• Nenhum resultado encontrado

Manifestações presentistas em um tempo desorientado Brasil,

Junho de 2013 foi para o Brasil um mês atípico. As ruas das principais cidades brasileiras foram tomadas de assalto por um conjunto de manifestações populares que tinham como objetivo inicial protestar contra o aumento das tarifas do transporte público e que logo se entendem a um conjunto heteróclito de demandas que variavam desde políticas assistenciais básicas a reivindicações memoriais. Em semanas o movimento adquire contornos antipartidários e, em seguida, uma forte coloração antipolítica.

Paralelamente, a presidenta da República, Dilma Roussef, vê sua popularidade desabar. De 70% de aprovação caiu para 30% em junho. Em pronunciamento à nação em 21 de junho, ela destaca que está atenta e inaugura oficialmente um primeiro recuo ao passado recente: “A minha geração lutou muito para que a voz das ruas fosse ouvida. Muitos foram perseguidos, torturados e morreram por isso. A voz das ruas precisa ser ouvida e respeitada”.33

Isso não significa que ela seja conivente com a violência e desordens praticadas por alguns manifestantes, explica. Pelo contrário, Dilma garante: “vamos manter a ordem”. O que poderia parecer uma atitude meramente repressiva é compensada por promessas: a elaboração de um Plano Nacional de Mobilidade Urbana; a destinação de cem por cento dos recursos do petróleo (os royalties provenientes

da camada de pré-sal) para a educação; e, por fim, contratar milhares de médicos do exterior com objetivo de atender o Sistema Público de Saúde (o plano Mais médicos). Tais propostas, sobretudo a segunda e a terceira, foram aprovadas em um

lapso de tempo surpreendente no Congresso Nacional, reforçando a concepção

33 UOL. Notícias. Leia a íntegra do pronunciamento da presidente Dilma. Brasília, 21-06-2013, [consult. 12-10- 2015] Disponível na Internet. URL: <http://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2013/06/21/ leia-a-integra-do-pronunciamento-da-presidente-dilma.htm>

de que estavam completamente despreparados para tratar com acontecimentos desta natureza. E, de certa forma, confirmando igualmente uma característica do regime de historicidade presentista, que nos termos de François Hartog: “cada vez mais estamos concentrados em respostas imediatas ao imediato. É necessário agir em tempo real, o que é levado até a caricatura entre os políticos.”34

Ouvir as ruas, finalmente, para Dilma significa que: “Precisamos - explica a presidenta no mesmo pronunciamento - de suas contribuições, reflexões e experiências, de sua energia e criatividade, de sua aposta no futuro e de sua capacidade de questionar erros do passado e do presente”. Mas de qual passado se trata? A qual presente ela se refere? Se considerarmos que alguns dias depois, o governo proporá um plebiscito para discutir a reforma política e mesmo uma Assembleia Constituinte, então notaremos que o passado é o passado recente, pós-Constituição de 1988, e o presente o tempo em que se admite erros e se autocorrige, mas destituído da ideia de futuro. Fazer uma nova constituição implica em um tempo político e social que o Brasil, ou sua elite dirigente, parece não dispor. Talvez este seja um dos motivos pelo qual a proposta foi simplesmente esquecida pelos políticos, mídia e manifestantes.

Em meados de julho, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva intervém no debate. Em matéria publicada no The New York Times, intitulada “The Message

of Brazil’s Youth”, ele procura recuperar a dimensão política e partidária das manifestações. Autoelogiando seu governo e da sua sucessora, ele diz não perceber nos protestos uma rejeição à política, mas justamente o contrário: o aprofundamento da democracia brasileira.35 Participantes de uma era digital, enquanto os políticos viveriam em uma era ainda analógica, esses jovens que com “seus dedos rápidos tomaram as ruas do mundo” (“Young people, quick fingers on their cellphones, have taken to the streets around the world”), não viveram, salienta Lula, tal como Dilma já o fizera em seu pronunciamento, a ditadura civil- militar, nem a economia inflacionária dos anos 1980, e lembram-se pouco dos anos 1990, quando o desemprego deprimia o país. Em outras palavras, o ex-presidente dá a entender que eles não têm cultura histórica, nem memória; eles vivem apenas

34 HARTOG, François - Croire en l’histoire. op. cit., pp. 101-102.

em um presente com aparência de eternidade!

Se, por um lado, para Lula e também para Dilma, buscar o passado em que tiveram atuação política seria um remédio para esta amnésia social da juventude, por outro, no cotidiano das manifestações, ela age como veneno social, na medida em que possibilita a emergência de discursos comparativos que esvaziam mais uma vez o passado: 2013 passa a ser vivido, por grupos articulados ou desarticulados politicamente, como um preâmbulo golpista equivalente aos anos 1963-64, ou como um fantasma da ditadura, positivo ou negativo.

