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A voz da singularidade no império da metafísica

Com efeito, na Poética (1451b, 1-11), o Estagirita salientou que o narrado

nas obras dos logógrafos (visava Heródoto e, indiretamente, Tucídides) era

epistemologicamente mais pobre do que a poesia, que qualificou como “mais filosófica” e “mais virtuosa que a história”, porque o poeta sabia iluminar as situações concretas com ideias gerais, enquanto o historiador se limitava a descrever singularidades impossíveis de generalização. Ora, este juízo tem de ser compreendido a partir da episteme que dominava a visão filosófica grega no século

V a.C. E esta ensinava que, na taxinomia dos saberes, a metafísica, com a sua busca radical do Ser, era a primeira de todas as ciências. Só o geral, o fixo e o necessário (lá onde reina a anankê) seriam universalizáveis; ao nível fenoménico, onde tudo

aparece como fruto do acaso, e “para quem trate de investigar o que é o contingente, resultará evidente que não haja uma ciência do contingente” (Aristóteles, Metafísica,

XI, 8, 1064). Por isso, as narrativas que davam corpo textual às “investigações” eram

logográficas e, por conseguinte, teriam um valor epistémico menor do que a poesia

(Aristóteles, Poética,1451 a, 36; 1451 b, 10).

É sabido que a menorização aristotélica da obra de Heródoto tem sido retomada por aqueles que, nos nossos dias, tentam reduzir a historiografia, exclusivamente, a uma literatura, ou mesmo a uma ficção. No entanto, para se entender a expressão philosoph oteron (“mais filosófico”) como sinónimo de “mais

científico”, tem de se correlacionar o citado passo da Poética com o que Aristóteles

escreveu no Livro I da Metafísica (981a, 15-16) acerca da hierarquia dos saberes e

causa pouco tem a ver com o seu significado moderno, e o Estagirita não negou a

utilidade relativa, embora filosoficamente subordinada, dos conhecimentos sobre o mundo empírico, fossem eles doxográficos ou, como seria o caso da nova escrita da história, logográficos. Convém frisar ainda que, na Poética, ele polemizou, sobretudo,

com o ataque que Platão, na República (Liv. X), tinha feito à poesia, definindo-a como

uma arte, logo, como uma technê. E, dado que a filosofia remetia para a faculdade

racional do homem para trazer coisas à existência, a ciência aristotélica, isto é, a metafísica, tinha a ver com os universais (kathólon) e com as coisas sujeitas ao

reino da necessidade (anankê). De onde, em termos de dominância, o pensamento

teorético grego ter estado mais obcecado com o imutável, o geral e o essencial do que com o mutável, o fenoménico, o singular e o casual.

Demais, e ao contrário do que uma leitura literal de Aristóteles sugere, a singularidade que caracterizaria o mundo histórico não impediu os grandes historiadores gregos de tecerem enredos que recorreram ao testemunho, à prova

(tekmerion) e à correlação de acontecimentos entre si, embora daqui não fosse inferida

qualquer totalização geral sobre o devir, como, mais tarde, virá a acontecer nas teologias providencialistas judaico-cristãs e nas filosofias teleológicas e imanentistas da Modernidade. Porém, isto não significa que, desde as grandes narrativas míticas, não houvesse uma consciência clara acerca das diferenças que existem entre o “antes” e o “depois”, ordem cronológica (espécie de historicismo ingénuo) sem a

qual o enredo seria um mero somatório ou um mero “espelho” (Tucídides) da manifestação caótica dos acontecimentos, como se estes fossem exclusivos filhos da contingência (P. Ricoeur).

