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Historiografia e Res Publica nos últimos dois séculos

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Academic year: 2021

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Lisboa

Centro de História da Universidade de Lisboa

Centro de Estudos das Migrações e das Relações Interculturais da Universidade Aberta 2017

Sérgio Campos Matos & Maria Isabel João (orgs.)

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Sérgio Campos Matos & Covadonga Valdaliso Organização | Organisation

Sérgio Campos Matos & Maria Isabel João Editor | Editor

Sérgio Campos Matos

Assistentes de Edição | Editorial Assistants Gonçalo Matos Ramos, Ricardo de Brito Comissão Editorial | Editorial Board Luís Filipe Barreto, Valdei Araújo Capa | Frontcover

Detalhe da representação da Divina Comédia de Dante Alighieri. Almada Negreiros, 1961. Pórtico da entrada da Faculdade de Letras. Arte parietal, gravuras incisas coloridas sobre parede revestida a cantaria de calcário, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Fotografia de Armando Norte.

Frontispício | Frontispiece

Detalhe de Cabeça Mecânica (O Espírito da Nossa Era). Raoul Hausmann, c. 1920. Montagem. Paris, Musée National d’Art Moderne, Centre Pompidou.

Contra-capa | Backcover

Musa (Clio?) lendo um uolumen. Pintor de Klügmann, c. 435-425 BCE (Beócia?). Lekythos, cerâmica ática de figuras vermelhas, Museu do Louvre, CA 220.

Historiografia – História Contemporânea – Memória | 930(469) MAT,S Editora | Publisher

Centro de História da Universidade de Lisboa & Centro de Estudos das Migrações e das Relações Interculturais da Universidade Aberta | 2017

Concepção Gráfica | Graphic Design Bruno Fernandes

Impressão Gráfica | Printing Shop Sersilito-Empresa Gráfica Lda. ISBN 978-989-8068-22-4 Tiragem 300 exemplares P.V.P. 15.00€

Centro de História da Universidade de Lisboa | Centre for History of the University of Lisbon

Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa | School of Arts and Humanities of the University of Lisbon Cidade Universitária - Alameda da Universidade,1600-214 LISBOA / PORTUGAL

Tel.: (+351) 21 792 00 00 (Extension: 11610) | Fax: (+351) 21 796 00 63 URL: http://www.centrodehistoria-flul.com

This work is funded by national funds through FCT – Foundation for Science and Technology, under project UID/HIS/04311/2013 and project PEST-OE/SADG/UI0289/2014. This work is licensed under the Creative Commons Attribution-NonCommercial 4.0 International License. To view a copy of this license, visit http://creativecommons.org/ licenses/by-nc/4.0/ or send a letter to Creative Commons, PO Box 1866, Mountain View, CA 94042, USA. Copyright for authors and editors remain as reserved according to the afore-mentioned license and complying with the FCT directive “Política sobre Acesso Aberto a Publicações Cientificas resultantes de Projectos de I&D Financiados pela FCT (05/05/2014)”.

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SOBRE A ESCRITA DA HISTÓRIA NOS DOIS ÚLTIMOS SÉCULOS

Sérgio Campos Matos e Maria Isabel João

I – HISTÓRIA, TEMPO, CIDADANIA

O HISTORIADOR NA CIDADE: HISTÓRIA E POLÍTICA

Fernando Catroga

HISTOIRE GLOBALE, HISTOIRE NATIONALE?

COMMENT RÉCONCILIER RECHERCHE ET PÉDAGOGIE

Christophe Charle

AS FORMAS DO PRESENTE.

ENSAIO SOBRE O TEMPO E A ESCRITA DA HISTÓRIA

Temístocles Cezar

CONTINUIDADES E RUPTURAS HISTORIOGRÁFICAS:

O CASO PORTUGUÊS NUM CONTEXTO PENINSULAR (C.1834 - C.1940)

Sérgio Campos Matos

II – DIRECÇÕES DE ESTUDO

MODERNIZAÇÃO E BLOQUEIOS:

PROBLEMAS DO DESENVOLVIMENTO ECONÓMICO NA MEMÓRIA HISTÓRICA

José Luís Cardoso

A HISTÓRIA SOCIAL EM PORTUGAL (1779-1974) ESBOÇO DE UM ITINERÁRIO DE PESQUISA

Nuno Gonçalo Monteiro

ESPIRITUALIDADE E RELIGIÕES:

UNIVERSOS DE MOTIVAÇÃO E DE CRENÇA

António Matos Ferreira

11 25 27 89 115 131 161 163 183 203

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O IMPÉRIO E AS SUAS METAMORFOSES NA HISTORIOGRAFIA

Diogo Ramada Curto

A HISTORIOGRAFIA NO ÂMBITO DOS ESTUDOS REGIONAIS

Maria Isabel João

III – PERIODISMO E HISTÓRIA

HISTÓRIA, OPINIÃO PÚBLICA E PERIODISMO

José Augusto dos Santos Alves

DIVULGAR O CONHECIMENTO HISTÓRICO

AS PUBLICAÇÕES COLECTIVAS DA ACL SOB O LIBERALISMO (1820-1851)

Daniel Estudante Protásio

O CONTRIBUTO D’O PANORAMA NA DIVULGAÇÃO HISTÓRICA EM PORTUGAL NO SÉCULO XIX (1837-68)

Ricardo de Brito

DIFERENTES CONCEPÇÕES DE HISTÓRIA NA VÉRTICE DURANTE O ESTADO NOVO (1942-1974)

José de Sousa

OS ARQUIVOS DO CENTRO CULTURAL PORTUGUÊS (1969-1993): UMA “COLECTÂNEA ERUDITA” AO SERVIÇO DA HISTÓRIA

Andreia da Silva Almeida

A HISTÓRIA DE PORTUGAL NA SEARA NOVA:

A BUSCA NO TEMPO PASSADO PARA A CONSTRUÇÃO DE UM PRETENDIDO FUTURO

Joaquim Romero Magalhães

241 253 283 285 309 337 355 375 403

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Desde os finais do século XX, em Portugal e por esse mundo fora têm-se intensificado os trabalhos sobre historiografia e teoria da história. O que leva os historiadores a investigarem e estudarem o passado da sua actividade profissional, quer no plano teórico quer no da aplicação concreta, em domínios específicos? Será a necessidade de conhecer os seus antecedentes e de reflectir sobre o ofício? A consciência de que a escrita da história tem a sua historicidade, é marcada de um modo ou doutro pelo tempo presente do historiador? A noção de que as meta-histórias transportam consigo estádios de um saber acumulado? Sem dúvida, por tudo isso. Ora a historiografia é também um dos modos de os humanos lidarem com a ausência, um dos modos de a representar, mas sobretudo um lugar plural de fixação da experiência humana. Tal como em qualquer conjuntura histórica passada há sempre uma multiplicidade de caminhos possíveis, também sempre houve uma diversidade de escritas da história – o que bem exprime a irredutibilidade de diferentes modos de fixação da memória social e de expectativas de futuro. A memória histórica vai-se fixando em camadas sucessivas, sempre sujeita a

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revisão e incorporando novidades. Alarga-se o conhecimento, mudam os pontos de vista, constroem-se novos conceitos operatórios, rasgam-se novos horizontes de compreensão do passado. Revisitar periodicamente historiografias e teorias da história é sempre um indispensável desafio para aqueles que trabalham na investigação científica e na comunicação dos seus resultados: convocam-se outros olhares a partir de diferentes pontos de observação no tempo e no espaço. Evita-se assim frequentemente a presunção (ou ignorância?) dos que julgam ter descoberto a pólvora ou a imprensa – quando estas eram há muito conhecidas noutras paragens.

Mas a ideia de que toda a história é contemporânea (Croce) não é unânime. Pelo contrário, quando na segunda metade do século XIX se afirmava um conceito de história ciência e a Idade Média e os tempos modernos mobilizavam maioritariamente os interesses dos historiadores, era muito comum a resistência ao contemporâneo como objecto de estudo. Dominava então a noção de uma história ciência pura, comparável às ciências da natureza, distanciada dos problemas do presente (lembre-se Fustel de Coulanges ou a Revue Historique que, todavia, não

foram indiferentes à causa do ressurgimento nacional). E um perfil de historiador passivo, próximo dos registos documentais, um historiador frequentemente ligado às práticas do arquivista e do bibliotecário que preferia apagar-se e deixar falar o passado através das suas vozes. Insistia-se na ideia de que história contemporânea era política ou jornalismo: o contemporanista não teria a distanciação necessária para estudar o passado próximo. Esse passado recente e esse presente eram entretanto centro da atenção do romance realista e do trabalho também ele então bem recente dos fotógrafos. Não surpreende pois que, em 1900, só cerca de 2% dos historiadores europeus se dedicasse à história dita contemporânea. E que só desde meados do século XX o tempo recente começasse a merecer uma maior atenção. A partir dos anos 70, a aceleração motivada pelo processo de mundialização e pelas novas tecnologias da informática e da comunicação, viria acentuar esta tendência.

