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A consolidação de um campo disciplinar

Outro autor que em fase mais tardia da sua carreira viria a prestar atenção sistemática à história das doutrinas e teorias económicas em Portugal foi Armando Castro.19 A ele se deve a fixação de um modelo interpretativo coerente, de inspiração metodológica marxista, sobre a função legitimadora, no plano social e político, das construções conceptuais e elaborações doutrinais associadas ao desenvolvimento da base material da economia capitalista.

A mesma orientação programática está presente na abordagem que Armando Castro produziu sobre o modo de interpretação da história económica portuguesa,

17 SÉRGIO, António – Antologia de Economistas Portugueses. Séc XVII. Lisboa: Biblioteca Nacional, 1924.

18 MAGALHÃES, José Calvet – História do Pensamento Económico Português, da Idade Média ao Mercantilismo.

Coimbra: Imprensa da Universidade, 1967.

19 Atendendo ao âmbito cronológico aqui considerado, não se discutem esses textos de Armando Castro publicados depois de 1974. Para uma apreciação desses e de outros contributos posteriores da mais recente historiografia do pensamento económico português, cf. CARDOSO, José Luís – “A recente historiografia do pensamento económico”, Ler História. Lisboa, nº 21 (1991), 146-153.

conforme o seguinte excerto bem expressa:

Pensamos ser preferível abordar a nossa história económica de forma a compreenderem-se facilmente as leis económicas e a evolução das relações sociais de produção nos seus aspectos fundamentais. São deste género os estudos histórico- económicos que apresentam verdadeiro interesse científico e cultural, visto que a simples compilação de dados retrospectivos, sendo de interesse para quem estuda estas questões, não fornece a explicação causal dos factos; para atingir este escopo é necessário conhecer as classes sociais em acção, o tipo de relações existente entre elas e examinar as repercussões do desenvolvimento das forças produtivas materiais sobre as relações sociais de produção20.

A fidelidade a um modelo de interpretação coerente, mas com resultados de pesquisa empírica bem mais frutíferos, foi também cultivada por Vitorino Magalhães Godinho, sem dúvida um dos autores que mais e melhor contribuiu para o desenvolvimento de um cânon interpretativo da história económica e social portuguesa.21

Sem nunca perder a paixão pelo arquivo, o respeito pela fonte, a ânsia de bem cuidar do documento, a história praticada por Vitorino Magalhães Godinho na linha da ecola francesa dos Annales é especialmente exigente no que se refere ao processo

de construção teórica, ao esforço de elaboração de conceitos que permitem melhor entender a sucessão de acontecimentos. Magalhães Godinho nunca fez cedências ao positivismo acrítico de muitos historiadores da sua geração, conforme deixa claro na seguinte passagem:

Está quase tudo por desbravar nestes problemas da vida material e dos laços sociais, conquanto pululem as memórias eruditas sobre os avós de qualquer descobridor e não mais se calem as discussões acaloradas sobre o exacto local do

20 CASTRO, Armando – Introdução ao Estudo da Economia Portuguesa (fim do século XVIII a princípios do século XIX).

Lisboa: Edições Cosmos, 1947, 9-10.

21 Para uma abordagem mais pormenorizada das suas contribuições inovadoras neste domínio, cf. CARDOSO, José Luís – “Vitorino Magalhães Godinho and the Annales School: history as a way of thinking”, e-journal of Portuguese History, vol. 9:2, 2011.

nascimento de qualquer navegante alcandorado à navegabilidade. Impõe-se, portanto, pôr os problemas da criação da

a) história económico-social dos continentes não europeus até à expansão europeia;

b) história económico-social desta expansão e das transformações originárias de tal contacto, do duplo ponto de vista dos europeus e dos indígenas22.

Para Godinho, a história económica e social não pode reduzir-se a uma sequência narrativa de factos positivamente avaliados e encadeados sem nexo explicativo causal. Os acontecimentos minuciosamente relatados e reproduzidos de fontes seguras e insuspeitas têm que ser perspectivados em longa duração e, acima de tudo, mediante um esforço de interpretação que recorre à capacidade de entendimento racional assente na construção de tipos-ideais (na melhor tradição weberiana) ou na formulação de problemas que exigem do historiador explicação e solução. Dois exemplos retirados da sua obra ajudam a compreender o seu posicionamento nesta matéria.

O primeiro exemplo refere-se ao conceito de “complexo histórico-geográfico”, através do qual procurou discernir o encadeamento de estruturas espaciais ou territórios localizados no espaço mas definidos num tempo que tem ritmos e cadências que possibilitam a captação de curtas e longas durações (ou seja: espaços que variam ao ritmo da história). Um complexo onde se estabelecem fluxos e relações económicas, sociais e políticas em escalas espaciais diversas (local, regional, nacional, mundial), onde interagem actores e instituições com sentidos próprios e dinâmicas articuladas, onde se definem práticas culturais e rituais que conferem especificidade às realidades históricas analisadas23. O estudo das redes e frotas comerciais no Índico e Atlântico Sul, numa perspectiva ampla de estudo dos mercados à escala do mundo, permitiu a Vitorino Magalhães Godinho exercitar a validade heurística deste conceito onde se enlaçam as relações e tensões dialécticas entre espaço e tempo, conjuntura e estrutura, curta e longa duração, micro e macro análise. Trata-se, por conseguinte,

22 GODINHO, Vitorino Magalhães – História Económica e Social da Expansão Portuguesa. Lisboa: 1947, 11.

23 GODINHO, Vitorino Magalhães – “Complexo histórico-geográfico”. In Joel Serrão (org.), Dicionário de História de Portugal. Lisboa: Iniciativas Editoriais, 1966.

de um conceito que lhe permitiu explorar os caminhos que melhor conduzem à compreensão histórica de fenómenos sociais complexos.

