). Qualquer
poder metafísico da percepção musical parece se esvair com a simploriedade do
exemplo, que contudo nos remete ao modelo kantiano de belezas livres e puras, dos
desenhos à la grecque e dos temas de papel de parede (CFJ: 49).
a estética romântica, tais como; metafísica, inexprimibilidade, sentimentos e o
sublime. Hanslick substitui os objetos em voga e retraça preocupações
transcendentais, ocupa-se da expressão de um domínio de idéias que os sons podem de fato nos infringir, critica a manutenção da tese barroca dos afetos e de sua
continuada e acrítica retomada sob a interpretação poética (sobretudo de um
romantismo menos radical e até popular), e por último, retoma o tema da beleza,
porém critica a superficialidade da estética musical kantiana.
Hanslick intenta um enfoque que quer mesmo suplantar o mero estético em
direção ao científico, até alcançar o filosófico. Sua pretensão propõe uma empresa de
reflexão acurada e lógica, respeitando as características artísticas do fenômeno
musical, o que se mostra bastante original para o período. Leva adiante o projeto da
autonomia da arte musical, porém, sem necessitar incluir a música em programas
filosóficos, morais, espirituais ou religiosos. Hanslick intenta uma investigação que
parte do musical e chega a suas determinações típicas sem maiores alusões.
Mantém-se assim filiado ao projeto clássico inicial de uma música instrumental autônoma.
A questão epistemológica
No que diz respeito ao nascente conceito de música pura ou absoluta, e de como a
música pôde influenciar toda a filosofia estética e em alguns casos a filosofia como
um todo (Videira 2009), há bibliografia suficiente em Dalhaus (1989), Christensen
(2002), Videira (2009,2010) entre outros pesquisadores muito competentes nesta área,
que conseguiram unir em uma medida mais do que satisfatória, rigor técnico musical
à suas condicionantes culturais. É certo que nossa leitura se alia a estes retratos
históricos, mas ainda pretende uma contribuição por uma via ainda pouco especulada.
A música instrumental, germe da realização do classicismo, ao renegar uma
série de prerrogativas culturais presentes quando de seu engendramento, foi, por isto
mesmo, responsável por um discurso inédito, tanto para a música quanto para as artes
em geral. O fato de uma seqüência acústica sem qualquer recurso representativo,
mimético ou textual configurar uma obra artística e incutir beleza, certamente se
mostrou forte o suficiente para que fosse incluído enquanto um problema estético,
Interessam-nos então os frutos teóricos que uma música instrumental nestes
moldes inseriu, já no século XVIII, e que nos permite fazer a seguinte interrogação:
Como foi possível erigir, em termos de estratégia composicional, um discurso musical
instrumental puro, compreensível, sem contar com uma base cultural previamente
legitimada?
Ou seja, estamos perguntando sobre o fenômeno musical, ele mesmo, sofrendo
uma distinção em seu modo de produção e escuta. A conseqüência destas produções
de Carl Phillip Emmanuel Bach, Joseph Haydn, Mozart e Beethoven – citamos os
mais eminentes – já são conhecidas e problematizadas, porém, o uso da técnica e a
criação de um modo de fruição proposta em termos de execução e racionalização têm
ainda um lugar menor neste debate. O nível de compreensibilidade alcançado por
estes compositores, antes mesmo de haver um discurso plenamente difundido, nos fez
voltar a considerar quais seriam as condicionantes epistemológicas empregadas pela
técnica tonal do século XVIII que tornaram possível empreender músicas puramente
instrumentais. Dada esta compreensibilidade, qual seria o modelo epistemológico
suscitado pela música instrumental tonal?
Nossa metodologia consiste em analisar os elementos de um modelo
epistemológico presentes na estratégia musical tonal, a compreender de que modo a
música instrumental do período foi capaz de comunicar-se, tornar-se compreensível,
sem lançar mão de discursos vigentes.
Nossa imersão exclusivamente sobre a obra kantiana busca a composição de
um intermediário teórico, não no sentido de uma ‘compreensão profunda’ das obras
do autor, mas de um componente que perpassa obras, compositores, autores e
sobretudo os espectadores, conscientes ou inconscientes, de estarem exercendo certas
funções lógicas que se objetivam em técnicas de composição e são evocadas na
escuta.
Esboço de um pensamento estético-musical
Uma história das técnicas musicais pode dar lugar a dois debates distintos: às
distinções sensíveis que são demarcadas em procedimentos técnicos, e a debates
os debates acerca do conteúdo findam muitas vezes sem continuidade enquanto que
muitas distinções sensíveis mantêm-se atuais.