Nos séculos XIX e XX a historiografia atravessou profundas mudanças que só podem entender-se nas suas conexões com transformações da modernidade ocidental, que apontavam no sentido da autonomização, individualização e secularização do Estado, das sociedades e da escola pública. Da época umbral a que se referiu R. Koselleck – as últimas décadas do século XVIII e as primeiras

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do século seguinte – até ao tempo em que vivemos, também ele um tempo de aceleração, a experiência histórica passada esteve presente em diferentes momentos e foi assumindo funções diferenciadas. Em que medida a atenção conferida ao tempo recente esteve relacionada com a perturbação suscitada por estes momentos de maior velocidade? É que nem sempre a aceleração da história se traduziu num alargamento pelo interesse dos historiadores pelo passado imediato: se nos finais de Setecentos e na primeira metade do século XIX ela é acompanhada por uma desvalorização da história do tempo presente, nos finais do século XX, quando parece dominar o presentismo (essa “omnipresença do presente” que todavia não exclui uma crescente atenção em relação ao passado), assistiu-se a uma verdadeira explosão do contemporâneo.

*

Desde os finais do século XVIII, verificara-se a erosão de um cânone de história centrada na figura do príncipe e foi emergindo um outro em que a personagem central é a nação, por vezes identificada com povo. Os historiadores oitocentistas invocaram a nação como referente identitário, mas não só, também

como princípio estruturante da política, fonte de soberania legitimadora do sistema moderno de representação parlamentar. Paralelamente foi-se afirmando um conceito de história-crítica por oposição à história fabulosa tão vulgarizada nos

séculos XVI e XVII e às filosofias da história herdadas de Setecentos; uma história da civilização por oposição a uma história centrada nas “raças” reais e uma história universal ainda centrada na Europa e nos seus império-mundo, num tempo que era

já de mundialização. No século XIX, a História foi progressivamente introduzida em todos os graus de ensino, do então chamado ensino primário ao ensino superior, passando pelos liceus (criados no caso português em 1836). O que mostra bem o reconhecimento do Estado na relevância da disciplina para a formação cívica dos cidadãos – sobretudo das elites, já que a esmagadora maioria das populações do sul da Europa era iletrada até finais da centúria. O patrocínio estatal a uma série de corpus documentais relativos à história medieval, à história do regime liberal

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e à história diplomática ao longo de séculos assinala como as elites no poder valorizavam a dimensão histórica, também evidentemente por razões instrumentais: a preparação de políticos e diplomatas para exercerem as suas funções na posse de um conhecimento útil dos antecedentes das suas práticas.

Uma retórica da imparcialidade e depois da cientificidade da história foi usada para legitimar a autonomia do trabalho historiográfico e da figura de um novo profissional – o historiador -, já distanciado do perfil do cronista. A construção deste conceito de história-ciência não foi um processo isento de tensão com a intencionalidade de submeter a historiografia à lógica do estado-nação e da sua necessidade de coesão. E a profissionalização dos historiadores esteve longe de ser um processo rápido e linear. Neste domínio – tal como no que respeita à modernização da universidade, instituição que foi central nesse processo - a Alemanha precedeu as outras nações do continente. A introdução na Universidade de Königsberg, em 1833, no campo da História, do tipo de aula que ficou conhecido como seminário (onde se lançam sementes) acabou por ser, mais cedo ou mais tarde,

adoptado por toda a Europa. Portugal só o introduziu tardiamente, em meados do século XX. O que não surpreende se lembrarmos que também noutros países europeus – incluindo a Grã-Bretanha - os historiadores profissionais tardaram em diferenciar-se dos seus pares amadores.

Dominavam, quer no plano de uma história nacional quer da história regional e local, os intelectuais que cultivavam o interesse erudito pelo passado ou a simples vontade de difundirem a memória dos heróis e das glórias nacionais. No caso português eram sobretudo homens das classes médias, jornalistas, funcionários públicos, militares e eclesiásticos para quem o valor da independência nacional, o culto dos sucessos nacionais e a resistência ao ideal em voga das grandes nações e estados era um empenho no seu futuro profissional e numa expectativa de futuro da pátria (mas não só).

Num tempo marcado pelo autodidactismo e o eruditismo exteriores à Universidade, mas já influenciado pelo trabalho das academias, foram-se multiplicando instituições que contribuíram decisivamente para a formação de novos públicos e de novos historiadores: academias, periódicos generalistas (caso d’ O Panorama, da Seara Nova ou de Vértice), arquivos nacionais e regionais e museus.

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Hoje vivemos num tempo de descontinuidade com o passado, de descontinuidade na escrita de uma história, que rompe com modos tradicionais de narrar o passado – a história problema, a história conceptual, a história global. Torna-se evidente que é o Autor que escolhe e constrói o seu objecto de trabalho com uma ferramenta específica – um quadro conceptual. Por outro lado, retomam-se esses modos tradicionais, mais eficazes aliás no plano da comunicação pública: vejam-se tantas das biografias que entretanto proliferaram no mercado, sem esquecer que algumas delas, de grande consistência, inovaram nos modos de representar o singular na sua relação com o geral. No século XIX e em boa parte do século XX os historiadores foram também mentores da nação e depois deixaram de o ser. Era o caso dos historiadores liberais e republicanos, mas também daqueles que fizeram a apologia das ditaduras. De que lugar falam os historiadores, que lugar passaram a ocupar hoje em dia quando intervêm como comentadores políticos e por vezes assinam como profissionais da história? Respostas para outra ocasião.

Desde os finais do século XX, sob o efeito do processo da globalização e quando os horizontes de futuro de uma União Europeia ainda pareciam promissores para muitos, os parâmetros da história nacional foram-se revelando cada vez mais insuficientes para compreender os problemas específicos de cada nação. Grandes desafios transnacionais como o empobrecimento, as epidemias, o aquecimento global, a poluição, o narcotráfico ou as vagas de refugiados revelaram a exiguidade da escala nacional para dar resposta a tais problemas. Também no campo historiográfico a reafirmação de uma história transnacional (não tão recente como por vezes se supõe), da história comparativa e dos estudos transculturais alargavam o horizonte de compreensão das experiências históricas nacionais. Não deixa de ser significativo que a chamada história conectada e uma por vezes equívoca “história do presente” entrassem na ordem do dia precisamente no tempo em que cada vez mais o espaço se restringia e, sob a pressão do imediato, o presente se diluía no seu excesso: um presente que simultaneamente é passado e é já futuro. Desde o linguistic turn multiplicaram-se teorias e ângulos de visão, tudo se relativizou no

espaço público, incluindo o próprio estatuto da história enquanto ciência social. E se este processo foi produtivo no plano do debate teórico, também não deixou de minar a relevância social e cultural da história (até na sua relação com as outras

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ciências do homem) e corroer uma ética da veracidade. O que não é contraditório com o movimento de imenso interesse que o passado desperta, a par da obsessão memorial que atravessa o nosso tempo. É que, com o investimento nas memórias, coexiste nas sociedades hipermodernas a produção de esquecimento em massa . E a erosão da memória sucede a par de um recuo das expectativas dos cidadãos em projectos políticos supranacionais e da reafirmação de nacionalismos étnicos que há algumas décadas atrás pareciam adormecidos.

*

O presente livro estrutura-se em três partes: I. História, cidadania, tempo; II. Direcções de estudo e III. Periodismo e história. Em todos eles lidamos com diversas escalas de incidência do trabalho dos historiadores - o local, o nacional, o transnacional – diferentes temporalidades (embora mais centradas nos séculos XIX e XX), diferentes ângulos de compreensão dos problemas.

