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CAPÍTULO III – Análise do estatuto musical

2. A condição sine qua non da experiência musical

Para a consecução e mesmo a eleição de um modelo epistemológico para o objeto musical discutimos questões relativas ao trabalho de Kant. Nossa decisão, que já vinha influenciada por Hanslick quis mesmo assim verificar os argumentos da terceira Crítica que pudessem contribuir para o modelo geral.

Antes de analisar a interação possível entre os juízos determinantes e os reflexionantes, seria necessário que estes dissessem respeito às condições fáticas da experiência musical.

Os objetos sonoros são sintetizados aditivamente, mas não apenas aditivamente, pois que do simples colecionar de sons pela memória depreende-se conexões de segunda ordem: o fraseado, a progressão, recapitulação, modulação, variação, entre tantos outros juízos. Vimos que esta possibilidade de conexão sempre a um grau mais elevado de juízos foi possível pela coordenação nuclear das formas- motivo em conjunto com as funções tonais. Em vista deste quadro, qual seria então a precisa operação que faz distinguir a percepção do sonoro em agrupamentos que virão a ser musicais? Identificamos esta operação enquanto lógica.

Porém - voltando ao quadro dos modelos kantianos do juízo determinante e reflexionante - esta série de juízos necessários para que entremos em contato com uma experiência musical acaba por perfazer uma condição sine qua non de sua

experiência, pois caso contrário, não superaríamos o âmbito meramente sensório do som. Quando dizemos ‘isto é uma música’ já estamos assim condicionados a uma experiência específica.

Compete aos juízos referentes ao objeto musical que tenham fundamento necessário nos juízos que determinam o sujeito ‘música’ em uma experiência. Esta seria uma condição bastante óbvia para requerer lastro a juízos que tomam a música como um sujeito, tais como; ‘esta música é bela’ ou ‘esta música é um bolero’.

Uma réplica diria que Kant, contrário a esta relação entre um objeto artístico ser tomado enquanto sujeito de predicados para um ajuizamento estético, tinha o intuito de demonstrar um ato judicativo puro, não necessariamente ‘anterior’ no sentido cronológico, para qualquer determinação.

O fato do juízo da beleza se ancorar de modo a priori em uma autonomia da faculdade do juízo, possibilitaria uma predicação da beleza sem conter uma finalidade, independente da realidade do objeto em questão. Mas tal possibilidade relativizaria o parágrafo §9 da terceira Crítica e a legalidade dos horizontes lógico e estético assinalado na Lógica (2003).

Uma réplica consistente deveria manter a organicidade da analítica do belo e a hierarquia das faculdades dada na terceira Crítica, mantendo assim a precedência da sensibilidade em sua autonomia não regrada, e sua sublevação a um estado reflexivo mantendo assim a precedência do estatuto do juízo reflexivo a qualquer determinação, como caracterizado no §9. Sendo assim, uma réplica consistiria apenas em demonstrar a necessidade desta estrutura e a impossibilidade do estético vir a dizer respeito ao que se encontra determinado em um objeto.

Nossa tréplica consiste em colocar-nos numa posição privilegiada, no exato momento em que diante de um objeto (tendo em vista que não é possível estar diante de ‘nada’) um sujeito recua sob seu sentido determinante caracterizando assim um sentido estético. Neste instante, aquilo que é um diverso sensível passa a seguir uma trajetória a qual introduzimos dois questionamentos:

1) Para todo objeto de arte, que valha ser contado nesta categoria, é obra, segundo Kant, de um gênio. O Gênio seria um sujeito capaz de impregnar um objeto de uma regra, “dá a regra à arte” (CFJ:181).55 Esta regra condiciona um objeto real,

seja um quadro, uma ópera, um livro. Porém, enquanto esta obra é condição de um

55 Para o caso tonal esta regra está dada na funcionalidade harmônica e no núcleo

impulso para atingirmos o ato reflexionante do juízo, esta mesma atividade pura não conta com a obra, com o objeto ou com a regra impressa sobre ele. Kant não demonstra como um objeto é capaz de reter materialmente uma característica de impulsionar uma ação reflexionante em detrimento de sua própria constituição objetiva. Não demonstra igualmente qualquer vínculo entre uma capacidade de um objeto conter em si uma regra material que disponha nossa faculdade a um julgamento estético, e o estatuto reflexionante do juízo. Diferente disso, o objeto é abandonado tão logo o gênio tenha sido caracterizado, e não existe qualquer comentário a respeito do produto do trabalho do gênio. Apontamos para uma lacuna na argumentação, que deveria conter, entre o gênio e o juízo de gosto puro, uma explicação desta intermediação feita pelo objeto de arte, pois não é o caso da arte do século XVIII poder ser evocada sem um suporte.

