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CAPÍTULO II – Estatuto do juízo determinante: a legalidade da unidade

3. O entendimento: a espontaneidade do conhecimento

3.1. A representação da faculdade do entendimento

Acompanhando Deleuze, “faculdade designa uma fonte específica de representações” (Deleuze 1994:15). O conhecimento porém, assenta em um antagonismo original:

O nosso conhecimento provém de duas fontes fundamentais do espírito, das quais a primeira consiste em receber as representações (a receptividade das impressões) e a segunda é a capacidade de receber um objecto mediante estas representações (espontaneidade dos conceitos). (CRP B 74)

...re-presentação implica uma retomada activa daquilo que se apresenta, portanto, uma actividade e uma unidade que se distinguem da passividade e da diversidade inerentes à sensibilidade como tal. Deste ponto de vista, já não temos necessidade de definir o conhecimento como uma síntese de representações. É a própria re-presentação que se define como conhecimento, isto é, como a síntese do que se apresenta. (Deleuze 1994:16)

A espontaneidade do conhecimento assenta na capacidade de síntese da apercepção com base nas regras do entendimento. A espontaneidade do entendimento se contrapõe à receptividade da sensibilidade justamente pelo caráter privilegiado do entendimento em colocar o representado diante da apercepção, através do ato judicativo. Para Deleuze neste ponto já não é necessário interpretar o termo representação (para o caso do entendimento) como mero produto de mais uma faculdade que contudo sofrerá sínteses ulteriores. Neste ponto o que se apresenta é o próprio conhecimento, ou seja, o termo ‘re-presentar’ pode ser interpretado ao pé da letra e indicar uma posição ativa, sem o risco de polissemia o conhecimento é a

própria representação, pois que ‘a síntese do que se apresenta’ (do que é apreendido).

Porém, a espontaneidade do nosso pensamento exige que este diverso seja percorrido, recebido e ligado de determinado modo para que se converta em conhecimento. A este acto dou o nome de síntese. (CRP B 102)

Todavia, reportar essa síntese a conceitos é uma função que compete ao entendimento e pela qual ele nos proporciona pela primeira vez conhecimento no sentido próprio da palavra. (CRP B 103)

Para qualquer relação sintética é necessário dois termos, o diverso da intuição e o conceito. Um terceiro termo é por certo o seu resultado, o conhecimento.

Os conceitos fundam-se, pois, sobre a espontaneidade do pensamento, tal como as intuições sensíveis sobre a receptividade das impressões. O entendimento não pode fazer outro uso destes conceitos a não ser, por seu intermédio, formular juízos. (CRP B 93)

[...] todos os corpos são divisíveis, o conceito de divisível refere-se a diversos outros conceitos; entre eles refere-se aqui, particularmente, ao conceito de corpo, e estes por sua vez, a certos fenômenos, que se apresentam a nós. (CRP B 93)

O conhecimento, tratando-se de coisa conceitual, é uma união entre o que quer que seja a categoria (conceito puro) com uma intuição correspondente. Neste caso o resultado da relação entre categoria e o diverso da intuição é expresso em um conceito empírico. Este pode vir a se acumular em sínteses subseqüentes instanciando juízos mais necessários em direção à universalidade pretendida pela ciência.

Mas a estrutura do que seja o conceito já subsiste separadamente do conhecimento, enquanto categoria, e eis seu caráter a priori. De que modo então o conceito enquanto produto do entendimento se destaca singularmente? De que maneira a condição de possibilidade, que é conceitual, cria células conceituais distintas entre si?

Definimos o conhecimento como um terceiro termo, distinto da categoria e da intuição, uma síntese entre eles. Temos contudo que considerar que a síntese é de incumbência do entendimento. Por um lado, o sintetizado não passa de uma configuração singular das categorias, e neste caso o conhecimento parece coincidir com um esquema montado por estas. Muito mais identidade parece haver entre o sintetizado e as determinações do entendimento do que com o diverso da intuição, pois os esquemas devem se adequar ao conceitual e não o contrário.

Como, porém, há em nós uma certa forma de intuição sensível a priori, que assenta na receptividade da faculdade de representação (sensibilidade), o entendimento, como espontaneidade, pode então determinar, de acordo com a unidade sintética da apercepção, o sentido interno [grifo nosso] pelo diverso da representação dada e deste modo pensar a priori a unidade sintética da apercepção do diverso da intuição sensível, como condição à qual tem de encontrar-se necessariamente submetidos todos os objetos da nossa (humana) intuição; é assim que as categorias, simples formas de pensamento, adquirem então uma realidade objetiva, isto é, uma aplicação aos objetos que nos podem ser dados na intuição, mas só enquanto fenômenos; porque só destes somos capazes de intuição a priori. (CRP B 150,151)

Há ainda um segredo inerente a este procedimento, e se encontra em uma faculdade intermediária por natureza, mediadora entre sensibilidade e entendimento, a imaginação. A imaginação possui muitas atribuições, e Kant a divide entre imaginação produtiva e reprodutiva. Em sua capacidade mais radical, a produtiva, depreende-se esquemas essenciais a ação do entendimento para o conhecimento, “é portanto uma faculdade de determinar a priori a sensibilidade [...]” (CRP B 152).