A abrir a secção I, uma questão central como ponto de partida: em que termos se pode estabelecer a relação entre história e a cidade política ou, por outras palavras, como coexistiu a intenção dos historiadores de busca da veracidade com a sua intervenção na cidade? Fernando Catroga reflecte sobre a função da história nas sociedades, da antiguidade grega à emergência da modernidade, passando pelas filosofias da história cristãs e a afirmação do método histórico-filológico – designadamente no que respeita à relação presente-passado-futuro e ao tópico historia magistra vitae. Permite-nos assim alargar a compreensão das raízes das políticas de

memória e das historiografias nacionais enquanto instrumentos de consenso social nos dois últimos séculos. É que desde a antiguidade, a historiografia nasceu como

ars memoriae, um dos meios de combater o esquecimento. Se na polis da tradição

clássica a investigação do passado tinha também um papel pragmático, ético-cívico, na modernidade ocidental, herdeira deste paradigma, viriam a erguer-se políticas da memória e historiografias empenhadas em socializar novos contratos políticos.

Das revoluções liberais oitocentistas à actualidade, a história centrada na nação sofreu profundas metamorfoses e deslocações. Compreende-se no entanto

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que no caso francês estudado por Christophe Charle, apesar de a história comparada e de a história global se terem afirmado nas últimas décadas, ela continue a ocupar a esmagadora maior parte dos historiadores (em contraste com o que se tem passado no Reino Unido ou nos EUA). Na verdade, nada é linear na afirmação de perspectivas transnacionais e comparadas. Mas não deixa de surpreender o facto de serem raras as teses de doutoramento que em França se aventuram nesses sentidos. Resistência galocêntrica e constrangimentos de um sistema que impõe prazos relativamente curtos de execução dos trabalhos explicam essa situação. Por outro lado, a história global suscita problemas no campo da comunicação pública: como tornar acessível uma história “sem fronteira, sem território, sem cronologia, sem heróis”, que se afasta destes parâmetros da história tradicional? Como difundir entre um público médio esta história global e a história comparativa, uma história que exige da parte do leitor conhecimentos mais diversificados e por vezes improváveis? Trata-se de um desafio exigente e nada fácil. Tanto mais que nos situamos num tempo em que o multiculturalismo e as tentativas de resolução dos problemas humanos de um modo pactuado e à escala global têm sofrido fortes reacções, como se se tratasse de ameaças a “identidades” nacionais feridas.

Estamos no contexto de uma problemática que também se prende com as recentes experiências do tempo, com a relação entre passado e presente. Como bem observa Temístocles Cezar, na nossa época, o presente é omnipresente e como que impõe uma resposta aos historiadores, a partir do exterior à sua disciplina. O seu texto é uma reflexão sobre o presentismo, convocando exemplos literários e a relação dos historiadores e da sua escrita com o tempo. Se é certo que há momentos em que a interpretação do passado é sujeita a revisões mais profundas, também é verdade que na historiografia se vai operando um processo cumulativo em que as continuidades parecem dominar. Mas, como lembra o historiador brasileiro, o presente é o tempo de todos os historiadores “de qualquer época ou lugar” - compreende-se assim que, em momentos de intempestiva aceleração (como recentemente no Brasil), a escrita da história sofra profundas mutações. Estas parecem por vezes abalar em termos radicais a sua legitimidade enquanto disciplina autónoma: caso do linguistic turn, nos anos 60 - mas a palavra turn

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memorial turn, global turn, etc.) num tempo ”desorientado” em que a própria actividade

dos historiadores se torna omnívora e fragmentada.

O modo como os historiadores se relacionam com o passado e com o presente pode ser observado no caso português em dois momentos que se sucederam a tempos de aceleração da experiência histórica, convocados por Sérgio Campos Matos. Esses dois momentos lidos numa perspectiva das suas conexões transnacionais - o de Herculano que coincide com a revolução liberal e a estruturação de um novo estado (decénio de 1840) e o momento do Integralismo Lusitano, de crise e distanciação em relação ao modelo liberal (1920/30) – revela duas leituras bem diversas da modernidade em que a uma interpretação liberal do passado das nações peninsulares se contrapôs, tardiamente mas de um modo sistemático, já no século XX, um cânone tradicionalista. Em conjunturas históricas bem diferenciadas, estruturaram-se dois modos de conviver com a perda, isto é com a decadência. Mas em ambas as narrativas há marcas de inspirações transnacionais e a presença de uma inspiração cristã.

Na secção II – Direcções de estudo -, torna-se bem evidente a historicidade do

trabalho historiográfico em diversos campos. Como as primeiras aproximações à história económica remontam em Portugal aos finais do século XIX para já nos primeiros decénios da centúria seguinte surgirem os primeiros tentâmes de sistematização por parte de autores hoje quase esquecidos e uma obra tão significativa como a de João Lúcio de Azevedo. José Luís Cardoso destaca depois os contributos mais inovadores de Vitorino Magalhães Godinho e Jorge Borges de Macedo, a partir dos anos 50. No pós-guerra e nos 30 anos de boom de

desenvolvimento, o ponto de vista da história económica assumia então nos países ocidentais grande relevância. Mais lenta foi em Portugal a definição conceptual de uma história social quando dominaram até tão tarde – como bem mostra Nuno Gonçalo Monteiro - interpretações doutrinárias marcadas por teorias da decadência e a definição de uma “história popular de Portugal”, que se podem rastrear no tempo longo, sedimentando-se depois nos séculos XIX e XX nas narrativas liberal, republicana e marxista. Destaque-se a este respeito a ideia de que teria sido o povo (categoria não raro abstracta e oscilante, é bom lembrar) a comandar os

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inimigos externos, enquanto os grupos dominantes se teriam bandeado com o estrangeiro. Noutro ângulo de leitura, percebe-se como a uma história das religiões que valorizava as instituições (caso da Igreja católica e os seus dignitários) tendeu mais recentemente a dar lugar a uma história religiosa que envolve o humano na sua complexidade social, mental, simbólica e nas suas dinâmicas próprias. Outro terreno? Não necessariamente: como esclarece António Matos Ferreira, espiritualidades e religiões, por si só, podem não ser suficientes para captar a “historicidade de muitas sociedades e culturas”. Compreende-se pois que a história religiosa seja indissociável da história social. E que o ponto de vista institucional seja insuficiente para conhecer em profundidade os problemas que dizem respeito às religiões num sentido amplo. Não menos recente é o interesse dos historiadores portugueses pelo estudo da temática das migrações, como mostra Jorge Fernandes Alves: com raras excepções como Herculano ou Oliveira Martins, ela remonta aos anos 70 (até aí mobilizava maior atenção de outras ciências humanas), quando os comportamentos demográficos despertavam o interesse dos historiadores em Portugal e no estrangeiro. Percorrendo os trabalhos que remontam à Academia das Ciências, nos finais do século XVIII é patente a mobilização de diferentes modos de designar o mesmo fenómeno: emigrantes, colonos, emigrar, expatriar-se, emigração, que

evidentemente não têm todos os mesmos sentidos (note-se, a propósito, que em vários dos textos que se incluem neste livro é bem evidente a atenção conferida a uma conceptualização que permite por vezes captar totalidades unitárias: civilização, nação, raça, progresso, decadência). Outra temática – a do império e da colonização

portuguesa -, foi ao invés da anterior, muito esquecida durante os decénios que se seguiram à revolução de 1974-75, ressurgindo desde finais do século passado, ultrapassada que foi uma certa má consciência do passado neste campo. Centrando-se nos anos 40, a partir de uma marcante reflexão crítica de Vitorino Magalhães Godinho – Comemorações e história, 1947 -, Diogo Ramada Curto, propõe-nos uma

incursão sobre as fontes – periódicos, e colectâneas documentais publicadas nessa época -, considerando também algumas das instituições cujo estudo será indispensável para caracterizar a historiografia que se dedicou ao império. A encerrar esta secção, adoptando um conceito lato de historiografia e considerando diversas escalas, Maria Isabel João dá-nos um balanço crítico de um campo de estudos que,

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desde meados do século XIX (mas sem esquecer os seus antecedentes), foi sendo intensamente cultivado por amadores e eruditos locais e, mais recentemente, por historiadores profissionais: os tão variados estudos regionais e locais.

