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CAPÍTULO I Estatuto e conteúdo do juízo estético puro

2. Os objetos da arte e o objeto da complacência da beleza

2.1. Entre a beleza e a idéia estética: uma arte do inexponível

Inexponível é o termo que Kant utiliza para qualificar uma idéia estética, no sentido desta não poder ser regrada, visto que o juízo estético promulga um caráter circular frente o esquematismo, fazendo com que a capacidade produtiva da imaginação se sobressaia como que o motor da reflexividade pura:

Ao deixar a capacidade de imaginação “alastrar-se por um grande número de representações afins, que permitem pensar mais do que se pode expressar, em um conceito determinado por palavras” (KU 195, 160) a idéia estética nos leva a pensar sobre a relação do conceito com outros; portanto, idéias estéticas aumentam os conceitos ao mostrar sua limitação. (Frias 2006:89)

Devemos lembrar que as idéias estéticas pressupõem uma aderência, o que explica esta referência ao conceito a que Frias se agarra ao interpretá-lo como um ‘aumento dos conceitos’. Não cremos que tal aumento do conceito seja possível, pois é certo que a marca inexponível desta dinâmica excede estes conceitos ali dispostos. Diferentemente, as idéias da razão, por não se adequarem a nenhuma intuição são entendidas como indemonstráveis. É inexponível apenas uma idéia que assenta na intuição de um objeto mas que o entendimento não pode sintetizar.

De que modo esta estrutura aderente mudaria o conteúdo da beleza ou a relação deste com o objeto de arte?

Rufinoni propõe pensar a ação da imaginação na idéia estética como produtora de hipóteses, enquanto fábrica delas:

E a arte, tanto do lado do artista capaz de criar idéias estéticas, quanto do sujeito que julga, passa a ser um lugar privilegiado para se buscar hipóteses de exposição do inexponível, relacionando-se, então, com a filosofia de uma maneira impensável para a crítica de gosto tradicional. (Rufinoni 2010:103)

De acordo com a autora o estatuto conferido para as obras de arte, para o caso das artes belas, possibilitaria não apenas uma liberdade criativa, mas um escopo de possibilidades tanto para o artista quanto para o espectador:

A arte moderna é devedora dos juízos de Kant, portanto não tem regras externas e se deve apenas à articulação que o artista faz entre idéias estéticas. O criador moderno só pode conhecer suas regras após a feitura da obra, em uma reflexão de seus próprios meios, sendo a criação sempre pós-moderna. (Rufinoni 2010:10)

Nessas idas e vindas, tudo se passa como se os artistas "modernos" – sejam eles os do século XVI ou XVII – estivessem se debatendo entre uma autoridade e uma norma já consagrada e a possibilidade de abertura a outras formas, à liberdade. (Rufinoni 2010:2)

Sua leitura é bastante histórica e cultural e não nos convencemos integralmente até que ponto uma história da arte acompanhou de fato esta estrutura. Parece-nos mais razoável compreender que o trabalho kantiano foi uma, dentre diversas soluções da crescente demanda da filosofia estética do período. Mas não deixa de ser necessário investigar se a ‘articulação’ entre as idéias estéticas pode de fato vir a mudar o teor do conteúdo da beleza em uma experiência.

É importante ressaltar que o romantismo e o classicismo ainda travavam embates, e a postura classicista parece mais aflorada em Kant. Contudo, tal movimento de volta ao classicismo afetou o próprio Goethe, que diz em 1788: “Clássico é o que é são; romântico o doentio" (Goethe 2003:47). Para proveito estrito de nossa análise, as implicações históricas indicam que a própria teoria ‘deu o que pensar’ a artistas, em uma perspectiva não causal entre teoria e produção. Compreendendo que analisamos o modelo do juízo estético enquanto tal - não enquanto motivou ou inspirou obras - mas somente em sua potência de vir a explicar um fenômeno artístico como o musical, parece que as questões culturais a que Rufinoni quer ilustrar excedem esta nossa perspectiva.

Para um enfoque direto com o objeto, encontramos mais contemporaneamente o trabalho de Thierry De Duve (2009), em seu artigo: A ‘improvisação’ de Kant à luz da

arte minimalista, um exemplo de aplicabilidade do estatuto estético da beleza

kantiana.

De Duve empreende uma descrição detalhada de sua experiência com a obra de Robert Morris, originalmente sem título, L-beams.

A obra L-beams foi originalmente confeccionada em compensado e depois refeita em aço inoxidável e fibra de vidro: 8 x 8 x 2 feet e data de 1965. Seu autor assim comenta sobre a obra:

Uma função de espaço, luz, e do campo de visão do espectador [...] pois é o espectador quem muda a forma constantemente por sua mudança de posição em relação ao trabalho [...] Há dois termos distintos: o conhecimento constante e a variável experiência. (Morris)

Morris, sobretudo nesta obra, foi muito influenciado pela fenomenologia de Merleau-Ponty. De Duve conhecendo a natureza do estudo empreendido por Morris, claramente alicerçado em uma fenomenologia da percepção, empreende uma experiência própria, referenciada exclusivamente em Kant, porém alicerçada pelo formalismo de Greenberg:

Eu imagino que já ficou claro para você que eu mesmo falo em defesa, se não do formalismo como tal (o que isto possa significar), pelo menos da validade continuada da estética kantiana. O lugar mais duro e, portanto, o melhor deles para testar a validade é o discurso interpretativo dos seus detratores. (De Duve 2009:282)

O texto de De Duve é de difícil aproximação, sobretudo pelo mau uso da terminologia kantiana que claramente não domina, como vemos no uso dos termos; ‘percepção’, ‘representação’, ‘síntese’ e ‘imaginação’, entre outros. Afora detalhes terminológicos e seu discurso bastante passional, a falar de ‘detratores’, interessa para nosso proveito a oportunidade de travarmos uma relação direta entre o estatuto da beleza e um objeto.