Muito sucintamente, D’Arezzo denomina música como “o movimento dos
sons”. Não houve por nenhum período musical uma definição que parecesse
contradizer tal assertiva, e assim conclui Menezes: “O que importa à escuta musical é,
no entanto, perceber como se motiva (do latim motus – movido) o som, aproveitando o que de essencial distingue a música da maioria das outras artes: o tempo, mas
através da transformação (direcionalidade).” (Menezes 2002: 30)
Aos tratados, é incumbida a tarefa de fornecer a regra de uma ordem
‘direcional’ para o som. De posse deste conhecimento para a confecção de objetos
musicais, um músico pode ter segurança na composição de sua obra, a organizar seus
elementos segundo princípios e assim garantir uma ‘direcionalidade’ compreensível.
Estes trabalhos se inscrevem no campo da ciência musical e não podemos
ligá-los imediatamente ao inquérito filigá-losófico: ‘o que é música?’.
Respondendo tais questões no que diz respeito ao desenvolvimento harmônico de uma obra, pode-se estender tal conclusão também aos outros fenômeno da composição musical (tais como densidades, alturas, intensidades, as próprias durações, os timbres): uma obra pode ser direcional ou adirecional. Será direcional quando atrair o ouvinte a um tipo de escuta no qual este possa perceber a transformação de um estado acústico a outro, seja num determinado aspecto (fenômeno) sonoro, seja na combinação de algum destes (ao menos algum parâmetro, no entanto, não deverá transformar-se a fim de se evitar um acumulo negativo de informação).” (Menezes 2002: 30)
A técnica, e a atividade de compor ou escutar, colocam a música sob um
terreno genericamente descrito como um mover do ouvinte, a atividade de estarmos
sendo movidos é tida como música, e a atividade de compor tais ordens, de musical.
Neste jogo restrito entre músicos e ouvintes a filosofia pouco participa, não
encontramos nos trabalhos teóricos da antiguidade o que seja a condição de
possibilidade ou a causa última dos fenômenos acústicos se destacarem como
musicais. Embora notemos uma adição progressiva de técnicas pela história, Porém,
felizmente para nós, os trabalhos não correram sempre neste sentido.
A primeira obra que parece confluir para si exigências filosóficas em conjunto
com a prática musical é sem sombra de dúvida Do belo musical de Eduard Hanslick. Hanslick foi capaz de aliar a definição técnico/musical a uma inquirição a respeito do
interpor neste processo uma poética a priori, mas entendendo que uma poética conjuga ou deriva de uma compreensibilidade dada na técnica de composição.
Mas, se os movimentos percebidos na escuta são qualidades e quantidades
agrupadas em uma percepção acumulativa, o que seria expresso por este objeto, o que
estes ‘direcionamentos’ vêem a expressar?
É justamente esta questão, que vinha sendo respondida de antemão, que faz de
Hanslick um genuíno filósofo da música, colocando-se socraticamente ante ao que
vinha facilmente respondido: ‘o que é música?’
Sua resposta à questão é tão inovadora quanto pouco esclarecedora. Parece
abrir um campo, uma perspectiva, ao invés de resolutamente responder: “Se se
perguntar o que se há-de expressar com este material sonoro, a resposta reza assim:
idéias musicais.” (Hanslick 2002:41)
Se por um lado a música é uma percepção e entendimento (Hanslick 2002:16)
de qualidades e quantidades sonoras, por outro ela é uma compreensão destes
elementos que expressa um sentido próprio. Assim como um pensamento, estabelece
argumentos e julga aqueles adequados, corretos e falsos.
Mas uma idéia musical trazida inteiramente à manifestação é já um belo autônomo, é fim em si mesmo, e de nenhum modo apenas meio ou material para a representação de sentimentos e pensamentos, embora possa possuir em alto grau aquela sugestividade simbólica, reflectora das grandes leis cósmicas, com que deparamos em todo o belo artístico. (Hanslick 2002:41,42)
Tal ponto de vista abriu, retrospectivamente, perspectivas que se tornaram
lugar comum da cultura musical atual, que deram ainda lugar para a música concreta e
eletrônica [elektronische].
Se já estamos a falar de entendimento e pensamento em âmbito musical,
estamos aludindo a pontos de vista possibilitados pela filosofia, pois que a experiência
musical tradicional é pré-filosófica.