Tendo em conta o lugar central que tantas vezes tiveram os periódicos na afirmação dos historiadores, nos debates públicos, na divulgação científica e, não menos relevante, na construção da cidadania, a secção III - Periodismo e história -

inclui uma reflexão geral sobre o tema assente no conhecimento da imprensa da primeira metade de Oitocentos, a cargo de José dos Santos Alves. Numa época em que se enriquece extraordinariamente o “mercado da comunicação e da informação”, abrindo-se a esfera pública a categorias sociais que ultrapassam meios mais restritos burgueses e aristocráticos, afirmava-se a autonomia de uma ética e de uma estética críticas em relação aos poderes. Nesse periodismo a história ocupa lugar proeminente ao serviço de múltiplos usos estratégicos, enquanto instrumento pedagógico, convocando acontecimentos passados, justificando situações políticas no presente, anunciando futuros.

Seguem-se diversos estudos monográficos sobre periódicos generalistas em que a história teve função cognitiva e formativa de grande relevância, a começar por uma análise das séries de publicações colectivas da Academia das Ciências de Lisboa sob as primeiras décadas do regime o liberal (1820-1851), da autoria de Daniel Estudante Protásio, que deixa clara a função decisiva que teve esta instituição, num tempo em que a disciplina de História não existia ainda de um modo autónomo na Universidade de Coimbra. Entre os mais marcantes periódicos portugueses que contribuíram para a renovação da paisagem editorial no Portugal de Oitocentos, O Panorama, a revista fundada por Herculano e ligada à Sociedade

Propagadora dos Conhecimentos Úteis, inspirada num modelo publicado em Inglaterra, viria a marcar vários outros periódicos portugueses - nota Ricardo Brito. Um século mais tarde, já em plena Guerra Mundial (1942), Vértice, como mostra

José de Sousa, daria a conhecer novas propostas metodológicas e conceptuais – ao invés do que poderia supor-se nem sempre convergentes - de historiadores que eram também oposicionistas do Estado Novo. Já os Arquivos do Centro Cultural Português (1969-1993), uma publicação ligada à Fundação Calouste Gulbenkian e

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portugueses e lusitanistas estrangeiros, contribuindo, desde os finais do Estado Novo para a internacionalização dos estudos sobre Portugal, com mostra Andreia da Silva Almeida. Last but not least, Joaquim Romero Magalhães revela como a

história ocupou um lugar destacado nos primeiros tempos da Seara Nova

(1921-1930) sobretudo em textos de António Sérgio e de Jaime Cortesão, o primeiro num registo ensaístico, o segundo dando já a conhecer os seus primeiros trabalhos de investigação no campo da história dos descobrimentos e sobre a “formação democrática de Portugal”.

*

A construção do Dicionário de Historiadores Portugueses (1779-1974) [http://dichp.

bnportugal.pt/index.htm], publicado na página digital da BNP, projecto editorial

que já conta mais de 150 entradas on line, levou-nos a tomar iniciativa conexa de,

periodicamente, e no âmbito dos trabalhos do grupo de investigação Usos do Passado do Centro de História da Universidade de Lisboa, com a colaboração do CEMRI, organizar seminários internacionais em que se foram dando a conhecer estudos

desenvolvidos nesta área: História, Memória e Historiografia (Janeiro de 2011), Faces de Mudança - Historiografia e Historiadores em Portugal no século XX (Abril de 2012),

ambos na Universidade de Lisboa e, em colaboração com o Núcleo de Estudos em História da Historiografia e Modernidade da Universidade Federal de Ouro Preto),

Discurso histórico e política: perspectivas luso-brasileiras (Julho de 2015). E mais recentemente

(Primavera de 2017), Passados próximos. Memória e História.

Na Biblioteca Nacional de Portugal, teve lugar o encontro Historiografia e Res publica - a escrita da história nos dois últimos séculos (Abril de 2014), em que se

inscreveram os temas dos textos agora reunidos. Visou-se então aprofundar o conhecimento acerca das historiografias e dos historiadores dos séculos XIX e XX na sua relação com o espaço público e a cidadania, problematizar a sua função social e cultural, tendo em atenção os tempos e lugares em que produziram as suas obras; construir balanços críticos sectoriais sobre a historiografia e a cultura histórica portuguesas, dos problemas económicos à dimensão religiosa passando

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pela história social, a história do Império, do periodismo e opinião pública, etc. Tudo isto tendo em consideração as relações transnacionais, os modos de recepção de debates históricos além-fronteiras, os lugares e redes de historiadores e a forma como nas suas escritas, da revolução liberal à actualidade, se estruturaram olhares sobre Portugal na sua relação com outros povos. Também nos propusemos revisitar tópicos-chave que serviram de suporte à historiografia, tais como: nação, Império, povo, raça, revolução, decadência, atraso ou subdesenvolvimento - bem como os preconceitos

que condicionaram o discurso sobre a transformação social. O estudo dos modos como no passado se fez história é da maior relevância para ponderar os caminhos possíveis da disciplina, no presente no futuro.

Neste tempo marcado pela pressão do imediato, pelo excesso de informação e desinformação, excesso de crise e de sentimento de crise, excesso de ruído, excesso de publicações de todo o tipo, um produtivismo que sobrevaloriza a quantidade em detrimento da qualidade, profusão de índices de curto prazo de desempenho económico e financeiro, com que somos confrontados no dia-a-dia, contaminação do vocabulário das ciências humanas pela língua de pau da política e dos negócios (empreendedorismo, excelência, alavancagem, competividade [sic], e tantos outros exemplos

poderíamos dar), a dimensão histórica introduz um efeito de necessária e salutar distanciação e relativização. É certo que a história continuará (como sempre foi) a ser instrumentalizada para fins políticos e de propaganda, de um sinal ou outro. Mas o estudo da historiografia mostra-nos que sempre houve quem cultivasse uma história dotada de espessura crítica. Em última análise, a triagem entre os diversos registos historiográficos depende da qualificação dos seus leitores.

Agradecemos à Biblioteca Nacional de Portugal na pessoa da sua directora, Doutora Maria Inês Cordeiro, o apoio que sempre deu às nossas iniciativas, e aos comentadores de algumas das conferências apresentadas no referido seminário - os professores Jaime Reis, Fátima Sá e Melo Ferreira, José Damião Rodrigues, Tiago Pires Marques e Jorge Macaísta Malheiros – a valiosa colaboração crítica. E ao José Guedes de Sousa e ao Ricardo de Brito a valiosa ajuda.

Sérgio Campos Matos Maria Isabel João

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Fernando Catroga

Universidade de Coimbra

O presente ensaio pretende sintetizar as relações da historiografia com a

cidade, à luz das mudanças ocorridas na experiência do tempo, no campo das epistemes

dominantes e no modo de entender a função social e cognitiva de narrativas sobre o passado que, a partir de Heródoto, passaram a ser designadas por “investigações” ou “histórias”.

* Este texto nasceu de uma intervenção não escrita, feita com intenções pedagógicas. Daí que aquela somente tenha pretendido sintetizar algumas ideias já desenvolvidas em trabalhos anteriores, particularmente em Os Passos do Homem como Restolho do Tempo e no Ensaio Respublicano. Mas a insistência dos organizadores do curso

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I

O homem como animal político e o papel da palavra

Antes de mais, não será descabido afirmar que foi (e é) narrando-se a si mesmas, através do uso do logos, isto é, da palavra e da disputa (H. Arendt),

que as comunidades de origem e de destino “domesticaram” a sua etnicidade e se elevaram a sociedades politicamente organizadas. E basta ter presentes

as caraterísticas estruturais do mito, bem como a conceção de tempo que este pressupunha, para se perceber que, também em termos sociais, só a memória do que teriam sido desde a sua archê lhes conferia identidade e sentido (recorde-se o

papel dos mitos fundadores).

Este tipo de narrativa mítica foi, durante milénios, indissociável da cultura oral. Porém, se o avanço da escrita não o substituiu nem extinguiu de imediato, no longo percurso que vai do mito ao logos, o pensamento grego tomou consciência

de que a escrita, inventada para fixar negócios políticos, económicos e religiosos, ao afirmar-se como um suporte mais duradouro de memória, também passou a ser fonte de amnésia e obstáculo ao exercício dialógico da procura da Verdade. Sublinhou-o Sócrates, no Teeteto, ao prevenir que, ao contrário do que se esperava,

a escrita – medicamento (pharmakón) da memória – iria provocar o efeito perverso

de tornar “os homens mais esquecidos, pois que, sabendo escrever, deixarão de exercitar a memória, confiando apenas nas escrituras, e só se lembrarão de um assunto por força de motivos exteriores, por meio de sinais, e não de assuntos em si mesmos”.

