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CAPÍTULO II – Estatuto do juízo determinante: a legalidade da unidade

1. A apercepção enquanto autoconsciência

Gemüt é o conceito mais geral de nossa disposição viva. Unidade sintética da

consciência, do ‘eu penso’, da autoconsciência: “o primeiro conhecimento puro do entendimento, sobre o qual se funda todo o seu restante uso” (CRP B 137).

É um conceito que pode ser discernido em funções, e é este o empreendimento kantiano por toda a primeira Crítica. Suas funções mais amplas podem ser descritas em dois desdobramentos de seu conceito; apercepção pura e empírica.

A apercepção pura ou autoconsciência seria o movimento mais amplo onde uma objetividade se dá a exibir, “pois que nela o saber, que o sujeito adquire de si, consiste em uma percepção e não em um ato de conhecer. A autoconsciência,

em si mesma, embora esteja na base da estrutura cognitiva humana não elabora conhecimento” (Martins 1999:67). Simplificadamente diríamos que a autoconsciência exibe conteúdos sintetizados, e atua apenas enquanto “princípio de unificação das faculdades” (Rohden 2009:7).

A apercepção é a síntese de diversos estatutos que nossa Gemüt encerra, ou seja, coordena toda a série de faculdades, desde a intuição até uma recognição do juízo. Existe um encadeamento que faz mover esta série de funções28:

O princípio supremo desta mesma possibilidade em relação ao entendimento é que todo diverso da intuição esteja submetido às condições da unidade sintética originária da apercepção. [...] na medida em que têm de poder ser

ligadas numa consciência; de outro modo, nada pode, com efeito, ser pensado

ou conhecido, porque as representações dadas, não tendo em comum o acto de apercepção eu penso não estariam desse modo reunidas numa autoconsciência. (CRP B136,137)

O que localizamos como princípio unificador de todas as faculdades aparece na citação imiscuído à própria função do entendimento. O entendimento parece então levar a cabo uma exigência direta da apercepção que acaba por se definir também por esta faculdade: “é o princípio supremo de todo uso do entendimento.” (CRP B136)

Enquanto autoconsciência pura, a apercepção fundamentalmente nos dá a intuição do ‘eu sou’. Tal esfera representa o mais alto grau, ao mesmo tempo, o estado mais genérico de nossa consciência. Neste âmbito temos o quadro vivo de nossas experiências, que surgem espontaneamente como; mundo, pensamento, juízo, imagens, sensações, enfim, de tudo aquilo que é exibido naturalmente. Kant a adjetiva como "uma faculdade sublime” (Martins 1999):

A pura apercepção não significa, portanto, o autoconhecimento de um sujeito pensante e tampouco o conhecimento de seus pensamentos empíricos e de seus estados mentais; pois ela apenas determina a forma na qual este sujeito tem conhecimentos sem ser, todavia, o saber de si que este sujeito tem e precisa ter. (Martins 1999)

A apercepção exibe uma finalidade cumprida, em experiências para si, de objetos visuais, auditivos, táteis, intelectuais e etc.

28

Na primeira passagem, do final da Introdução à KrV, ele pensa a primeira Crítica à maneira de um organismo, mais especificamente de uma árvore, com troncos e raiz. A partir da anunciada divisão do conhecimento nos elementos do entendimento e da sensibilidade” (Rohden 2009:7)

Como não podemos falar de elementos empíricos no nível da apercepção pura, temos portanto que descer um degrau e falar da apercepção empírica. Se pudéssemos cunhar uma expressão apropriada para a apercepção empírica, em paralelo com o ‘eu penso’ da apercepção pura, ilustraríamos: ‘eu sintetizo’.

Enquanto máxima ela aponta para o enfoque, que na apercepção empírica, passa de mera autoconsciência de conteúdos para a autoconsciência de nosso próprio processo de conhecimento. É justamente um empreendimento do porte da filosofia Crítica quem pode vir a traçar tal fio condutor dos processos de síntese. A autoconsciência empírica é quem se apresenta enquanto hábil a desvendar o estatuto de nossas operações “[...] para se tornar objeto para mim” (CRP B 138). A apercepção empírica por isto não é apenas autopercepção, mas consciência da atividade cognitiva (Martins 1999).

Duas outras funções fundamentais de nossa Gemüt se abrem a partir da apercepção empírica, pólos estes de um conflito ao qual a apercepção cumpre sintetizar, são eles: o entendimento e a sensibilidade. Se a apercepção é uma função de síntese ela é propriamente síntese entre estas faculdades.

A disposição das funções de nossa Gemüt se alinha hierarquicamente, e o conhecimento, uma síntese determinante, possui um lugar privilegiado na harmonia destas estruturas, é fim de um processo bem sucedido do entendimento, remetido à exigência e unidade da apercepção. Finalidade cumprida por uma harmonia das diversas funções as quais vamos distinguindo ao longo do capítulo.

Este sucesso do cumprimento de um conhecimento é derivado de um princípio inscrito na legalidade do entendimento, definido como sua espontaneidade, ato sintético necessário entre os dados da sensibilidade (natureza sensível) e as categorias do entendimento (natureza conceitual).

Em resumo, a apercepção é a culminação de toda uma engrenagem das faculdades, onde se exibem conteúdos. Prosseguiremos então, passo-a-passo, em uma escalada descendente, da unidade sintética da apercepção às determinações de sua função mais inferior, a sensibilidade.

1.1. Os produtos das faculdades.

Dado que toda faculdade encerra um estatuto próprio e assim algum tipo de conteúdo, a operacionalidade de cada faculdade ao mesmo tempo encerra certa autonomia e

modos próprios de processamento. Dado esta particularidade dos atos de cada faculdade nos focamos em alguns, no sentido de caracterizar esta série de atos que culminam na apercepção, são eles: síntese, atividade, representação e produto. Introduzimos este tópico a fim de precisar estas diferenças estatutárias quanto a certas diferenças entre os conteúdos.

Vamos utilizar a definição geral de produto (Frias 2006:10) para designar os conteúdos principais das faculdades, podemos citar: intuições, conceitos, ideias, esquemas e juízos. Estes são produtos das respectivas faculdades; sensibilidade, entendimento, razão, imaginação e juízo.

Estamos utilizando o termo 'produto' de modo intencionalmente genérico, por reunir em seu conceito produtos que em verdade são considerados heterogêneos; representações (intuição, conceito e idéia), e atividades das faculdades (esquema e juízo). (CRP: A320 B376-7, 243-4)

A síntese não preenche o critério de um conteúdo, representação ou produto. A síntese é um ato fundamental. A possibilidade transcendental de qualquer experiência (CRP A 97) é garantida por atos especiais de síntese, e as faculdades podem ser interpretadas como legalidades sintéticas: a intuição enquanto síntese da apreensão, a imagem enquanto síntese da reprodução, e o conceito enquanto síntese da recognição (CRP A 97). Compreendida estas classificações podemos analisar o estatuto e conteúdo do juízo determinante.