Contudo, nosso trabalho busca um correlato epistemológico para esta
experiência pré-filosófica. Hanslick nos dá o caminho, mas ele mesmo não possui
uma epistemologia formalizada, portanto, não por acaso, este correlato será buscado
na filosofia kantiana. Marques (2010b) nos fornece uma ponte inicial ao introduzir
uma crítica da primazia da visão sobre a constituição de objetos, mostrando que tal
Mas aqui convém, antes de tudo, ficar alerta contra os caprichos de nossa linguagem. Pois embora se diga normalmente que vemos objetos, e não que vemos apenas a luz emitida por objetos, ou que vemos apenas sensações luminosas, não é tão comum dizer que ouvimos objetos, preferindo-se dizer que ouvimos os sons produzidos pelos objetos. Um pouco de reflexão basta, porém, para mostrar que essa predileção da linguagem não tem qualquer base sólida, e que a visão não tem prerrogativas especiais quanto a fornecer-nos um acesso aos objetos de nossa experiência como de resto o Bispo Berkeley já observara 300 anos atrás. (Marques 2010(b):139)
Concordando com Marques, e por decorrência com Berkeley, vemos que é
mais do que razoável que tratemos da representação auditiva com a mesma
disponibilidade com que tratamos as visuais. Buscando, neste caso, um correlato de
ordem lógica e epistemológica, entre o modelo kantiano e o processo de escuta da
música instrumental clássica.
Trata-se de equacionar dois âmbitos. De um lado experiências que podem ser
comprovadas faticamente, no caso, a escuta musical instrumental clássica, e de outro
lado um discurso de ordem epistemológica, no caso, o modelo da filosofia
transcendental kantiana. Este tipo de empreendimento, segundo a perspectiva de
Dieter Heinrich, fez parte da própria metodologia kantiana. O método da dedução
transcendental partiria igualmente de um componente não teórico da experiência, um
fato, que é posto sob júri a se aplicar um julgamento, análise, dedução, etc. Do mesmo
modo, faremos circunscrever uma experiência musical, dada de modo fático, e
buscaremos traduzi-la em um conceito de objeto que se adeque a um argumento
transcendental, e então aplicar um julgamento sobre sua forma lógica.
A dedução não é definida como cadeia de silogismos, mas, tal como uma peça jurídica, sua "prova" consiste na referência a um fato legitimador. Com efeito, elucida Heinrich, se hoje chamamos de "dedução" apenas uma cadeia de silogismos (nesse sentido tendemos a interpretar a dedução de Kant), no século XVIII "dedução" era o nome de um instrumento jurídico, no qual a "prova" partia de um "fato". (Klotz 2007:146)
Eduard Hanslick e o projeto de uma epistemologia da música.
percepção em um jogo musical. Esta ligação essencial entre a técnica composicional e
as categorias de escuta faz incluir em seu sistema uma perspectiva epistemológica
crítica, elenca assim uma verdadeira condição de possibilidade para a percepção
musical.
Entendemos que a obra de Hanslick fez colidir dois princípios de diferentes
trabalhos do século XVIII, que por motivos historicamente contingentes não se
identificaram imediatamente, seriam estes a filosofia crítica de Kant e a música
clássica instrumental. A estética de Hanslick inclui um discurso acerca do musical
enquanto lança mão de estratégias lógicas, e promove assim um aprofundamento
epistemológico no interior de uma estética, a estética musical, que passa a ser a partir
do projeto de Hanslick uma estética voltada para o objeto e seu modo de
conhecimento. Houve claramente uma recuperação do âmbito geral da aisthesis, ou seja, de uma filosofia da percepção, que contudo almeja promover um enlace entre o
âmbito dos sentidos e sensações, com a significação do entendimento, através das
categorias lógicas.
De modo geral, não tratamos de examinar o que venha a ser uma
característica geral das artes extraído do exemplo musical, mas diferente, examinar
um modelo de conhecimento pautado no discurso musical autônomo. Estamos ao fim
somando esforços a tratar do diagnóstico feito por Hanslick: “ [...] mas a arte sonora
ainda não soube apropriar-se deste ponto de vista científico e, na sua estética, ficou
para trás das restantes artes.” (Hanslick 2002:14)
O fundamento epistemológico através de Kant: juízo determinante ou juízo
reflexivo?
A posse, circulação e transferência de conhecimento é algo comum a uma cultura.
Para Kant, tal atividade intersubjetiva ocorre em comum acordo, pois há algum
fundamento comum entre os homens acerca de um juízo de conhecimento. Tal
fundamento mínimo de intercomunicação pode ser encontrado no juízo estético, e este
é o fundamento mesmo do sensus communis (CFJ: §40). Do ponto de vista lógico tal senso está garantido no ato de recognição. No caso estético, consegue-se este
juízo e constituindo-se apenas como um pensar alargado.