Sublinhe-se que, com Heródoto, a historiografia nasceu para combater a corruptibilidade do tempo. Assim, não será exagerado defender que, à sua maneira, ela surgiu como uma prótese da memória, uma ars memoriae, ou melhor, como uma technê, filha da era da escrita e cujo uso se foi propagando devido ao alargamento

da racionalização do conhecimento geopolítico do “mundo”. Esta tendência foi secundarizando a crença no mito e fez aumentar a complexidade da vida política e comercial da polis, interna e externa, o que impulsionou a demarcação de identidades

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e de diferenças face ao “bárbaro”. Compreende-se, assim, que, no século V a.C., a par de um compromisso com a veracidade, Heródoto de Halicarnasso – que terá sido antecedido por Helânico de Lesbos e que será seguido por Tucídides, Xenofonte, Diodoro Sículo e outros – tenha revelado, nas suas Investigações (Histórias),

uma nova sensibilidade geográfica e étnica, e que tenha elaborado a sua narrativa sob o imperativo da equidade e do dever de memória, ou, por palavras suas, “para que os feitos dos homens se não desvaneçam com o tempo, nem fiquem sem renome as grandes empresas, realizadas quer pelos Helenos quer pelos Bárbaros” (Heródoto, Histórias, Liv. 1.º, 1. 1).

Temos por certo que o parto do género historiográfico – que alguns colocam não só nas crónicas asiáticas, mas também nos poemas homéricos – não pode ser desligado da herança mítica (como se verifica nos logógrafos e em Hecateu de

Mileto) e do processo de racionalização em que ele se inseria. Porém, no seio da hegemonia alcançada pelo florescimento de uma interpretação do mundo e da vida de teor metafísico, substancialista e holístico, o aparecimento das “investigações” denota uma maior abertura ao registo e à interpretação dos acontecimentos singulares, finitos e ocasionais, atravessados por temporalidades descontínuas e irreversíveis. Por outro lado, também não deixa de ser relevante o facto de este surto historiográfico ter acontecido numa época em que os efeitos amnésicos da utilização da escrita já estavam patentes no declínio da rememoração oral e da crença nos mitos. Com efeito, a oralidade foi perdendo o exclusivo da transmissão das metanarrativas dos processos cosmogónicos, modo de contar que assentava numa espécie de forma primitiva de historicismo (John Pocock) que sacraliza as origens.

E a escrita estaria a desvitalizar o papel sociabilitário da memória e do rito, em boa parte por causa do impacto das mediações mais racionalizadas exigidas pelo escrever

e pelo ler, atitudes mentais bem distintas das requeridas pela fala e pela audição.

Enquanto “arte da memória”, e tal como o seu signo fundador – a sepultura –,

a historiografia também quis ser um protesto contra a condição mortal da finitude no seio da eternidade cíclica ou substancialista do cosmos. De onde estar implícita em Heródoto esta mítica certeza: como não possuem o poder de Mnemósine – a

deusa da Memória –, os homens morrem, porque não são capazes de juntar o começo e o fim. E, sem o veículo da escrita, seria cada vez mais difícil vencer a

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inevitável degradação dos traços interiores deixados pelos acontecimentos, os quais,

entregues exclusivamente ao testemunho de quem os viveu, ou a um “arquivo” facilmente degradável, teriam no esquecimento a sua nadificação epistemológica, isto é, a morte definitiva. Assim, poder-se-á afirmar que, numa ótica que já não pretendia confundir-se com o papel social das narrativas míticas, as “investigações” de Heródoto convocavam a necessidade da prova (começando pelo testemunho vivido do próprio historiador) e propunham-se respeitar a equidade no tratamento dos actantes que enredavam a sua escrita, como se quisessem dizer aos vindouros que, contra os abusos da retórica sofística, só a veracidade poderia garantir o uso público e eudemónico da história. De certo modo, sabia-se por experiência vivida que a amnésia desembocava na anomia, ou melhor, no caos, pelo que a preservação da memória, por meios que garantissem a sua transmissão objetiva, seria constituinte da reprodução da polis como (micro)cosmos, logo, como ordem.

Com isso, as “investigações” abriram brechas na representação do império determinista da physis. Ao privilegiarem o mundo fenoménico, tido como mera

aparência da essência última das coisas, a ênfase que puseram na singularidade dos acontecimentos inquietou uma episteme que punha a metafísica como raiz de todos os

ramos do saber. É certo que, neste horizonte, os feitos dos homens concretos, que pontualizavam o percurso linear, mas finito de cada vida (biós) e dos acontecimentos

singulares, não podiam fugir, quer à nora do tempo que ritmava o movimento da natureza (physis), quer às exigências holísticas ditadas pela reprodução do género, no

seio do qual cada indivíduo, encarado, não como animal político, mas como um biós,

necessariamente estava integrado. Daí que somente a ação do homem enquanto

praxis, ao acrescentar, pelo trabalho, pelas obras, mas sobretudo pela palavra (dita ou

escrita), humanidade à natureza, pudesse ultrapassar a condição animal e mecânica da

existência e vencer a precariedade inerente a tudo o que é particular (H. Arendt). Acredita-se que, dentro da matriz grega que estamos a sintetizar, esta dimensão práxica foi fazendo do animal-homem um ser humano, de onde nasceu a possibilidade de as comunidades transitarem do seu estado etnológico (estado de natureza) para o de sociedades politicamente organizadas. E, se o desenvolvimento comunicativo e, principalmente, argumentativo, decorrente do uso da deliberação e da

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consolidação da cidade tenha desencadeado, nos setores mais libertos do trabalho e,

portanto, mais disponíveis para o ócio, o despertar do espanto que levou ao assomo

da problematização filosófica, da política, da arte e de saberes mais “técnicos”, como a medicina (Hipócrates), ou a retórica nas suas várias modalidades. E foi este mundo cultural que deu luz às chamadas “histórias”, género logo comparado com a poesia e cuja avaliação epistémica não escapou ao crivo metafísico de Aristóteles.

A voz da singularidade no império da metafísica

Com efeito, na Poética (1451b, 1-11), o Estagirita salientou que o narrado

nas obras dos logógrafos (visava Heródoto e, indiretamente, Tucídides) era

epistemologicamente mais pobre do que a poesia, que qualificou como “mais filosófica” e “mais virtuosa que a história”, porque o poeta sabia iluminar as situações concretas com ideias gerais, enquanto o historiador se limitava a descrever singularidades impossíveis de generalização. Ora, este juízo tem de ser compreendido a partir da episteme que dominava a visão filosófica grega no século

V a.C. E esta ensinava que, na taxinomia dos saberes, a metafísica, com a sua busca radical do Ser, era a primeira de todas as ciências. Só o geral, o fixo e o necessário (lá onde reina a anankê) seriam universalizáveis; ao nível fenoménico, onde tudo

aparece como fruto do acaso, e “para quem trate de investigar o que é o contingente, resultará evidente que não haja uma ciência do contingente” (Aristóteles, Metafísica,

XI, 8, 1064). Por isso, as narrativas que davam corpo textual às “investigações” eram

logográficas e, por conseguinte, teriam um valor epistémico menor do que a poesia

(Aristóteles, Poética,1451 a, 36; 1451 b, 10).

É sabido que a menorização aristotélica da obra de Heródoto tem sido retomada por aqueles que, nos nossos dias, tentam reduzir a historiografia, exclusivamente, a uma literatura, ou mesmo a uma ficção. No entanto, para se entender a expressão philosoph oteron (“mais filosófico”) como sinónimo de “mais

científico”, tem de se correlacionar o citado passo da Poética com o que Aristóteles

escreveu no Livro I da Metafísica (981a, 15-16) acerca da hierarquia dos saberes e

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causa pouco tem a ver com o seu significado moderno, e o Estagirita não negou a

utilidade relativa, embora filosoficamente subordinada, dos conhecimentos sobre o mundo empírico, fossem eles doxográficos ou, como seria o caso da nova escrita da história, logográficos. Convém frisar ainda que, na Poética, ele polemizou, sobretudo,

com o ataque que Platão, na República (Liv. X), tinha feito à poesia, definindo-a como

uma arte, logo, como uma technê. E, dado que a filosofia remetia para a faculdade

racional do homem para trazer coisas à existência, a ciência aristotélica, isto é, a metafísica, tinha a ver com os universais (kathólon) e com as coisas sujeitas ao

reino da necessidade (anankê). De onde, em termos de dominância, o pensamento

teorético grego ter estado mais obcecado com o imutável, o geral e o essencial do que com o mutável, o fenoménico, o singular e o casual.

