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CAPÍTULO I Estatuto e conteúdo do juízo estético puro

1. O juízo estético

1.1. O estatuto do juízo da beleza

1.1.3. A ligação do estatuto da beleza a um conteúdo belo

Passamos pelas descrições mais gerais do estatuto e conteúdo do juízo da beleza. Resta ainda remeter estes dados à totalidade da terceira Crítica, para podermos interpretar a totalidade da experiência descrita para este estatuto.

Para Lopes o juízo da beleza cumpriria um propósito sistemático kantiano. Em sua interpretação o assentimento do juízo da beleza emergiria a partir de uma série de postulações aparentemente paradoxais, pois se trataria na verdade de uma região onde razão e entendimento se conciliariam na produção de um fenômeno:

Para Lyotard, portanto, o senso comum estético não é mais que a harmoniosa proporção entre entendimento e imaginação, diante do desafio de se apropriarem da forma do objeto, fonte do prazer, um jogo livre (freie Spiel) das faculdades de conhecimento, curtocircuitando as imposições do conhecimento e da moralidade (Lopes 2010:77)

Tal ponto de vista deve ser esclarecido. O termo ‘curtocircuito’ quer fazer referência a dois domínios, ao da razão, enquanto faculdade da moralidade e ao entendimento enquanto faculdade do conhecimento. No texto kantiano o grande impasse vivido pelo juízo estético puro se encontra no livre jogo entre imaginação e entendimento. As discussões acerca do parágrafo §59 Da beleza como símbolo da

moralidade com freqüência se esquecem que o simbólico neste parágrafo trava uma

relação de analogia (CFJ:257). Neste caso a moralidade não se estabelece como um conteúdo do juízo de gosto, mas apenas como Kant mesmo diz, a beleza pode servir analogamente como símbolo da moralidade, visto que esta é uma idéia da razão a qual carece de uma intuição correspondente:

A consideração desta analogia é também habitual ao entendimento comum; e nós frequentemente damos a objetos belos da natureza ou da arte nomes que parecem pôr como fundamento um ajuizamento moral. Chamamos edifícios ou árvores de majestosos ou suntuosos, ou campos de risonhos e alegres, mesmo cores são chamadas de inocentes, modestas, ternas, porque elas suscitam sensações que contem algo analógico à consciência de um estado de ânimo produzido por juízos morais. (CFJ: 260)

A analogia, necessitando sempre de um modelo de comparação determinado (árvores e edifícios), no caso de tomar como modelo a beleza, dispõe apenas da forma deste juízo a servir de símbolo para a moralidade. O próprio Lyotard, a quem Lopes recorre para legitimar sua fala, ainda nos diz:

[...] o julgamento estético manifesta a reflexão no seu estado mais “autônomo”, mais nu se se pode assim dizer. (Lyotard 1993:14)

É a relação destas entre si que, enfim, confere ao gosto a autoridade de pretender a universalidade [...] Pretensão inteiramente subjetiva, é certo, mas universal, posto que o jogo do entendimento e da imaginação a propósito da forma do objeto basta, “sem consideração de nenhum conceito, ohne

Rücksicht auf einen Begriff” (37 t.m; 22) para suscitar no pensamento o

prazer que lhe dá, em geral, a conveniência entre essas duas faculdades de conhecer [37; 28-29]. (Lyotard 1993:12)

Não faz parte da essência do juízo da beleza conter qualquer analogia. Esta pode ser traçada como uma possibilidade e não como uma marca própria de seu estatuto ou conteúdo. Detendo-nos nesta questão vemos que as distinções que Kant faz entre o juízo moral e estético são inúmeras, e superam mesmo o número de elementos comuns para a analogia. Vejamos um exemplo no parágrafo §59:

3) A liberdade da faculdade da imaginação (portanto, da sensibilidade de nossa faculdade) é representada no ajuizamento do belo como concordante com a legalidade do entendimento (no juízo moral a liberdade da vontade é pensada como concordância da vontade consigo própria segundo leis universais da razão). (CFJ: 259)

Torna-se essencial entender a legalidade da operação analógica. Em termos lógicos é controverso que a relação A está para B, assim como C está para D, expresse alguma verdade. Segundo o próprio Kant: “No caso da inferência segundo a analogia, entretanto, não se exige a identidade do fundamento (por ratio). (Lógica: A 208). A inferência para ser minimamente válida exigiria que as espécies comparadas residissem sobre um mesmo gênero (CFJ: 449 [pé de página]), para que alguma

conseqüência sobreviesse da analogia. Manter tal equalização requer bastante cuidado, em virtude da limitação que a analogia confere sobre a conseqüência dos análogos.