A divisão destes juízos visava delimitar fatos e costumes de uma cultura já
bastante influenciada pela ciência moderna. Vale ressaltar que os conceitos, sobretudo
o de recognição, que aludimos para ilustrar o juízo determinante, foram cunhados não
em um mero sentido de reprodução do meio cultural antecedente, mas interessado em
processos novos que adentravam na vida social e intelectual ocidentais3. Trata-se de
um modelo emergente e podemos agora dizer, um modelo que se tornou
paradigmático para uma era que ainda discutimos seu fim.
O universo musical não ficou alheio a estas mudanças. Uma mudança análoga
ocorre quando da normatização da música tonal, ancorando-se em um modelo de
composição que, demonstraremos, recorre amplamente a artifícios que podemos
compreender como pertencente a um paradigma da recognição4.
Mesmo a perspectiva não recognitiva do juízo reflexivo vem somar em
complexidade a ação deste novo tipo de consciência preconizada por Kant. Contudo,
os discursos acerca do conhecimento possuem uma dinâmica muito volátil, e se o
juízo reflexivo não ocupa o mesmo número de páginas que o determinante, veremos
que após poucas gerações da recepção kantiana, esta configuração se alterará.
Contudo, nos deteremos ainda ao modo mesmo como Kant distribui estes juízos.
O termo recognição compreende a ação de subsumir uma intuição a um
conceito, ou seja, o papel do entendimento (CRP A 97). A recognição não seria
possível no juízo reflexionante pois este se identifica, segundo Rego (2005), com a
própria potência da faculdade de julgar em sua atribuição autônoma, sem ser
subsumida pelo entendimento, mas buscando uma regra por si só. Kant define
sucintamente estes juízos:
A faculdade do juízo em geral é a faculdade de pensar o particular como contido no universal. No caso de este (a regra, o princípio, a lei) ser dado, a faculdade do juízo, que nele subsume o particular é determinante (o mesmo acontece se ela, enquanto faculdade de juízo transcendental, indica a priori as condições de acordo com as quais apenas naquele universal é possível subsumir). Porém, se só o particular for dado, para o qual ela deve encontrar o universal, então a faculdade do juízo é simplesmente reflexiva. (CFJ: XXVI)
3 “As revoluções políticas iniciam-se com um sentimento crescente, com freqüência restrito a
um segmento da comunidade política, de que as instituições existentes deixaram de responder adequadamente aos problemas postos por um meio que ajudaram em parte a criar. De forma muito semelhante às revoluções científicas iniciam-se [...]” (Kuhn 2006:125,126)
4
É intrigante que o juízo tenha como função subsumir, ao mesmo tempo que
em seu modo reflexionante não contemple necessariamente esta função. Rego (2005)
pensa que o juízo reflexionante subsume uma lei que ele dá a si mesmo, sanando
assim a condição do juízo em subsumir. E pensa que tal modo de julgamento antecede
mesmo qualquer modo determinante, pois que se dirige diretamente ao intuído, a fim
de formatar um conceito onde não se sabe de antemão sua lei: “O conhecimento das leis empíricas da natureza depende, num certo sentido, funda-se, num certo sentido, no ato reflexionante, e, portanto, no seu princípio judicativo.” (Rego 2005:225)
O sentido destacado por Rego não contempla o juízo aplicado à obra de arte de
modo direto. Dirige-se ao juízo de uma maneira bastante genérica, onde uma função
reflexiva ou determinante ainda não se destacam. Porém aludimos ao fato de que Kant
é sempre taxativo quanto ao papel diferenciado entre juízo reflexionante e
determinante:
Numa crítica da faculdade do juízo, a parte que contém a faculdade do juízo estética é aquela que lhe é essencial, porque apenas esta contém um princípio que a faculdade do juízo coloca inteiramente a priori na sua reflexão sobre a natureza, a saber, o princípio de uma conformidade a fins formal da natureza segundo suas leis particulares (empíricas) para a nossa faculdade de conhecimento, conformidade sem a qual o entendimento não se orientaria naquelas. (CJ, Int. VIII, p. 268 apud Rego 2005: nota pé de página n. 8)
Contudo se observamos a tese de Lyotard veremos que bibliografias como a de
Rego não configuram interpretações isoladas: "A reflexão é o laboratório subjetivo de
todas as objetividades" (Lyotard 1993).