Pensando bem, para o autor da Poética, a debilidade da historiografia

provinha da própria ontologia dos événements. E esta revelava, “não uma ação

única, mas um tempo único, com todos os eventos que sucederam nesses períodos a uma e a várias personagens, cada um dos quais está para os outros numa relação meramente casual. Com efeito, a batalha naval de Salamina e a derrota dos Cartagineses na Sicília desenrolaram-se contemporaneamente, sem que estas ações tendessem para o mesmo resultado; e, por outro lado, às vezes acontece que em tempos sucessivos um facto venha após o outro, sem que de ambos resulte comum efeito. No entanto, a maioria dos poetas adota este

procedimento” (Aristóteles, Poética, 1459). Dir-se-ia que, como a res gestae tem uma

manifestação contingencial e é atravessada por temporalidades diferentes, embora cronologicamente contemporâneas (K. Koselleck), seria impossível construir nexos de causalidade passíveis de generalização. A historiografia parece limitar-se ao

événementiel. Mas como é que se explica a capacidade que a argumentação histórica

revelou para construir enredos, para recorrer à comparação e à analogia e para ser

fonte da construção de exemplaridades?

Sabe-se que, para urdirem a sua trama, alguns dos novos historiadores explicitaram (comummente nos proémios dos seus escritos) as suas escolhas metodológicas respeitantes às fontes (escritas e sobretudo orais) e não esconderam o cariz tópico e seletivo do seu objeto. Daí que, nas suas respetivas escalas espaciotemporais, tivessem elaborado não só cronologias – Timeu (352-256 a.C.), com as suas célebres tábuas olímpicas, foi um bom exemplo da melhoria desta prática –, mas também micrototalizações explicativas. E, cientes de que estavam a afastar-se do mito, nos seus melhores exemplos, eles tiveram igualmente consciência da função social e cívica da sua escrita: esta devia fixar feitos comprovadamente

verdadeiros para que não fossem rapidamente varridos da memória.

Também não pode ser diminuído o contributo que essa historiografia queria dar, em dialética ou independentemente das tendências holísticas e necessitaristas da cosmovisão dominante, à valorização do particular, do singular, da diferença e, até, do aleatório, facetas que a metafísica desvalorizava. E daqui resulta esta outra constatação: as objeções de Aristóteles ajudam a inteleção dos contornos do debate desencadeado pela novidade heroditiana – pelo menos no que tange aos nexos da história com a poesia e com a metafísica – e a refletir sobre a influência de outros saberes nas investigações históricas, mormente os ligados à technê, ou melhor, à

medicina e à retórica.

Com efeito, e como tem sido justamente lembrado (Carlo Ginsburg e Joana Duarte Bernardes), existe uma longa tradição na cultura ocidental que coloca a historiografia como “serva” da retórica (ou da oratória). Todavia, nem sempre se frisa que Aristóteles falou em três géneros de retórica, definidos a partir da relação que cada um mantém com o tempo e com os efeitos performativos que visava. São eles: a retórica deliberativa, a retórica epidítica e a retórica judicial. A que delibera

tende a enfatizar a dimensão futurante do tempo, “pois aconselha sobre eventos futuros” e age por exortação; na epidítica, “o tempo principal é o presente, visto que

todos louvam ou censuram eventos atuais”, tentando convencer o auditório por

dissuasão; e a terceira, como a sua tarefa é julgar, a escala temporal privilegiada é

o que aconteceu, isto é, o passado, “pois é sempre sobre atos acontecidos que um

acusa e outro defende”, o que impõe a necessidade do apelo ao testemunho (e à prova). Devido a tais caraterísticas, a retórica epidítica utiliza mais a amplificação, a

deliberativa, os exempla – “é com base no passado que adivinhamos e julgamos o

futuro” –, e a judicial, os entimemas, “pois o que passou, por ser obscuro, requer

sobretudo causas e demonstrações” (Retórica).

Aqui radica a especificidade desta última. Tendo por finalidade desvendar a Justiça, ela necessita de “falar de factos anteriores”, pelo que, ao contrário dos outros géneros, é obrigada a recorrer a provas “técnicas”, a saber: às leis, a testemunhas, a contratos, a confissões sob tortura, a juramentos. Sem a reconstituição objetiva do que aconteceu, não haverá aplicação da Justiça, condição essencial para que a comunidade política possa evitar os efeitos caóticos da hybris, logo, do arbítrio, da

anomia e, em termos políticos, da tirania, da oligarquia e da demagogia.

Logicamente, na prática, o retor podia misturar as características destes três tipos de retórica. Todavia, insinuar o futuro por exortação é atitude bem

diferente da prática de dissuasão, e ambas pouco têm a ver com a busca de causas

e demonstrações. Por isso, concordamos com aqueles que têm visto na retórica

judiciária (em conjugação com o impacto do corpus hipocraticum) a tecnhê que mais

influenciou a nova historiografia grega.