Demais, e ao contrário do que uma leitura literal de Aristóteles sugere, a singularidade que caracterizaria o mundo histórico não impediu os grandes historiadores gregos de tecerem enredos que recorreram ao testemunho, à prova

(tekmerion) e à correlação de acontecimentos entre si, embora daqui não fosse inferida

qualquer totalização geral sobre o devir, como, mais tarde, virá a acontecer nas teologias providencialistas judaico-cristãs e nas filosofias teleológicas e imanentistas da Modernidade. Porém, isto não significa que, desde as grandes narrativas míticas, não houvesse uma consciência clara acerca das diferenças que existem entre o “antes” e o “depois”, ordem cronológica (espécie de historicismo ingénuo) sem a

qual o enredo seria um mero somatório ou um mero “espelho” (Tucídides) da manifestação caótica dos acontecimentos, como se estes fossem exclusivos filhos da contingência (P. Ricoeur).

Pensando bem, para o autor da Poética, a debilidade da historiografia

provinha da própria ontologia dos événements. E esta revelava, “não uma ação

única, mas um tempo único, com todos os eventos que sucederam nesses períodos a uma e a várias personagens, cada um dos quais está para os outros numa relação meramente casual. Com efeito, a batalha naval de Salamina e a derrota dos Cartagineses na Sicília desenrolaram-se contemporaneamente, sem que estas ações tendessem para o mesmo resultado; e, por outro lado, às vezes acontece que em tempos sucessivos um facto venha após o outro, sem que de ambos resulte comum efeito. No entanto, a maioria dos poetas adota este

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procedimento” (Aristóteles, Poética, 1459). Dir-se-ia que, como a res gestae tem uma

manifestação contingencial e é atravessada por temporalidades diferentes, embora cronologicamente contemporâneas (K. Koselleck), seria impossível construir nexos de causalidade passíveis de generalização. A historiografia parece limitar-se ao

événementiel. Mas como é que se explica a capacidade que a argumentação histórica

revelou para construir enredos, para recorrer à comparação e à analogia e para ser

fonte da construção de exemplaridades?

Sabe-se que, para urdirem a sua trama, alguns dos novos historiadores explicitaram (comummente nos proémios dos seus escritos) as suas escolhas metodológicas respeitantes às fontes (escritas e sobretudo orais) e não esconderam o cariz tópico e seletivo do seu objeto. Daí que, nas suas respetivas escalas espaciotemporais, tivessem elaborado não só cronologias – Timeu (352-256 a.C.), com as suas célebres tábuas olímpicas, foi um bom exemplo da melhoria desta prática –, mas também micrototalizações explicativas. E, cientes de que estavam a afastar-se do mito, nos seus melhores exemplos, eles tiveram igualmente consciência da função social e cívica da sua escrita: esta devia fixar feitos comprovadamente

verdadeiros para que não fossem rapidamente varridos da memória.

Também não pode ser diminuído o contributo que essa historiografia queria dar, em dialética ou independentemente das tendências holísticas e necessitaristas da cosmovisão dominante, à valorização do particular, do singular, da diferença e, até, do aleatório, facetas que a metafísica desvalorizava. E daqui resulta esta outra constatação: as objeções de Aristóteles ajudam a inteleção dos contornos do debate desencadeado pela novidade heroditiana – pelo menos no que tange aos nexos da história com a poesia e com a metafísica – e a refletir sobre a influência de outros saberes nas investigações históricas, mormente os ligados à technê, ou melhor, à

medicina e à retórica.

Com efeito, e como tem sido justamente lembrado (Carlo Ginsburg e Joana Duarte Bernardes), existe uma longa tradição na cultura ocidental que coloca a historiografia como “serva” da retórica (ou da oratória). Todavia, nem sempre se frisa que Aristóteles falou em três géneros de retórica, definidos a partir da relação que cada um mantém com o tempo e com os efeitos performativos que visava. São eles: a retórica deliberativa, a retórica epidítica e a retórica judicial. A que delibera

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tende a enfatizar a dimensão futurante do tempo, “pois aconselha sobre eventos futuros” e age por exortação; na epidítica, “o tempo principal é o presente, visto que

todos louvam ou censuram eventos atuais”, tentando convencer o auditório por

dissuasão; e a terceira, como a sua tarefa é julgar, a escala temporal privilegiada é

o que aconteceu, isto é, o passado, “pois é sempre sobre atos acontecidos que um

acusa e outro defende”, o que impõe a necessidade do apelo ao testemunho (e à prova). Devido a tais caraterísticas, a retórica epidítica utiliza mais a amplificação, a

deliberativa, os exempla – “é com base no passado que adivinhamos e julgamos o

futuro” –, e a judicial, os entimemas, “pois o que passou, por ser obscuro, requer

sobretudo causas e demonstrações” (Retórica).

Aqui radica a especificidade desta última. Tendo por finalidade desvendar a Justiça, ela necessita de “falar de factos anteriores”, pelo que, ao contrário dos outros géneros, é obrigada a recorrer a provas “técnicas”, a saber: às leis, a testemunhas, a contratos, a confissões sob tortura, a juramentos. Sem a reconstituição objetiva do que aconteceu, não haverá aplicação da Justiça, condição essencial para que a comunidade política possa evitar os efeitos caóticos da hybris, logo, do arbítrio, da

anomia e, em termos políticos, da tirania, da oligarquia e da demagogia.

Logicamente, na prática, o retor podia misturar as características destes três tipos de retórica. Todavia, insinuar o futuro por exortação é atitude bem

diferente da prática de dissuasão, e ambas pouco têm a ver com a busca de causas

e demonstrações. Por isso, concordamos com aqueles que têm visto na retórica

judiciária (em conjugação com o impacto do corpus hipocraticum) a tecnhê que mais

influenciou a nova historiografia grega.

Historiador do “tempo presente” e etnogeógrafo, Heródoto, nas suas investigações (historei, apódexis), confessou que as fontes mais credíveis eram as que

provinham das suas próprias observações diretas (ópsis). Nesta ótica, mostrou-se

mais cauteloso perante as fontes escritas e as informações alheias, que deviam ser encaradas como meras notícias que o historiador-investigador não era obrigado a

seguir. E esta atitude metódica era aconselhada pela própria semântica da palavra “investigação”, pois, como tem sido corretamente sublinhado por muitos estudiosos do tema, hístor significava, originariamente, testemunha ocular e, posteriormente, aquele que examina testemunhas e obtém a verdade através da indagação. Todavia, Heródoto não

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só procurou informações (historei), mas também conjeturou e deduziu (semánei)

(François Hartog, 1996 e 2005). Isto é, a narrativa conjugava o que ele próprio viu

(autopsia) e investigou com juízos mais gerais e engrandecedores (Heródoto, Histórias,

2.99). Não negava por inteiro valor informativo àquilo que tinha ouvido, mas o seu

uso, assim como o das fontes escritas, era supletivo em relação aos dados recolhidos pela vista e requeria uma maior vigilância crítica. No privilégio conferido à visão – por esta estar mais próxima do cérebro? –, residia o poder que o hístor tinha para

dirimir controvérsias, capacidade que o convidava a posicionar-se no papel de árbitro, ou melhor, e como acontecia no paradigma judiciário, de juiz (H. Arendt, 1968; G. Marramao, 1989; E. Benveniste, 1969).

Não por acaso, as raízes indo-europeias destes vocábulos não eram estranhas à família dos termos que nomeavam a atividade de juiz-testemunho e da justiça. Isto confirma o relevo dado às evidências da visão e ajuda a perceber por que é que, para os gregos, este tipo de “histórias” descrevia, dominantemente, o passado recente. Especialistas em procedimentos judiciais, os historiadores davam particular atenção à acribia (à justeza) da observação direta, ou, segundo

o modelo hipocrático usado na arte médica (faceta que Joana Duarte Bernardes tem estudado), à semiótica do corpo e à depuração (dissecação) do testemunho (Tucídides), fonte histórica por excelência.