Não seguimos em busca deste tipo de interpretação. O destaque dado ao juízo
da beleza e do sublime na primeira seção (Crítica da faculdade de juízo estética) não parece conferir nenhuma primazia ao juízo reflexionante. Não existe nenhuma
passagem em toda a seção que confirme esta posição como sendo a de Kant, muito
pelo contrário, juízos reflexionantes puros se distinguem dos determinantes de modo a
excluírem a própria esfera lógica.
E mesmo admitindo que para Kant o juízo reflexivo, sobretudo o juízo da
beleza, acaba por revelar uma ação autônoma da faculdade do juízo, antes que este
pudesse se misturar com dados conceituais, como no caso do juízo teleológico ou
de gosto não passa a ser fundamento nem a participar dos juízos determinantes.
Dado que iremos investigar a relação e possível aplicação entre a primeira
Crítica e objetos musicais, não nos preocupa o fato das obras de Kant, e sobretudo a
primeira e terceira Críticas perfaçam ou não um sistema interligado. Não faz parte de
nosso objetivo costurar qualquer ponte que unifique, corrija ou aperfeiçoe os obras
kantianas. Tais questões são de interesse para o estrito estudioso de Kant.
Dedicamos-nos a um modelo que cumpra somente com as exigências do material musical em
questão, contemplados nos tratados, obras e escutas musicais em questão.
Aspectos lógicos em uma análise musical
O aspecto lógico que destacamos é aquele pertinente à lógica kantiana e portanto um
contexto epistemológico a que damos o nome de modelo recognitivo. De acordo com
Deleuze o modelo recognitivo:
[…] se define pelo exercício concordante de todas as faculdades sobre um objeto suposto como sendo o mesmo: é o mesmo objeto que pode ser visto, tocado, lembrado, imaginado, concebido [...] (Deleuze 1988: 221).
É este tipo de unidade conceitual do objeto que será aplicado sobre a análise
de um objeto musical. A função recognitiva, a subsunção e a identidade regrada,
tornam-se condição de escuta, onde são subsumidos o campo harmônico, o tema e
desenvolvimentos, sintetizando um objeto musical único e identificável sob variáveis
situações.
Esta função recognitiva aplicada à atividade musical instrumental tonal foi,
sobretudo, fruto de um intrincado complexo de técnicas, teorias e teses acerca da
escuta, da composição e execução musical. Podemos dizer que é o resultado e
acúmulo do tratado de Rameau de 1722, onde estabelece as bases da tonalidade e das
funções dos acordes, de Haydn e suas estratégias composicionais de núcleo temático e
formalização na aplicação do tonalismo, e enfim, da lógica axiomatizada da
percepção das funções tonais proposto por Riemann. Certamente muitos outros
personagens os quais não temos nem acesso ou conhecimento foram igualmente
influentes, porém, aqueles que enumeramos foram sem dúvida responsáveis diretos
pela definição do que ficou conhecido como música instrumental pura.
diversas áreas da cultura européia do período, no tonalismo podemos traçar com
precisão teórica e prática como um modelo epistemológico deu condição à
emergência de uma escuta, que contou com vários parâmetros inéditos, e ao mesmo
tempo propondo um modelo teórico universal para esta escuta.
Tendo em vista este meio cultural e as próprias técnicas do período, analisar os
processos de um juízo determinante refletidos na prática musical parece ser bastante
insuspeito, e pode revelar uma porta de interpretação útil ao fenômeno musical, e, ao
modo como este evolui pelos séculos adiante.
É certo que o momento de sublevação de uma música pura coincidiu com um
projeto maior, ilumunista, e foi parte decisiva dele. Hanslick não é exceção: “Esta
orientação objetiva não podia deixar de bem depressa se comunicar à pesquisa do
belo.” (Hanslick 2002:13). Seu projeto dissolve certas normas que indispunham a relação entre o lógico e o estético, e assim distingue, em proveito do papel do
entendimento, sentimento de sensação. O exame musical, além de prescindir do
sentimento para sua determinação, não necessita que ele seja compreendido fora de
um horizonte do entendimento.
Diante do belo, a fantasia não é apenas um contemplar, mas um contemplar com entendimento, i.e., um representar e um julgar, este último decerto com tal rapidez que os processos individuais não nos chegam à consciência e surge a ilusão de que acontece imediatamente o que, na verdade, depende de múltiplos processos espirituais mediatos. (Hanslick 2002:16)
Além de rejeitar a relação de contraditoriedade entre estética e lógica,
estabelece intercessões entre entendimento e sentimento no nível da experiência
musical, e da experiência como um todo.