2) Segue-se deste primeiro diagnóstico uma outra questão a que a teoria deva satisfazer. Se este objeto é um item necessário para a experiência estética no sentido de demandar uma atitude desinteressada, o objeto se torna uma condição imprescindível à sua própria dispensa. Concluímos que para a estrutura do juízo de gosto puro é necessário que se defina, sobre o objeto, se este contém algo que se liga à estrutura do juízo puro, ou, diferentemente, o objeto não faça parte em nenhum sentido, mas tão somente uma atitude do sujeito que muda de ‘ponto de vista’ – quanticamente - o seu juízo, a não reconhecer em um objeto uma função determinada, antes mesmo que ela possa ser dada.

Feitas estas considerações esboçamos duas opções para o juízo estético kantiano: a) que o objeto seja necessário ao juízo reflexionante, enquanto contenha algo que faça atrelar-se ao juízo estético. b) que o objeto seja desnecessário pois que o juízo estético implica apenas em uma decisão puramente subjetiva.

Além da beleza natural, apenas as obras artísticas são contempladas pelo juízo da beleza. Porém não há qualquer especificação ou determinação que explique por que a beleza recaia exclusivamente neste tipo de construção humana.

O objeto artístico, tendo a peculiaridade de ser o único objeto de produção humana a suscitar o sentimento da beleza é, pelo próprio critério da beleza, censurado em sua constituição objetiva. Assim, certa qualidade especial, esperável no objeto da arte, naquela ‘natureza impregnada pelo gênio’, não é capaz de especificar a escolha dos objetos artísticos para a promoção da beleza, assim, a escolha de uma categoria de objetos que seriam privilegiadamente belos parece mesmo arbitrária.

Atentemos que o que está em jogo é uma condição para o objeto de arte, pois, se o juízo estético for completamente autônomo então ele pode vir a ajuizar independente de haver algum objeto. Porém, como ele lança mão de uma finalidade sem fim, é certo que algum componente sensível adentrou pelo sistema do conhecimento em geral, porém, se o juízo estético puro é uma autonomia da faculdade do juízo, porque ele deve se reportar a objetos da arte, e não a qualquer diverso?

Neste item, tenciono ainda salientar como esta mudança de perspectiva reflete a necessidade de referir o fenômeno artístico a estruturas da subjetividade presentes no receptor, e não mais a propriedades intrínsecas do próprio objeto, o que se articula com o projeto maior de um pensamento eminentemente moderno, que consistiria em considerar o que se apresenta não mais como algo que é dado em si mesmo, mas na medida em que é representado pelo sujeito. (Vieira 2003:6)

É fato que o gosto possui um âmbito subjetivo e presente no sentido interno, assim como o juízo determinante lida com conceitos do sentido externo. Se houve uma guinada no interesse de aspectos subjetivos por parte dos críticos e filósofos da arte do século XVIII, é certo que Kant não se insere meramente em um contexto geral, empirista, psicologista, Kant empreende um trabalho que compreende uma envergadura superior. Não se detém na subjetividade apenas, mas traça estatutos específicos para estes ajuizamentos em um discurso epistemológico.

É necessário respondermos a algo muito mais caro do que um mero índice subjetivo implicado pela beleza, mas à própria estrutura de pensamento que Kant erige para este sentimento.

A garantia de uma autonomia para o juízo de gosto implica que este se coloque de fato autônomo, e que resolva sua legalidade em relação ao objeto de arte. E é esta problemática geral de Kant que faz com que construa um estatuto com o do juízo reflexionante estético puro, pois que se preocupa com a autonomia do sentimento da beleza e não com sua ligação a objetos de arte, e à arte como que movendo todas as nossas faculdades.

Da parte de nossa análise, ouvir uma melodia implicaria em uma série de regramentos atualizados pelo tempo, fazendo com que postulemos uma anterioridade lógica do objeto musical em relação a qualquer ajuizamento da beleza sobre este mesmo objeto. A beleza de uma música deveria, ao menos, contar antes com uma melodia prefigurada no sentido externo, onde esta melodia surja como resultado de recognições temáticas e harmônicas, ao mesmo tempo em que ajuíza uma série de

relações entre seus elementos sonoros a compor a compreensão da forma musical. É necessário, antes, que uma música se dê a entender em um padrão de compreensibilidade, ou não faria sentido dizer da beleza de uma obra musical. É neste sentido que uma condição sine qua non se mostra para a experiência musical, enquanto condição lógica para qualquer outro juízo.