Um bom sinal do lugar e do Zeitzgeschichte de onde o historiador “falava”

encontra-se na presença, no interior dos textos (normalmente nos proémios), de expressões que elevam o “eu vi” (ou o “eu digo”) a garante de veracidade. Diga-se que o empolamento da vista e das fontes orais teve traduções extremas, chegando mesmo a desencadear críticas, como aquelas que, no período helenístico, foram feitas ao historiador Timeu, acusado de usar fontes escritas em excesso. Também por isso esta historiografia é, de certo modo, uma “história do tempo presente”, embora, quando a retrospetiva faz incursões nos períodos mais antigos – e, portanto, não vistos –, ela acabe por dar guarida (como em Hecateu de Mileto e em Heródoto) a relatos míticos e tradicionais (François Châtelet, 1974), ou caia em conjeturas, debilidade que outros, começando por Tucídides, se esforçaram por superar.

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“viu” com aquilo que tinha sido visto ou ouvido por outros. Para isso, procurou fiabilizar o valor dos testemunhos em confronto com o que ele próprio tinha vivenciado, opção coerente com esta sua confissão: “quanto aos feitos que foram praticados na guerra, esforcei-me por escrever não sobre informações de alguém que porventura lá estivesse, nem como pessoalmente me parecia provável, mas recolhendo dentro do possível todos os factos nos quais estive presente ou que por outros me foram contados. Foi difícil descobrir os factos, uma vez que os que tinham estado presentes nos vários acontecimentos não davam a mesma versão, tendo eles próprios lá estado, mas de acordo com a sua simpatia, por um lado, ou pelo outro, ou segundo o que era a sua recordação”.

Seja como for, deve perguntar-se se esta novel historiografia rompeu, por inteiro, com a mitologia oral, discurso que apontava para a suscitação, no ouvinte, do espanto e do sublime. Ao contrário, com a escrita, o trabalho de convencimento do leitor, ou de quem ouvia ler, dava mais relevância a juízos argumentativos, por mais excecionais e exemplares que fossem os factos narrados. E não há dúvida de que, a partir dos séculos V e IV a.C., diminuiu a credibilidade do mito e aumentou a confiança nas capacidades da razão inquiridora, como, ao nível do filosofar, se verifica na sofística e, principalmente, no diálogo socrático. Portanto, será útil frisar que tanto Heródoto como Tucídides, valorando a observação (autopsia) e a

comparação entre as versões que circulavam sobre os mesmos acontecimentos, seguiram, regra geral, o seu próprio testemunho (caso tivessem presenciado o que narraram), ou as versões que lhes pareciam mais prováveis.

Neste pano de fundo “presentista”, a diferença entre ambos estava, sobremaneira, na finalidade dos seus discursos: o do primeiro, ao abrir-se a digressões míticas, indicia uma escrita ainda estruturada para ser lida em voz alta, maneira de, através da mediação do texto, o autor, como os velhos aedos, chegar a um público mais largo e dominantemente analfabeto. Destarte, se as suas Histórias,

certificadas por observações e investigações, queriam fixar o que o narrador ouviu e sobretudo viu, o certo é que elas também contêm derivas de cunho maravilhoso, principalmente quando remontam a períodos mais antigos do que as Guerras Médicas, o seu grande tema. Com isso, Heródoto fez coexistir o “antigo” com o “moderno”, numa combinatória em que os propósitos cognitivos coexistem com

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o intento de despertar prazer através de efeitos miméticos (Jorge Lozano).

De qualquer modo, os seus objetivos queriam ir mais longe do que os dos mitógrafos e de logógrafos como Helânico de Lesbos e Ferecides de Leros. Não obstante isso, Heródoto utilizou estes últimos como fontes e não desprezou os dizeres dos oráculos e as fontes literárias (desde a poesia antiga, a literatura contemporânea e as inscrições, até aos registos burocráticos). Mas tudo isto não basta para se concluir que a historiografia irrompeu, no seio das narrativas sobre o passado, como uma rutura radical, tanto mais que só em Tucídides a busca da acribia (a conformidade com os factos) quis excluir, com ênfase, os “dizeres”

que não fossem passíveis de comprovação, ou, pelo menos, não tivessem grande probabilidade de serem verdadeiros. Consequentemente, e ao contrário de Heródoto, o ateniense não só não incorporou o maravilhoso na sua narração, como a causalidade que pôs em ação prescindia de qualquer força transcendente, característica que se reflete no tom mais seco e “secularizado” da sua escrita (lição que não teve seguimento, pois um quase-contemporâneo como Xenofonte voltou a reconhecer a influência dos deuses).

No entanto, quer Heródoto quer Tucídides acabaram por atribuir a mesma função social à escrita da história: o primeiro quis garantir a construção e a transmissibilidade de uma “memória justa”, porque objetiva; o segundo, apesar de lhe “faltar o fabuloso”, estava convicto de que a sua obra seria útil a todos aqueles que estivessem interessados em “ver com clareza o que aconteceu”, pois, se o fizessem, logo perceberiam que o autor investigou, não “para ganhar prémios ao ser ouvido de momento, mas como um legado para sempre”.

Na perspetiva metafísica dominante, os acontecimentos selecionados pelos historiadores quebravam “o movimento circular da vida diária, no mesmo sentido em que o biós retilinear dos mortais interrompe o movimento circular da vida

biológica. O tema da história são essas interrupções – o extraordinário, em outras palavras”. Mas, se foi assim, poder-se-á aventar, sem mais, que os grandes feitos e obras de que são capazes os mortais, e que constituem o objeto da narrativa histórica, não podiam ser vistos como partes de um processo mais abrangente, porque “a ênfase recai sempre em situações únicas e rasgos isolados” (H. Arendt)? Se, com esta afirmação, se deseja frisar que os gregos, ao contrário da religião

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judaico-cristã e da Modernidade secularizada, não pressupunham a existência de qualquer logos que, imanente aos eventos humanos, se explicitaria num finalismo

temporal indefinidamente progressivo e realizável no futuro histórico, a tese aceita-se. Contudo, as narrativas historiográficas não ousaram fazer correlações mais gerais?

Frise-se que, em alguns casos, a propensão da nova história para a

comparação (e para a analogia) revelou a existência de mudanças qualitativas no

devir, como, por exemplo, acontece em Tucídides quando, em contraste com a sua contemporaneidade, caracterizou o estado dos gregos antigos como “barbárie”. Contudo, daí não foram inferidas quaisquer sistematizações de cunho universalista, tanto mais que elas ocorreram num contexto em que era forte a crença no ritmo cíclico do tempo e o temor de que a sempre possível queda da ação humana na hybris

acelerasse o regresso ao caos primitivo. É certo que nem todos compartilharam desta visão ou, pelo menos, nem todos a plasmaram nas suas narrativas. E deve salientar-se que, então, o ofício historiográfico estava voltado para o registo do acontecido no mundo fenomenológico, onde se objetivava a irreversibilidade linear do biós finito, erosão que só a praxis, geradora da fama, poderia vencer. De onde

a tendência para se narrar situações-tipo e exemplares, prática seletiva que a ideia cíclica de tempo justificava.

No entanto, esta parece estar ausente do texto de Heródoto, conquanto não seja estranha à sucessão das tipologias políticas, ordenamento já sugerido por Homero e que, nos séculos V e IV a.C., se encontra em Platão e Aristóteles e, mais tarde, em Políbio. De facto, herdeiro da cultura histórica grega, este último narrou a grandeza do período original de Roma dentro de uma perspetiva modelada pela reversibilidade subjacente à visão cíclica do tempo. Esta maneira de pensar não foi exclusiva, embora tenha sido particularmente relevada nos períodos em que o estoicismo e o neoestoicismo foram muito influentes. Defende-se, assim, que, se a perfilhação de uma ideia de tempo cíclico em Tucídides é discutível (como salientou Momigliano), sem ela não se enraizaria tão fortemente a crença no magistério do acontecido (e do que sobre ele se escreveu), vocação que Cícero soube sintetizar na célebre divisa historia magistra vitae est.

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limitaram a fazer descrições fragmentadas. Apesar das caraterísticas singulares e irrepetíveis dos factos, as narrativas mais relevantes elegeram temáticas gerais – como a da valorização das guerras decisivas e a dos momentos quentes em que ocorreram mudanças “constitucionais” – e aplicaram critérios de seleção e raciocínios comparativos, causais, sequenciais e analógicos, o que seria impossível caso a

singularidade dos eventos impedisse generalizações, por mais limitadas que estas fossem. Na verdade, as “investigações” construíram conjuntos, embora limitados, de factos, mas para os conectar de um modo que não é exclusivamente aditivo e cronológico, porque a trama, mesmo quando descontínua, acaba por dar-lhes

forma, ao integrá-los numa escrita de índole biográfica e centrada em grandes

acontecimentos e em grandes homens, simultaneamente seus autores e vítimas. De onde esta outra questão: se, como alertava Aristóteles, a dimensão fenomenológica

dos acontecimentos bloqueava, sincrónica e diacronicamente, a ascensão da historiografia à esfera das generalizações, a modéstia cognitiva das “investigações” não permitia apreender totalidades com princípio, meio e fim que acabam por dar sentido às singularidades e contingências que narram?