Os sentimentos não existem isolados na alma de modo que se possam, por assim dizer, salientar por meio de uma arte à qual está oclusa a representação das demais actividades espirituais. Pelo contrario, dependem de pressupostos fisiológicos e patológicos, são condicionados por representações, juízos, em suma, por todo o campo do pensar intelectual e racional, a que se contrapõe de tão bom grado o sentimento como algo de antitético. (Hanslick 2002:24)
Contudo, Hanslick não adentra nas especificidades das determinações lógicas
Considerações finais a respeito da guinada de um domínio lógico para a análise
de uma experiência musical.
O tema parece amplo e pleno de ramificações, mas de início trata-se de equacionar
uma série de fatos concernentes à percepção musical sob exigências filosóficas. Para
estreitar o leque da pesquisa situamos nosso objeto musical em um período específico,
o período tonal, que em grande parcela coincide com a música clássica e romântica do
século XVIII e XIX, e nele mais especificamente o período clássico.
Notamos que a partir da ascensão da música tonal no século XVIII o discurso
musical veio sofrendo grandes modificações. Mas se nos atemos à produção
instrumental e seu papel fundante de um discurso autônomo, vemos que a relação
entre conhecimento e música passa a ter um papel preponderante nesta tradição, e
notamos mesmo que desde este marco da música instrumental clássica o assunto
parece cada vez mais proeminente.
A transposição do ritornello por tonalidades [key] diferentes, e desenvolvimentos modulatórios nos episódios entre as áreas tonais [key] estáveis do ritornello, produz um arcabouço [scaffolding] formal harmonicamente baseado: um arcabouço que permite a comparação entre a música e a arquitetura, que se tornou um lugar-comum, parecer plausível. Por outro lado, partes do tema podem ser isolados, variados, ou reagrupados, de modo que emergem os princípios do processo que mais tarde, enquanto trabalho temático-motívico em Haydn e Beethoven, tornou-se a epítome da lógica musical discursiva. E a diferença entre a exposição temática ou recapitulação e o trabalho motívico está intimamente relacionado com a fundação tonal da forma, porque fechamentos temáticas e tonais estão relacionados um com o outro da mesma maneira como o desenvolvimento motívico e modulatório. (Dahlhaus 1989:108)
"Toda a música pura", escreveu Friedrich Schlegel em algum momento entre 1797 e 1801, deve ser filosófica e instrumental (música para o pensamento). (Dahlhaus 1989:107)
Em resumo, aquilo o que seja a beleza de uma obra musical específica parece
conter muito mais do que um mero sentimento de agrado, ou mesmo um sentimento
de beleza, ou de sociabilidade. A escuta caminhou de modo a abarcar mais do que
sensações e sentimentos, e ainda mais sutilezas entre eles, em caracteres, juízos e
Do projeto da dissertação enquanto uma correspondência entre a música instrumental clássica e o modelo de conhecimento kantiano, e não um estudo acerca do comentário de Kant a respeito da arte musical.
Em um sentido bastante diferente de nosso intuito e a partir de chaves interpretativas
igualmente diferente, Kant esboçara uma compreensão do fenômeno musical a partir
da estrutura que se revelava em sua terceira Crítica, e que por isto, não incluía uma
atividade lógica estrita do entendimento.
Sua avaliação da arte musical corre conjuntamente com avaliações
comparativas às demais artes, em um pequeno debate sobre a produção da cultura em
geral, tudo, de início, em um tom bastante especulativo. Em uma nota de rodapé
humildemente inicia sua incursão na interpretação dos fenômenos artísticos:
O leitor não ajuizará este projeto de uma possível divisão das belas artes como teoria proposital. Trata-se apenas de uma das muitas tentativas que ainda se podem e devem empreender. (CFJ: 204 [nota de rodapé])
A música enquanto uma arte bela
A recepção da Crítica da Faculdade do Juízo por parte da crítica musical não foi muito favorável. Podemos citar ente outros, Triest, em seu empenho de incluir a
música no conjunto das belas artes, sobretudo a música instrumental. Assim nos diz
Mario Videira, em seu artigo A recepção da crítica do juízo na literatura musical do início do século XIX (Videira 2010). As correções e críticas ao trabalho de Kant não se reduzem a Triest. Michaelis chega a afirmar que a música, por ser mais afeita ao
trabalho livre da imaginação, por estar desligada da imitação e da conceitualidade, é
por isto a arte mais original e mais ideal de todas (Marques 2010:200).