O segundo exemplo diz respeito ao conceito de Portugal como “sociedade bloqueada” que Magalhães Godinho desenvolveu num dos seus mais notáveis (e também um dos mais polémicos) exercícios ensaísticos24. Serviu-lhe esta noção para explorar de modo coerente vicissitudes de bloqueio em diferentes momentos da história portuguesa, os quais ilustram ou constituem pretexto para abordagem dos problemas do atraso, da dependência e da decadência, do desperdício ou mau aproveitamento de recursos, de mentalidades e culturas pouco propícias à inovação e avanço do conhecimento. Trata-se de um reencontro com Oliveira Martins e António Sérgio, uma demonstração inequívoca do peso desta tradição de pensamento na historiografia económica portuguesa.

Numa perspectiva menos apegada à necessidade de operar mudanças paradigmáticas no campo da historiografia económica, cumpre destacar as contribuições de Virgínia Rau que, ao longo das décadas de 1940, 1950 e 1960, dedicou diversos estudos e ensaios a temas de história económica e social do antigo regime25. Os seus trabalhos sobre mercadores portugueses e estrangeiros, feitores e feitorias, banqueiros, construção naval, relações comerciais externas, assim como sobre o pensamento económico da era mercantilista, revelam um extremo cuidado na análise de fontes e na explicação da sua pertinência exemplificativa de problemas históricos relevantes. E revelam também uma preocupação fundamental no enquadramento de factos e personagens, na percepção dos fluxos de mercadorias, capitais e moedas, e também na análise de condições técnicas, regimes contratuais, relações de trabalho e de poder.

Um último autor a merecer atenção neste breve balanço da historiografia económica portuguesa anterior a 1974 é o de Jorge Borges de Macedo.26 Os seus trabalhos são sobretudo animados pela necessidade de contrariar as interpretações

24 GODINHO, Vitorino Magalhães – A Estrutura da Antiga Sociedade Portuguesa. Lisboa: Arcádia, 1971.

25 Reunidos em RAU, Virgínia - Estudos sobre a História Económica e Social do Antigo Regime. Lisboa: Editorial

Presença, 1984.

26 Para uma visão de conjunto das suas contribuições para a renovação da história económica e da história do pensamento económico, cf. CARDOSO, José Luís – “Jorge Borges de Macedo: Problems of the History of Portuguese Economic and Political Thought in the Eighteenth-Century”, e-journal of Portuguese History, vol

que acentuavam o carácter subalterno das ideias e práticas económicas originadas em autores portugueses representativos de uma elite ou escol nacional. Procurando traçar novos caminhos para a compreensão dos processos de modernização e de bloqueio da economia portuguesa, Macedo valorizou a importância das conjunturas políticas e diplomáticas e os contextos de concorrência externa que afectavam a capacidade de desenvolvimento dos sectores de actividade económica, sobretudo do sector industrial. Produziu estudos inovadores, nos quais demonstra manuseamento hábil e problematização de fontes arquivísticas até então pouco ou nada trabalhadas e que contribuíram de forma decisiva para renovar os legados de interpretação da situação económica no tempo de Pombal, da história da indústria no século XVIII, do Tratado de Methuen, ou do bloqueio continental. Porém o seu mais sólido contributo para a compreensão dos problemas do desenvolvimento português foi a interpretação que nos deixou sobre a história dos equipamentos industriais, das actividades bancárias e portuárias, assim como sobre as estratégias económicas e políticas definidas por decisores soberanos no século XVIII, perante um quadro contingencial de relações internacionais complexas27.

Epílogo

No final do período aqui considerado emergiu uma corrente de pensamento associada à reflexão desenvolvimentista protagonizada por economistas e sociólogos com fortes ligações à escola estruturalista latino-americana que animou as suas sugestivas contribuições através dos trabalhos da Comissão Especial das Nações Unidas para a América Latina (CEPAL). Os escritos e programas de acção de Raúl Prebisch e de Celso Furtado tiveram os seus seguidores em Portugal, quer no ambiente renovado do ensino da economia no Instituto Superior de Ciências Económicas e Financeiras (ISCEF), quer no círculo mais recatado de cientistas sociais colaboradores do Gabinete de Investigações Sociais (GIS) e da revista Análise Social. Tratava-se, afinal, de uma corrente de pensamento económico que tinha em

27 MACEDO, Jorge Borges – Problemas de História da Indústria Portuguesa no Século XVIII. Lisboa: Associação

atenção a importância da história para a compreensão dos bloqueios e das condições favoráveis à modernização e ao desenvolvimento, que reivindicava dos políticos a iniciativa de favorecerem as condições indispensáveis ao rompimento de laços de dependência e das relações assimétricas existentes no país28.

Esta tendência interpretativa manter-se-ia activa muito além do final do período aqui considerado, não obstante as orientações cliométricas de uma nova história económica mais empenhada em proporcionar hipóteses e ensaios de quantificação de dados relevantes sobre o funcionamento da economia portuguesa do que em reactivar o espectro do atraso e da decadência. Mas esses foram já outros tempos de conjunturas críticas que ditaram processos de renovação historiográfica que ultrapassam o âmbito cronológico em que este contributo se esgota.

B I B L I O G R A F I A

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E S B O Ç O D E U M I T I N E R Á R I O

D E P E S Q U I S A

Nuno Gonçalo Monteiro

Instituto de Ciências Sociais, Universidade de Lisboa

Convidado a escrever sobre A história social em Portugal da fundação da Academia Real das Ciências ao final do Estado Novo (1779-1974), gostaria de começar por salientar

que, mais do que apresentar resultados de uma pesquisa sistemática, considero esta uma oportunidade para discutir as formas de tratar o tema proposto.