Eu sou capaz de pensar a comunidade dos membros de uma coletividade, segundo as regras do Direito, segundo a analogia com a lei da igualdade de ação e reação [Wirkung und Gegenwirkung] na atração e repulsão recíproca dos corpos entre si, mas não de transpor aquela determinação específica (a atração material ou a repulsão) para estes a atribuí-la aos cidadãos, para constituir um sistema que se chama Estado. (CFJ:450)

Para o caso da analogia com o juízo moral se passa o mesmo, e o mesmo se coloca no artigo de Romero Freitas (1998), onde pensa uma analogia entre o juízo da beleza e o do conhecimento a partir da expressão “como se”22 empregada por Kant.

Não nos parece coerente com a filosofia kantiana querer definir o conteúdo da beleza enquanto simbólico. Interpretemos uma passagem de Verlaine Freitas (apud Duarte:1998), que toma o belo como símbolo sem problematizá-lo no sentido em que fazemos:

O belo é uma apresentação simbólica do moralmente bom, em segundo lugar, por ser precisamente uma apresentação intuitiva deste, ou seja, a operação da mente que admite uma vontade sobre-humana é realizada na contemplação de formas dadas aos sentidos. (Freitas, V. 1998:98) artigo de livro

Se admitirmos, ao pé da letra, que o belo ‘é’ uma apresentação simbólica, perdemos de vista toda a autonomia alcançada pelo juízo estético. Se contarmos com as ressalvas de Kant, ao longo do parágrafo §59, sobre o uso, princípio e limite da analogia, a confusão de que a analogia seria um elemento do estatuto do juízo estético estaria facilmente desfeita.

Kant nos diz que a analogia só pode dizer respeito à “[...] forma da reflexão, não do conteúdo.” (CFJ:255). Mais a frente nos diz: “queremos mostrar alguns elementos desta analogia, sem ao mesmo tempo deixar de observar sua diferença.” (CFJ:259). Ao fim do parágrafo pontua sua fala:

O gosto torna, por assim dizer, possível a passagem do atrativo dos sentidos ao interesse moral habitual sem um salto demasiado violento; na medida em que ele representa a faculdade da imaginação como determinável também em sua liberdade conforme a fins para o entendimento e ensina a encontrar uma complacência livre, mesmo em objetos dos sentidos e sem um atrativo dos sentidos [grifo nosso]. (CFJ: 260)

22 “[...] ele falará pois, do belo como se a beleza fosse uma qualidade do objeto e o juízo fosse

Dada estas considerações não é possível incluir qualquer valor moral ao conteúdo do juízo estético puro, mas é possível através da analogia conferir ao juízo da beleza uma transposição de sua função habitual para ocupar o lugar de símbolo de um outro processo.

E fiquemos com a recomendação de Lyotard sobre a pressa em se identificar o belo ao bom: “arcaico argumento, arcaico para o pensamento ocidental, segundo o qual do belo ao bem a conseqüência é boa e que bem sentido far-se-á bem. Mais até: fazendo sentir o belo, far-se-á bem. [...] ocultar-se-ia a diferença estética, obscurecer- se-ia um território, o das formas belas, e um desafio, o prazer puro que elas proporcionam [...]” (Lyotard 1993:156).

Não há na exibição simbólica do moralmente bom qualquer violação de legalidades pois o próprio processo não implica uma ligação da quantidade do conceito. A beleza enquanto símbolo do moral predica uma possibilidade de inferência, que contudo não é essencial para a definição de nenhum dos dois juízos.