Dado que os comentários empreendidos, sobretudo na terceira Crítica, vêm
sendo alvo de constantes críticas ou correções tomamos o caminho inverso ao de
elucidar os argumentos de nosso filósofo. Iniciaremos com a avaliação mais drástica
Kant. A avaliação que recorremos é de Wheterston e nosso processo visa ir
decantando seu comentário pelos demais comentadores. Wheterston assim avalia as
especulações de Kant acerca do musical:
Sua análise se move inicialmente de uma análise transcendental para uma concepção de música que se torna cada vez mais pessoal e implausível. (Wheterston 1996:63)
De uma postura inicialmente tão humilde de Kant, para uma assertiva tão
drástica quanto esta muito há o que se considerar.
O método kantiano de aproximação das artes individuais dá-se através de
uma espécie de hierarquização das artes. As artes mais elevadas seriam aquelas que
compõem o seleto grupo das belas artes:
Pois em toda arte bela o essencial consiste na forma que convém à observação e ao ajuizamento e cujo prazer é ao mesmo tempo cultura e dispõe o espírito, para idéias, por conseguinte o torna receptivo a prazeres e entretenimentos diversos; não consiste na matéria da sensação (no atrativo ou na comoção), disposta apenas para o gozo [...] (CFJ:171)
Estão aqui resumidas todas as características que fazem a arte bela ser
considerada um campo nobre da atividade humana. Resta-nos ver onde a música se
encaixa nesta descrição. Nos casos da poesia recitada ou musicada, da ópera, do balé
e do teatro musicado, a música serve de suporte, e somente nestes casos é considerada
uma arte bela. Averigüemos então o exame mais minucioso que Kant promove sobre
as artes em separado.
Estas se dispõem, quão mais elevadas, mais aptas às idéias estéticas:
Aquela representação da faculdade da imaginação que dá muito a pensar, sem que contudo qualquer pensamento determinado, isto é, conceito, possa ser-lhe adequado, que consequentemente nenhuma linguagem alcança inteiramente nem pode tornar compreensível (CFJ: 192,193).
Tal princípio de hierarquização concede à poesia a primeira posição. Posição
esta reivindicada por Michaelis, à música:
determinada, através de conceitos, enquanto lá [na música], a liberdade permanece, para acrescentar um conteúdo [Inhalt] para a mera forma da sensação. (Michaelis apud Marques 2010:199)
Acontece que Kant não está tomando tão somente o critério da liberdade
promovida pela aconceitualidade. O componente essencial para esta classificação
residiria na capacidade de uma arte sediar um máximo de idéias estéticas:
[...] a idéia estética é uma representação da faculdade da imaginação associada a um conceito dado, a qual se liga a uma tal multiplicidade de representações parciais, no uso livre das mesmas [...] portanto, permite pensar de um conceito muita coisa inexprimível. (CFJ:197).
Assim fica implícito ao conceito de idéia estética, e este ao conceito da arte
bela, que é necessário certa aderência (CFJ:§16)para o juízo estético produzir aquela beleza capaz de sociabilidade e cultura. Ou seja, a hierarquia das artes é
ascendentemente marcada pela pertença de idéias estéticas, sociabilidade (CFJ:§60) e
aderência.
Wheterston indica que há uma estratégia no uso da idéia estética ligada a
aderência do objeto, na classificação da arte bela. O intuito seria incutir ideias morais
nesta experiência. Tal investigação excede nosso escopo, porém pode ser uma boa
explicação o incremento de certa aderência para dar ao juízo reflexivo uma matéria
que “dê o que pensar”, e enfim comparar a característica inexponível da idéia estética
com a indemonstrabilidade da idéia da razão:
Se conectarmos uma idéia estética a uma idéia da razão, a inexponibilidade [unboundedness] da idéia estética age como um símbolo para a indemonstrabilidade [unboundedness] de uma ideia da razão e, portanto, nossa capacidade racional é animada por este aspecto aparente do racional na experiência sensorial [§49 (314-15)].(Wheterston 1996:58)5
Não está explícito de que modo Kant vincula a idéia estética com a aderência,
pois há uma diferença no modo como a idéia estética, enquanto ato de uma
imaginação produtiva, se apropria do entendimento a ‘dar o que pensar’ sendo
igualmente inexponível, e, a apropriação feita pela aderência, que exige e “[...]
5 O autor usa originalmente o termo unboundedness para adjetivas tanto a idéia estética quanto
pressupõe um tal conceito e a perfeição do objeto segundo o mesmo.” (CFJ:48)
Porém, tais sutis distinções não parecem incomodar Kant. Mais propriamente
importa a esta hierarquia a observância da capacidade de instigar-nos idéias estéticas,
a sociabilidade, e a promoção da cultura de modo geral.