Historiador do “tempo presente” e etnogeógrafo, Heródoto, nas suas investigações (historei, apódexis), confessou que as fontes mais credíveis eram as que

provinham das suas próprias observações diretas (ópsis). Nesta ótica, mostrou-se

mais cauteloso perante as fontes escritas e as informações alheias, que deviam ser encaradas como meras notícias que o historiador-investigador não era obrigado a

seguir. E esta atitude metódica era aconselhada pela própria semântica da palavra “investigação”, pois, como tem sido corretamente sublinhado por muitos estudiosos do tema, hístor significava, originariamente, testemunha ocular e, posteriormente, aquele que examina testemunhas e obtém a verdade através da indagação. Todavia, Heródoto não

só procurou informações (historei), mas também conjeturou e deduziu (semánei)

(François Hartog, 1996 e 2005). Isto é, a narrativa conjugava o que ele próprio viu

(autopsia) e investigou com juízos mais gerais e engrandecedores (Heródoto, Histórias,

2.99). Não negava por inteiro valor informativo àquilo que tinha ouvido, mas o seu

uso, assim como o das fontes escritas, era supletivo em relação aos dados recolhidos pela vista e requeria uma maior vigilância crítica. No privilégio conferido à visão – por esta estar mais próxima do cérebro? –, residia o poder que o hístor tinha para

dirimir controvérsias, capacidade que o convidava a posicionar-se no papel de árbitro, ou melhor, e como acontecia no paradigma judiciário, de juiz (H. Arendt, 1968; G. Marramao, 1989; E. Benveniste, 1969).

Não por acaso, as raízes indo-europeias destes vocábulos não eram estranhas à família dos termos que nomeavam a atividade de juiz-testemunho e da justiça. Isto confirma o relevo dado às evidências da visão e ajuda a perceber por que é que, para os gregos, este tipo de “histórias” descrevia, dominantemente, o passado recente. Especialistas em procedimentos judiciais, os historiadores davam particular atenção à acribia (à justeza) da observação direta, ou, segundo

o modelo hipocrático usado na arte médica (faceta que Joana Duarte Bernardes tem estudado), à semiótica do corpo e à depuração (dissecação) do testemunho (Tucídides), fonte histórica por excelência.

Um bom sinal do lugar e do Zeitzgeschichte de onde o historiador “falava”

encontra-se na presença, no interior dos textos (normalmente nos proémios), de expressões que elevam o “eu vi” (ou o “eu digo”) a garante de veracidade. Diga-se que o empolamento da vista e das fontes orais teve traduções extremas, chegando mesmo a desencadear críticas, como aquelas que, no período helenístico, foram feitas ao historiador Timeu, acusado de usar fontes escritas em excesso. Também por isso esta historiografia é, de certo modo, uma “história do tempo presente”, embora, quando a retrospetiva faz incursões nos períodos mais antigos – e, portanto, não vistos –, ela acabe por dar guarida (como em Hecateu de Mileto e em Heródoto) a relatos míticos e tradicionais (François Châtelet, 1974), ou caia em conjeturas, debilidade que outros, começando por Tucídides, se esforçaram por superar.

“viu” com aquilo que tinha sido visto ou ouvido por outros. Para isso, procurou fiabilizar o valor dos testemunhos em confronto com o que ele próprio tinha vivenciado, opção coerente com esta sua confissão: “quanto aos feitos que foram praticados na guerra, esforcei-me por escrever não sobre informações de alguém que porventura lá estivesse, nem como pessoalmente me parecia provável, mas recolhendo dentro do possível todos os factos nos quais estive presente ou que por outros me foram contados. Foi difícil descobrir os factos, uma vez que os que tinham estado presentes nos vários acontecimentos não davam a mesma versão, tendo eles próprios lá estado, mas de acordo com a sua simpatia, por um lado, ou pelo outro, ou segundo o que era a sua recordação”.