O que De Duve quer neste artigo é mostrar que a experiênica dos Three L-

beams26 ou não é suficientemente artística, ou cumpre com os requisitos para um livre

jogo das faculdades como descrito na terceira Crítica kantiana. Duve conclui:

O que acontece é que no caso dos Three L-beams, meu sentimento não concorda com a interpretação que se faz acerca do significado da desarmonia dos poderes cognitivos eliciados pela peça. [...] Mas há o sentir que tem sempre a última palavra. (Duve 2009:290)

Quando fala em ‘desarmonia das faculdades’ trata-se de um ponto de vista bastante peculiar do autor, visto que Morris diz de uma diferença entre o conhecimento e a experiência. De toda forma, Duve julga má a obra de Morris, por esta não praticar um livre jogo, mas implicar um pensamento sob critérios notadamente físicos e conceituais, e o verdadeiro aval estético, o sentimento de prazer, não seria assim erigido.

26 De acordo com o próprio Duve, e esta é a interpretação de Krauss e Turcke (Duve:283-286)

esta obra é comumente compreendida contendo em si a ambigüidade de um objeto empírico portando um conceito lógico de sua forma, no caso, o formato de um L. Esta relação é implicada pois é referida a seu contexto espaço-temporal real e não a um jogo subjetivo como propõe Kant. Aqui, inspirado pela fenomenologia, Morris faz modificar o objeto a cada visada, sendo a experiência empírica múltipla confrontada pelo conceito que tenta entende-los como idênticos entre si. Isto implica um tipo de experiência que excede a teoria kantiana, pois além de contar com conceito e pensamento determinado, faz referencia direta a uma objetividade.

Em muitos momentos, e alicerçado-se no conceito de Greenberg – concocted - uma maneira pejorativa de se referir ao trabalho da arte minimalista, Duve tende a tratar a arte minimalista inteira como um fracasso artístico justamente por não saber produzir o sentimento do belo. Novamente precisamos entrar com correções, pois como um gênero pode encerrar toda a possibilidade de beleza se o juízo estético é singular? O remédio a todo julgamento lógico aplicado sobre a beleza não pode ser a confecção de um conceito sobre um gênero artístico, mas, ao contrário, dar um passo atrás e converter não o julgamento, mas a postura lógica em uma postura subjetiva de refinamento.

O tom de Duve é certamente militante e por isto podemos desconsiderar este tipo de enfoque sobre a arte minimalista. Não é nosso interesse definir possibilidades artísticas de gêneros inteiros.

Dadas estas limitações, Duve de fato põe o modelo kantiano em teste. Sua análise se divide em cinco momentos os quais tratamos resumidamente. Os dois primeiros momentos partem de aspectos lógicos da experiência do objeto L-beams (Duve 2009:278). O quarto momento é dedicado a pensar como se insere o terceiro momento em um pensamento kantiano (Duve 2009:279). O quinto e último momento trata-se de um juízo sobre a intenção da obra, Duve chama de ‘interpretação’ o que também se encontra em um nível regrado já que chega a conclusão que a obra trata de pôr em cena uma divergência entre o conceitual e o empírico (Duve 2009:281).

Apenas o terceiro momento descreve a sensação que Duve retém da experiência, onde no quarto momento postula que ela teria que ser anterior ao primeiro e segundo momento, visto que estes já apareceriam regrados: “O que eu vejo

não é o que sei; o que eu sei não é o que eu vejo .” (Duve 2009:279) [frase a qual

Duve descreve sua sensação.]

Duve nomeia de conflito das faculdades a relação entre a igualdade dos três L-

beams dadas conceitualmente e a experiência empírica diferente a cada ângulo.

Porém, Duve estaria a tratar de aspectos lógicos se esta diferença se colocar realmente como um problema. Pois logicamente isto não é um problema, mas apenas uma distinção tão comum em desníveis de gênero e espécie. Porém, se ele descreve este descompasso como condição de assentimento e não apenas de avaliação lógica, então, perde-se a referência kantiana.

Duve vai indicar que não foi possível adentrar satisfatoriamente em um nível de livre jogo, e por isto a obra estaria invalidada. Entendemos assim que não houve nem

um assentimento, o que faz com que o estético tenha se anulado.

A conclusão desta análise de Duve é bastante dura, e realmente se esbarra com questões pertinentes à história da arte. Quando a acusação de Duve ao minimalismo não se estende a um trabalho geométrico de Kandinsky por exemplo, faz parecer que estão em jogo dois pesos e duas medidas. Ou seja, o que aparece censurável em Morris, o uso de objetos geométricos, não vale para Kandinsky que utiliza alto grau de atrativos para os mesmos. Fica em aberto não só a capacidade de Duve empreender uma análise deste tipo, mas, se coloca mesmo a questão de ser possível descrever uma experiência que se quer subjetiva a partir dos critérios kantianos, pois que quando descrevemos arte sempre nos colocamos a indicar experiências pertinentes a aspectos materiais de um objeto.

Como seria possível termos acesso, em uma experiência, a um cumprimento de um estatuto epistemológico como o do juízo da beleza?