Assim é com o caso da pintura que inegavelmente se insere nos moldes da arte
bela. E sua diferença para com a arte musical consiste no fato dela, a pintura, se
caracterizar como uma arte que parte de idéias determinadas (CFJ:221) rumo às
sensações. O fato dos objetos presentes em uma pintura encerrarem conceitos segundo
uma perfeição do objeto é para Kant uma vantagem e não desvantagem, como uma
leitura superficial poderia corroborar. Fica assim estabelecido que a aderência, em
uma quantidade tolerável é quem permite este trânsito da bela arte pela sociabilidade
a favor das ideias estéticas.
Resta então averiguar se a música conteria estas exigências, de uma porção
conceitual e sociabilidade, para a composição desta cultura que a arte promove. O
quesito sociabilidade é, segundo a avaliação de Kant, a maior fraqueza da música. A
música parece conter a pior das indiscrições, sendo incapaz de se conter a um espaço
só, perturbando assim a liberdade alheia e sendo avesso a um bom espírito de
urbanidade. Contudo Rodrigo Duarte nos informa que Kant retroage desta postura
bastante ‘mal-humorada’ na Antropologia (Duarte 2010:290).
No quesito cultura, a música, diferente da pintura, seria incapaz de produzir
uma “impressão permanente” (CFJ:221), sendo esta sempre transitória e
impossibilitando o trato cultural.
Independente de meios de registro sonoro do fenômeno musical, Kant se
refere à própria percepção musical em seu estado temporal. Para Kant um caráter
duradouro e estável é essencial na promoção da unificação entre entendimento e
sensibilidade. Ou seja, o caráter estável do quadro a que a pintura se inscreve permite
um contexto mais educativo das faculdades. Ao passo que na música, não haveria,
digamos assim, uma consistência inerente à sua forma de apresentação, que nos
dispusesse a uma apreciação frutífera6. A solução a uma transitoriedade realmente
inerente à música produziu diversas estratégias, mas destaquemos o uso do ritornello
a partir do barroco, ampliado nas formas clássicas. Porém este recurso é igualmente
criticado por Kant que considera a repetição em uma obra musical, ou mesmo sua
6
reprodução possibilitada pela fantasia, como recurso que somente produziria
sensações enfadonhas (CFJ:221).
Resta senão avaliarmos a posição kantiana sobre a aconceitualidade da
música. Kant está muito atento a esta questão, pois, embora desconsidere qualquer
caráter cultural que a música possa propiciar, caso assuma que há conceitualidade na
escuta musical então ele terá que abrir uma porta à possibilidade dela suscitar idéias
estéticas e maior valor cultural, pois seria mais aderente. De outro lado, considerando
a aconceitualidade da música, poderá abrir a possibilidade dela propiciar um juízo
estético puro, embora com isto não seja considerada uma arte bela. Mas vemos que a
argumentação kantiana desconsidera estes dois extremos, e a música instrumental
resulta esteticamente insuficiente.
A opção kantiana embora seja pela aconceitualidade, seu julgamento estético
sobre a música é um tanto problemático, ou como Rodrigo Duarte adverte, “comporta
um grau não desprezível de ambigüidade.” (Duarte 2010:286)
Também se pode computar como da mesma espécie [belezas livre] o que na música denominam-se fantasias (sem letra), e até a inteira música sem texto. (CFJ:49)
Ao fim vemos Kant creditar beleza à música. É impossível desmentir Kant
diante de uma passagem tão direta. Porém, como vimos, isto não faz da música uma
arte bela, somente uma beleza livre. Creio que a posição que Kant confere à música
fique mais clara quando a colocarmos ao lado de outros exemplos similares de belezas
livres; folhagem para molduras, desenhos àla grecque e papel de parede (CFJ:49). Como podemos ver, são todas belezas livres. Argumentar sobre a inserção do
papel de parede no Hall das grandes artes seria estranho ao senso comum, e provavelmente concordaríamos que o papel de parede ou o desenho à la grecque, depois de algumas poucas observações, produziriam igualmente enfado7. E justamente
este é o ponto de vista de Kant, bastante polêmico para qualquer músico e admirador
desta arte. Mas ele não nos deixa com esta conclusão sem algumas justificativas.
Sua justificativa foi dada de modo negativo quando das enumerações das
condições de uma arte bela. Mas de modo positivo Kant possui duas definições da
arte dos sons. Uma a que nos dedicaremos mais ao fim, pois que traz questões de
7