Seja como for, deve perguntar-se se esta novel historiografia rompeu, por inteiro, com a mitologia oral, discurso que apontava para a suscitação, no ouvinte, do espanto e do sublime. Ao contrário, com a escrita, o trabalho de convencimento do leitor, ou de quem ouvia ler, dava mais relevância a juízos argumentativos, por mais excecionais e exemplares que fossem os factos narrados. E não há dúvida de que, a partir dos séculos V e IV a.C., diminuiu a credibilidade do mito e aumentou a confiança nas capacidades da razão inquiridora, como, ao nível do filosofar, se verifica na sofística e, principalmente, no diálogo socrático. Portanto, será útil frisar que tanto Heródoto como Tucídides, valorando a observação (autopsia) e a

comparação entre as versões que circulavam sobre os mesmos acontecimentos, seguiram, regra geral, o seu próprio testemunho (caso tivessem presenciado o que narraram), ou as versões que lhes pareciam mais prováveis.

Neste pano de fundo “presentista”, a diferença entre ambos estava, sobremaneira, na finalidade dos seus discursos: o do primeiro, ao abrir-se a digressões míticas, indicia uma escrita ainda estruturada para ser lida em voz alta, maneira de, através da mediação do texto, o autor, como os velhos aedos, chegar a um público mais largo e dominantemente analfabeto. Destarte, se as suas Histórias,

certificadas por observações e investigações, queriam fixar o que o narrador ouviu e sobretudo viu, o certo é que elas também contêm derivas de cunho maravilhoso, principalmente quando remontam a períodos mais antigos do que as Guerras Médicas, o seu grande tema. Com isso, Heródoto fez coexistir o “antigo” com o “moderno”, numa combinatória em que os propósitos cognitivos coexistem com

o intento de despertar prazer através de efeitos miméticos (Jorge Lozano).

De qualquer modo, os seus objetivos queriam ir mais longe do que os dos mitógrafos e de logógrafos como Helânico de Lesbos e Ferecides de Leros. Não obstante isso, Heródoto utilizou estes últimos como fontes e não desprezou os dizeres dos oráculos e as fontes literárias (desde a poesia antiga, a literatura contemporânea e as inscrições, até aos registos burocráticos). Mas tudo isto não basta para se concluir que a historiografia irrompeu, no seio das narrativas sobre o passado, como uma rutura radical, tanto mais que só em Tucídides a busca da acribia (a conformidade com os factos) quis excluir, com ênfase, os “dizeres”

que não fossem passíveis de comprovação, ou, pelo menos, não tivessem grande probabilidade de serem verdadeiros. Consequentemente, e ao contrário de Heródoto, o ateniense não só não incorporou o maravilhoso na sua narração, como a causalidade que pôs em ação prescindia de qualquer força transcendente, característica que se reflete no tom mais seco e “secularizado” da sua escrita (lição que não teve seguimento, pois um quase-contemporâneo como Xenofonte voltou a reconhecer a influência dos deuses).

No entanto, quer Heródoto quer Tucídides acabaram por atribuir a mesma função social à escrita da história: o primeiro quis garantir a construção e a transmissibilidade de uma “memória justa”, porque objetiva; o segundo, apesar de lhe “faltar o fabuloso”, estava convicto de que a sua obra seria útil a todos aqueles que estivessem interessados em “ver com clareza o que aconteceu”, pois, se o fizessem, logo perceberiam que o autor investigou, não “para ganhar prémios ao ser ouvido de momento, mas como um legado para sempre”.

Na perspetiva metafísica dominante, os acontecimentos selecionados pelos historiadores quebravam “o movimento circular da vida diária, no mesmo sentido em que o biós retilinear dos mortais interrompe o movimento circular da vida

biológica. O tema da história são essas interrupções – o extraordinário, em outras palavras”. Mas, se foi assim, poder-se-á aventar, sem mais, que os grandes feitos e obras de que são capazes os mortais, e que constituem o objeto da narrativa histórica, não podiam ser vistos como partes de um processo mais abrangente, porque “a ênfase recai sempre em situações únicas e rasgos isolados” (H. Arendt)? Se, com esta afirmação, se deseja frisar que os gregos, ao contrário da religião

judaico-cristã e da Modernidade secularizada, não pressupunham a existência de qualquer logos que, imanente aos eventos humanos, se explicitaria num finalismo

temporal indefinidamente progressivo e realizável no futuro histórico, a tese aceita-se. Contudo, as narrativas historiográficas não ousaram fazer correlações mais gerais?