Acima havíamos grifado a expressão ‘sentido interno’, cabe ainda algum esclarecimento do parágrafo:

[...] sentido interno, pelo contrário, contém a simples forma da intuição, mas sem a ligação do diverso nela inclusa, não contendo, portanto, nenhuma intuição determinada; esta só é possível pela consciência da determinação do seu sentido interno mediante o acto transcendental da imaginação (influência sintética do entendimento sobre o sentido interno) a que dei o nome de síntese figurada. (CRP B 154)

Podemos ver que Kant faz cercar por todos os lados seu argumento, base de toda a filosofia transcendental, que prega a dependência de regramento para qualquer conteúdo, mediado pela imaginação.

A imaginação é comumente relacionada com sua capacidade reprodutiva, em fazer exibir em abstrato um objeto (CRP B 154), uma imagem de nosso sentido interno. Seu caráter produtivo é aquele que forma esquemas tão essenciais à síntese de um juízo. Seu duplo papel pode ligar a intuição ao conceitual em sua ação produtiva, ou pode vir a montar representações reprodutivamente.

Especifiquemos um pouco mais a ação conceitual para então abordarmos o processo do esquematismo empreendido pela imaginação produtiva.

3.1.1 Conceito: definição do termo.

O termo ‘conceito’ é referido na obra de Kant em três sentidos: conceito empírico, conceito puro e esquema de um conceito.

Esquema de um conceito (CRP B 179) seria uma espécie de abstração, não do objeto, mas de certos caracteres essenciais em um conceito do objeto no sentido de identificá-lo facilmente em uma experiência, ou lidar com ele na imaginação. O esquema de um conceito é um corpo formal, referido apenas a uma regra de ocupação no tempo e espaço, que serve como apetrecho para identificação de um conceito na realidade:

Ora é esta representação de um processo geral da imaginação para dar a um conceito a sua imagem que designo pelo nome de esquema deste conceito. (CRP B 179,180)

De fato, os nossos conceitos sensíveis puros não assentam sobre imagem dos objetos, mas sobre esquemas. Ao conceito de um triângulo em geral nenhuma imagem seria jamais adequada. (CRP B 180)

O conceito de cão significa uma regra segundo a qual minha imaginação pode traçar de maneira geral a figura de certo animal de quadrúpede, sem ficar restringida a uma única figura particular, que a experiência me oferece ou também qualquer imagem possível que posso representar in concreto. (CRP B 180)

A expressão ‘conceito sensível puro’ aparece empregada apenas enquanto sinônimo para o esquema de um conceito, tão facilmente representado pelo pensamento de um objeto geométrico: “No simples conceito de uma coisa não se pode encontrar nenhum caráter de sua existência.” (CRP B 272)

O esquema de um conceito é um trabalho realizado pela imaginação, e não pelo próprio entendimento ou pelo juízo. Seu caráter esquemático não se relaciona com o conhecimento diretamente, mas apenas com a ‘possibilidade’ de corresponder intuições em conceitos. Isto dirá respeito ao esquematismo, ou seja, ao processo de subsunção de intuições em conceitos.

A ‘possibilidade’ está contudo imprimida na categoria da modalidade. A categoria da modalidade trata de uma função dos juízos, que diferentemente das demais categorias, não visa a composição de conteúdos, trata apenas de “[...] se referir ao valor da cópula em relação ao pensamento em geral.” (CRP B 100).

categoria da modalidade em questão. Seu caráter modal dá-se sob as seguintes condições:

1. O que está de acordo com as condições formais da experiência (quanto à intuição e os conceitos) é possível.

2. O que concorda com as condições materiais da experiência (da sensação)

é real.

3. Aquilo cujo acordo com o real é determinado segundo as condições gerais da experiência é (existe) necessariamente. (CRP B 266)

Podemos inclusive facilitar nossa exposição com uma interessante analogia entre necessidade, realidade e possibilidade, com conceitos puros, conceitos empíricos e esquema de um conceito.

Os conceitos puros dizem respeito à necessidade de um juízo. São condições necessárias de toda experiência. Não são reais, são formas puras categoriais. Sozinhas são vazias e não encerram conhecimento.

Os esquemas de um conceito encerram uma possibilidade. A imaginação traça certo ordenamento, este ordenamento que pode ser uma abstração de um conceito empírico ou um esquema montado para aplicação em um esquematismo, ele mesmo, não possui qualquer realidade, embora encerre necessidades. É por isto nem

necessário nem real, mas possível.

Os conceitos empíricos, por aliarem as exigências dos conceitos puros (em um esquematismo) a um diverso da intuição, constituem uma experiência, seu ajuizamento implica em uma realidade do objeto sintetizado.

O conceito puro não é produto de um estatuto, mas a própria regra impressa do entendimento, é uma instância a priori. Portanto, vamos nos referir aos conceitos puros daqui em diante apenas enquanto categorias.

Sendo impossível a uma categoria constituir imediatamente um objeto (CRP B 129), é necessário que uma dinâmica entre em cena a mediar a atividade de regrar o intuído. A atividade em questão é o esquematismo.