Compreendendo que todo juízo encerra uma relação a fins, acrescentaríamos que há um percurso ‘apropriado’ a cada juízo para que possa se realizar. Esta realização se vincula à estrutura geral da Gemüt (CRP: B102,103), e é esta vinculação precisa que queremos encontrar para o caso do juízo da beleza.

Porém até aqui só fizemos mostrar como o juízo da beleza não é ele mesmo uma exibição simbólica, e ainda não definimos seu tipo próprio de exibição. Neste sentido o juízo da beleza poderia ser entendido como uma ‘feliz insuficiência’ do entendimento, a dar lugar a uma liberdade reflexionante, prazerosa, que por sua vez é um ambiente lógico propício a idéias estéticas.

[...] ou, no segundo caso, somente com uma concordância final e sem fim – que se sobressai espontânea e acidentalmente – com a necessidade da faculdade do juízo, relativamente à natureza e às suas formas produzidas segundo leis particulares. (CFJ: 247)

Ainda no parágrafo §58 uma nova questão entra em cena, Kant se pergunta acerca do paradigma a que o modelo geral do juízo estético se organizaria, se racionalista ou idealista. Como o título do capítulo já demonstra, Kant opta pelo princípio idealista para o juízo estético. Sendo que seu estatuto é fruto de um ocaso, ‘espontânea e acidentalmente’ desviado da determinação do entendimento. Seria o caso do próprio Kant compreender nosso aparato cognitivo geral enquanto construto

movido para um uso lógico mas que por uma feliz espontaneidade e acidente, possibilitam uma experiência em outro sentido.

Esta passagem de uma estrutura determinante que acaba desembocando em um juízo reflexivo não está descrita como uma voluntariedade, e nem como uma necessidade da forma do objeto.

Vamos aproveitar de uma imagem do próprio Kant para ilustrar a possibilidade, em nível epistemológico, de uma espontânea e acidental passagem do lógico para o estético. Não sendo possível estabelecer uma contigüidade entre estes dois estatutos (lógico e estético), estando ambos tão diametralmente opostos, se faz necessário alguma mudança direcional no interior do esquematismo, que venha a qualificar o estético ou o lógico. Ilustramos esta possibilidade como uma operação quântica23:

O exemplo mais comum desta espécie de formação é a água que se congela, na qual se produzem primeiro pequenas agulhas retas de gelo, que se juntam em ângulos de 60 graus, enquanto outras igualmente se fixam a elas em cada ponto até que tudo se tenha tornado gelo; assim que durante esse período a água entre as agulhas de gelo não se torne progressivamente mais resistente, mas esteja tão completamente liquida como o estaria durante um calor muito maior e contudo possua o frio inteiro do gelo. A matéria que se separa e escapa rapidamente no instante da solidificação é um quantum considerável de matéria calórica, cuja perda, pelo fato de que ela era requerida meramente para a fluidez, não deixa este gelo atual minimamente mais frio do que a água pouco antes líquida. (CFJ: 249,250)

Se súbita, quântica ou acidental, cabe a outros trabalhos avaliar em que medida o próprio Kant pesaria tal relação entre lógica e estética em termos tão estritos.

23

Para o caso da física quântica o termo corresponderia a um ramo da ciência que se ocupa de processos atômicos discretos (descontínuos), em virtude de uma impossibilidade de utilização de recursos clássicos da física, dado as dimensões ínfimas dos eventos medidos. No nosso caso, o pormenor atômico de um aparato epistemológico não pode ser postulado como um objeto em três dimensões no qual pudéssemos dispô-lo em nossas mãos a encontrar onde e como uma possibilidade estética e uma lógica se inscreveriam. Dado esta condição da dimensionalidade de nosso objeto de pesquisa (um modelo epistemológico), podemos apenas compreender que por motivos que desconhecemos e que Kant não se ocupa deles, a causa final da dupla possibilidade de um estado de esquematismo permanece velada, e podemos nos referenciar apenas ao salto ‘quântico’, descontínuo verificável.