Frise-se que, em alguns casos, a propensão da nova história para a

comparação (e para a analogia) revelou a existência de mudanças qualitativas no

devir, como, por exemplo, acontece em Tucídides quando, em contraste com a sua contemporaneidade, caracterizou o estado dos gregos antigos como “barbárie”. Contudo, daí não foram inferidas quaisquer sistematizações de cunho universalista, tanto mais que elas ocorreram num contexto em que era forte a crença no ritmo cíclico do tempo e o temor de que a sempre possível queda da ação humana na hybris

acelerasse o regresso ao caos primitivo. É certo que nem todos compartilharam desta visão ou, pelo menos, nem todos a plasmaram nas suas narrativas. E deve salientar-se que, então, o ofício historiográfico estava voltado para o registo do acontecido no mundo fenomenológico, onde se objetivava a irreversibilidade linear do biós finito, erosão que só a praxis, geradora da fama, poderia vencer. De onde

a tendência para se narrar situações-tipo e exemplares, prática seletiva que a ideia cíclica de tempo justificava.

No entanto, esta parece estar ausente do texto de Heródoto, conquanto não seja estranha à sucessão das tipologias políticas, ordenamento já sugerido por Homero e que, nos séculos V e IV a.C., se encontra em Platão e Aristóteles e, mais tarde, em Políbio. De facto, herdeiro da cultura histórica grega, este último narrou a grandeza do período original de Roma dentro de uma perspetiva modelada pela reversibilidade subjacente à visão cíclica do tempo. Esta maneira de pensar não foi exclusiva, embora tenha sido particularmente relevada nos períodos em que o estoicismo e o neoestoicismo foram muito influentes. Defende-se, assim, que, se a perfilhação de uma ideia de tempo cíclico em Tucídides é discutível (como salientou Momigliano), sem ela não se enraizaria tão fortemente a crença no magistério do acontecido (e do que sobre ele se escreveu), vocação que Cícero soube sintetizar na célebre divisa historia magistra vitae est.

limitaram a fazer descrições fragmentadas. Apesar das caraterísticas singulares e irrepetíveis dos factos, as narrativas mais relevantes elegeram temáticas gerais – como a da valorização das guerras decisivas e a dos momentos quentes em que ocorreram mudanças “constitucionais” – e aplicaram critérios de seleção e raciocínios comparativos, causais, sequenciais e analógicos, o que seria impossível caso a

singularidade dos eventos impedisse generalizações, por mais limitadas que estas fossem. Na verdade, as “investigações” construíram conjuntos, embora limitados, de factos, mas para os conectar de um modo que não é exclusivamente aditivo e cronológico, porque a trama, mesmo quando descontínua, acaba por dar-lhes

forma, ao integrá-los numa escrita de índole biográfica e centrada em grandes

acontecimentos e em grandes homens, simultaneamente seus autores e vítimas. De onde esta outra questão: se, como alertava Aristóteles, a dimensão fenomenológica

dos acontecimentos bloqueava, sincrónica e diacronicamente, a ascensão da historiografia à esfera das generalizações, a modéstia cognitiva das “investigações” não permitia apreender totalidades com princípio, meio e fim que acabam por dar sentido às singularidades e contingências que narram?

Os historiadores gregos (e romanos) perceberam que os factos não valiam só por si, porque a mediação da escrita ordenava a contingência e a singularidade das situações únicas e das ações individuais. Daí que a verdade do narrado não estivesse tanto na adequação dos enunciados à realidade atomizada, mas residisse, sobretudo, na correlação, mesmo quando implícita, entre os traços (remotos, ouvidos ou vistos) do acontecido e os pré-conceitos de quem os interpelava e contava. Deste modo, apesar do seu aparente cariz doxográfico, a nova historiografia aspirava à veracidade e queria cumprir um dever de memória que, nos seus melhores exemplos, não dispensava a certificação do narrado.