Assim, não é surpreendente que em julho ocorra uma manifestação em São Paulo, em plena Avenida Paulista, “contra a ditadura comunista” e pelo retorno dos militares ao poder.36 Ou que no Rio de Janeiro, a Associação dos Professores da Universidade Federal do Rio de Janeiro, uma das mais importantes do Brasil, divulgue pela cidade um outdoor com os seguintes dizeres: “Verdade, Memória

e Justiça: Ditadura nunca mais!”. A história subtrai-se em nome da verdade, da memória e da justiça: a história que se repete, ou que estaria se repetindo, é representada nas imagens e nas datas. De certa forma, mais do que um alerta ciceroneano – historia magistra vitae – ela sinaliza para a invasão dos anos 1960 no

presente, para a presentificação e o estabelecimento de um tempo homogêneo: 2013 é 1964!

As manifestações que ocorreram em 2013 no Brasil obviamente relacionam- se com o legado de seu passado recente. Mas também com uma história globalizada, cujo signo de reconhecimento é o www, que opera fortemente relacionada a temas

locais: “os efeitos do global sobre o local, o glocal, e um certo efeito de retorno

sobre o global desse glocal”.37 Não parece outra a razão para as manifestações, em certo momento, serem comparadas à chamada primavera árabe, que por sua vez

mimetizava a primavera dos povos de 1848... Aqui parece aplicável a correção que

Marx faz a lei hegeliana da repetição histórica com uma crítica irônica à imitação:

36 Último Segundo. Manifestação pela volta dos militares reúne menos de 100 pessoas na Paulista. São Paulo. 10-07-2013. [consult. 12-10-2015] Disponível na Internet. URL: http://ultimosegundo.ig.com.br/brasil/ sp/2013-07-10/manifestacao-pela-volta-dos-militares-reune-menos-de-100-pessoas-na-paulista.html> 37 HARTOG, François - “De l’histoire universelle à l’histoire globale? Expériences du temps”. Le Débat,.2009,

2, nº 154, pp. 53-66. Para uma abordagem diferente, mais vaticinador e de certa forma prescritivo ver CHRISTIAN, D. - “The return of universal history”. History and Theory, 49, 2010, p. 6-27.

à tragédia sucede a farsa!38

Essa dicotomia, local e global, longe e perto nos termos de Lévi-Strauss, tem levado muito historiadores à aporia e a ausência de compreensão histórica. O entendimento do caso brasileiro deve ainda considerar uma duração mais ampla: monarquia escravista isolada entre repúblicas até o final do século XIX, nos desenvolvemos com base em uma cultura política autoritária que atravessa o século XX, e que, embora o clima democrático em que vivemos desde 1988, insinua-se de modo ameaçador e ingênuo em meio às manifestações contemporâneas.

Por conseguinte, o problema do passado recente, destituído dessa historicidade, é que se, por um lado, ele é recente para a geração nascida depois dos anos 50, por outro lado, não o é para a dos jovens nascidos depois da redemocratização (1985). Assim, não é surpreendente o império da história do tempo presente em nossas universidades e mesmo nos livros didáticos do ensino fundamental e médio. Seria, no entanto, interessante pesquisar por que os jovens consideram que se vive em uma ditadura, ou por que muitos antigos a querem de volta? A história do tempo presente e seus mestres não deveriam dar conta dessas questões? Não deveriam ser capazes de explicar conceitualmente o que é uma ditadura, para ambos, jovens e adultos?

Inúmeras questões emergiram nestes últimos meses e seus efeitos ainda não são mensuráveis. Por exemplo, assim como a presidenta Dilma perdeu popularidade, ela a recuperou, e, hoje, ostenta, após a eleição de 2014, indicadores desfavoráveis. As manifestações se arrefeceram, mas a ideia de que tudo se repetiria em algum momento em 2014 foi um fantasma que assombrou políticos, empresários e a mídia. Além da Copa do Mundo, da eleição presidencial, em 2014 houve a “comemoração” dos 50 anos do Golpe Civil-Militar de 1964. 2013 acabou totalmente confundido com 2014: um só presente. Enfim, se para Hartog, o artífice da ideia contemporânea do presentismo, vivemos em um período saturado

de presente e de parada do tempo no qual “amanhã já é hoje”, então, no Brasil, hoje já é amanhã.39

38 MARX, Karl - “O 18 Brumário de Luís Bonaparte (1852)”. Obras escolhidas. São Paulo: Alfa-Ômega, v. I, s/d,

p. 203.