Os historiadores gregos (e romanos) perceberam que os factos não valiam só por si, porque a mediação da escrita ordenava a contingência e a singularidade das situações únicas e das ações individuais. Daí que a verdade do narrado não estivesse tanto na adequação dos enunciados à realidade atomizada, mas residisse, sobretudo, na correlação, mesmo quando implícita, entre os traços (remotos, ouvidos ou vistos) do acontecido e os pré-conceitos de quem os interpelava e contava. Deste modo, apesar do seu aparente cariz doxográfico, a nova historiografia aspirava à veracidade e queria cumprir um dever de memória que, nos seus melhores exemplos, não dispensava a certificação do narrado.

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O mister da história: entre o memorar e o conhecer

Estas preocupações anamnéticas da historiografia clássica também a aproximavam da retórica. É que, enquanto fixação escrita de feitos que não deviam ser esquecidos, ela podia ser lida como um repositório de exempla que servia bem as amplificações e exortações retóricas, como ocorria na retórica deliberativa e/ou epidítica.

No entanto, esta utilização só era possível porque a trama que cerze a narração dos factos carreava ou consentia a idealização e a tipificação do fragmentado, contingente, irreversível e finito (de acordo com a metafísica dominante), maneira de a retrospetiva ganhar em eficácia social o que perdia em acurada vigilância crítica. No fundo, esta possibilidade generalizadora, por mais racionalizada que fosse, dava uma certa continuidade quer à visão mítica do tempo, quer, como se nota em Tucídides, a uma ideia a-histórica e, por conseguinte, omnipresente da natureza humana no transcurso do devir humano. A este propósito, recorde-se o que escreveu na sua História da Guerra do Peloponeso: “a ausência de fabuloso na

minha narrativa pode parecer menos agradável aos ouvidos, mas todos aqueles que quiserem ter uma visão clara dos acontecimentos passados e dos que, um dia, dado o caráter humano, venham a acontecer de novo e de forma semelhante, julgá-la-á útil e isso basta”.

Em outros casos, a configuração cíclica do tempo cósmico foi diretamente convocada, com destaque no ordenamento da sucessão das formas de “constituição” ou de governo, onde a presença do princípio da anakyclosis foi muito comum. Cada

uma delas, tarde ou cedo, geraria o seu antónimo, degradação que a praxis humana

podia adiar, mas não definitivamente vencer. De onde a permanente ameaça de regresso a soluções “constitucionais” já experimentadas.

Mais concretamente, esta classificação (ideal) é inseparável do processo circular do tempo cósmico. Já esboçada por Homero, ela encontra-se em outros escritores gregos e romanos (Homero, Aristóteles, Heródoto, Tucídides, Políbio e Cícero), com intensidade e modalidades distintas, é verdade, assim como na

anakyclosis teorizada por Platão. E, em termos de “tipos-ideais”, ela estava assim

organizada: à monarquia (cuja expressão degenerada era a tirania), seguia-se a aristocracia (de onde podia resultar a oligarquia) e, a esta, a democracia, que tinha

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na oclocracia e na demagogia a sua face desmesurada. Como estas inversões, tarde ou cedo, aconteceriam, Cícero, no seu Tratado da República, ensinava que nenhuma

tipologia era “perfeita” porque “de um rei desponta um senhor; dos optimates

‘aristocratas’ uma fação, do povo a turbamulta e a confusão”. Por isso, a máxima concretização possível da harmonia e, consequentemente, a máxima realização do bem comum exigia que se aproveitasse o melhor que cada uma delas continha. Em suma, o ritmo cíclico do cosmos, a raiz a-histórica da natureza humana, a fama e a glória – expectativas que conduziam a uma praxis civicamente mais virtuosa – são

as traves-mestras que devem ser chamadas a terreiro para se entender o magistério da história, função exemplarmente sintetizada por Cícero nesta fórmula lapidar: “historia vero testis temporum, lux veritatis, vita memoriae, magistra vitae, nuntia vetustatis, qua voce alia nisi oratoris immortalitati commendatur” (Cícero, De Oratore, II, c.9, 36 e c.12, 51).

Por ela, adjudicava-se à história a núncia missão de desvelar o passado sob a luz da verdade e de, com isso, oferecer exemplos (plena exemplorum est historia)

(Reinhart Koselleck) que, ontem como hoje, ligassem o que foi ao que devia ser no presente e no futuro. Séculos depois de Heródoto, confirmava-se que a escrita da história (e não só a res gestae), para agir como ars memoriae, teria de ser lux veritatis.

Só em nome desta, e não da mentira – dialética já equacionada por Heródoto –, ela seria, como relembrou Políbio, lição para uma “vida justa”. Portanto, se a narrativa historiográfica se propunha ser a memória da vida, esse papel exigia

que ela também fosse a morada da vida da memória. E, sem a mediação escrita,

a exemplaridade do passado, que só do presente podia ser evocada, sintetizada e tipificada, dificilmente podia fugir à cadeia degradadora e amnésica do tempo, ou

à suposição da omnipresença de uma imutável natureza humana. Este tinha sido o testamento de Tucídides, significativamente retomado, mil anos depois, por um atento comentador das Décadas de Tito Lívio e defensor das clássicas tipologias

“constitucionais”. Referimo-nos a Maquiavel e a esta sua advertência: “o resultado é que os que se dedicam a ler a história ficam limitados à satisfação de ver desfilar os acontecimentos sob os olhos sem procurar imitá-los, julgando tal imitação, mais do que difícil, impossível, como se a sua ordem, o seu rumo e o seu poder tivessem sido alterados”.

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no pensamento ocidental até aos nossos dias – entre a mediação presentista das narrações sobre o passado, a singularidade ontológica dos eventos e a eleição de “grandes acontecimentos” (exemplo: a guerra do Peloponeso) ou de “grandes homens”, o uso social da história, no seio de uma experiência a-histórica ou mesmo cíclica do tempo, acabava por sugerir que, em termos globais, o futuro tinha no passado a previsão do que nele iria acontecer. Pode mesmo dizer-se que a construção de exempla era tipificada, o que enfraquecia a sua capacidade de

comprovação e, em muitos casos, abria portas à continuidade dos ecos da velha narrativa mítica.

Significa isto que, se a historiografia da prova contribuiu para a erosão do mito, a sua tradução retórica tendeu a dar-lhe uma nova vida, ainda que de um modo cada vez mais degradado. E a hegemonia das visões cíclicas do cosmos – e da humanidade como género a ele umbilicalmente ligada – prolongou-a, mesmo depois do avanço da cristianização. Por outro lado, há séculos que se sabia que os efeitos sociais da depuração conducente à exemplaridade seriam mais proficientes se a diegese estivesse organizada à volta das ações e feitos dos “grandes homens” – sucessores e sucedâneos dos arquétipos cosmogónicos primordiais. De onde a narrativa historiográfica não ter dispensado o recurso à biografia, prática que, sintomaticamente, arrancou no século V a.C. e que, mais tarde, terá nas Vidas Paralelas, de Plutarco, e na obra Os Onze Césares (46 a.C.-120

d.C.), de Suetónio, as suas melhores concretizações. E, neste terreno – mais do que em qualquer outro –, a evocação tanto podia ser “luz da verdade”, como o facho obscuro da mentira.

De facto, o florescimento da historiografia ocorrido na Grécia do século V a.C. também se refletiu no género biográfico (Momigliano), maneira outra de dar expressão à singularidade dos acontecimentos e aos efeitos imprevisíveis da ação individual. Afinal, esta literatura acabava por insinuar que o homem, através da praxis, possuía uma pequena margem para fugir à inexorabilidade do destino.

Daí que, nas novas narrativas historiográficas, a tikê nem sempre conduzisse ao

fatalismo absoluto, e o fado só tivesse uma total capacidade destruidora quando o indivíduo caía na hybris, a grande porta por onde entrava o destino trágico da vida

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