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A história pós-histórica no cristianismo

Num movimento que teve nos Padres da Igreja e em Santo Agostinho (séc. V) o seu primeiro grande “momento” teológico – ainda que enroupado na herança filosófica greco-romana que queriam combater –, a novidade do cristianismo impôs-se num contexto polémico em que um dos seus principais alvos foi a conceção cíclica do tempo. Simultaneamente, ao postular a diferença que existia entre o Deus criador ex nihilo e as criaturas, incluindo a do próprio tempo,

anunciava a fé na salvação, fazendo de Cristo filho de Si Mesmo. Neste horizonte, a história, tanto à escala micro como na sua dimensão coletiva, estava marcada pela finitude ontológica do tempo, e a apreensão do seu sentido fazia do passado uma era ou idade de preparação, cuja consumatio ocorreria no final dos tempos, destino

que, após a vinda de Cristo, poderia acontecer a qualquer momento.

O Livro era acreditado como sendo um livro histórico e de história, crença

ancorada num pensamento teológico que defendia a autonomia (e superioridade) da fé sobre a razão e, consequentemente, da verdade revelada sobre a inquirida e que tinha, contra a anankê pagã, um entendimento providencialista do devir. Portanto,

a transcendência de Deus como criador do homem, do tempo e do espaço não implicava, como mais tarde virá a ser defendido pelo deísmo moderno, indiferença face ao mundo criado.

Por tudo isto, a narração supunha uma causalidade que, dependente da vontade divina, escapava à razão humana, pelo que os acontecimentos deviam ser lidos como sinais que só a fé podia perscrutar. Assim, têm razão aqueles que

defendem que o providencialismo justificou a prática de uma espécie de historiografia semiótica, porque a aceitação dos événements, mesmo quando ilógicos, ultrapassava

o cânone das racionalizações causais e as explicações exclusivamente profanas. A cronologia foi sendo sobredeterminada pela teologia e pela inserção dos eventos

na sucessão vetorial, sequencial e irreversível do tempo histórico, organizada à volta de

acontecimentos fundamentais (a criação do mundo, a expulsão do paraíso, a luta entre Abel e Caim, a revelação da Lei, etc.) e, para o cristão, do acontecimento dos acontecimentos – a vida e a morte Cristo. A partir deste centro mediador, a sujeição individual e coletiva do ser humano à irreversibilidade do tempo (finito) passou a distinguir, qualitativamente, um antes e um depois de Cristo, como a gradual

calendarização ocidental (com relevo, a partir do século VIII) não deixará de fixar. Com efeito, quer as formas pagãs de datação, quer a remissão judaica para a criação do mundo foram sendo abandonadas nas sociedades cristianizadas, dando lugar a uma cronosofia assente na divisão teológica a.C./d.C.

Como já salientámos em outra ocasião, tudo isto explica que os scriptores

cristãos medievais, amiúde sem grande vigilância crítica, tenham incorporado, nas suas histórias, narrações transmitidas pela tradição e afiançadas por uma autoridade reconhecida (Igreja, Monarquia, Universi dade), ou pela santidade e posição social de quem as narrava, credulidade que, como sublinhou K. Pomian, os levava a “falar do passado, referido nesses relatos, como se eles próprios o tivessem vivido”. E daqui resultou esta outra consequência – a relevância do milagre e o tom apologético, providencialista e apocalíptico da escrita, onde, frequentemente, a prática autoral coabita com o anonimato e onde nem sempre se convoca a prova do que se escreve. Por isso, durante alguns séculos, o ofício do historiógrafo confundiu-se com o do cronógrafo, e, quanto aos géneros, os anais nem sempre foram separados das crónicas e das histórias propriamente ditas.

O modelo da

Imitatio Christi

Chegados aqui, será útil recordar que a intelectualização da novidade da nova religião foi pensada a partir de problemáticas e conceitos oriundos da filosofia greco-romana, incluindo aqueles que foram usados por Santo Agostinho para conotar os sentimentos de pertença à Respublica Christiana. Nos inícios do

século V, e um pouco à maneira platónica (mundo inteligível, mundo sensível), o bispo

Cidade dos Homens, acusando os panegiristas da virtude cívica pagã – inspirada na

evocação dos exempla e no anelo da fama – de não terem percebido que, se tudo o

que é humano está condenado à corrupção e, tarde ou cedo, ao esquecimento e à morte, só a eternidade, situada para além do tempo e da história, traria a definitiva bem-aventurança. Sendo vã e fugaz a fama terrena, os cristãos não deviam aspirar aos louvores que a história pagã tinha valorizado, porque os únicos sacrifícios dignos seriam os dedicados à transcendência. E a nova fé não pedia demasiado, já que, como salientámos no nosso Ensaio Respublicano, por causas bem menores – o

exclusivo amor da glória e da cidade terrena –, os gregos e os romanos, apesar de

estarem mergulhados no erro, deixaram edificantes exemplos de caritas para com a

pátria e de sacrifício “testemunhal” (martys) na defesa do bem comum (Joana Duarte

Bernardes). Por isso, a abnegação teria de ser ainda maior quando em causa estava o devotamento da vida ao Deus verdadeiro.

O cordão invisível que ligava o princípio historia magistra vitae às visões cíclicas

do tempo foi sendo cortado pela (lenta) adesão à ótica vetorial da história em todos os graus da sua manifestação fenomenológica. Já foi afirmado, e com razão, que a religião judaico-cristã é uma “religião de historiadores”, porque o Livro foi

acreditado e lido como uma narrativa de acontecimentos verdadeiros, incluindo a encarnação de Deus como Filho. Explica-se, assim, que a diferença essencial entre o cristianismo e as cosmovisões e religiões greco-romanas seja vista, por muitos, como potenciadora de secularização e de historicidade, horizonte que faltava às conceções cíclicas e, portanto, à antiga qualificação da história como “mestra da vida”.

É verdade que a procura de exempla também abria portas ao desenvolvimento

da consciência histórica e ao cultivo da historiografia. Recorde-se, porém, que a exemplaridade, aspirando ao enaltecimento de ideais e valores gerais, congelava o devir inerente à irreversibilidade, singularidade e imprevisibilidade dos eventos que ela mesma queria referenciar. O que explica que, no seu uso educativo, ela agisse como se de um modelo trans-histórico se tratasse, pois incitava a fazer do presente e do futuro a repetição-tipo da lição cívica que os exempla exortavam. Retida a

irreversibilidade dos factos na fixidez do arquétipo, o tempo da história seria, afinal, o não-tempo da identidade eleática.

a eleição do acontecimento dos acontecimentos – a Encarnação – ordenou e pontualizou a linha vetorial do tempo histórico a partir de um centro à luz do qual o passado surgia como preparação, o presente, como anunciação, e o futuro, como expectativa transcendente de salvação. Por isso, na mundividência ocidental, a vida e a morte de Cristo passaram a ser o exemplo dos exemplos em função do qual tudo ganhava sentido.

Por sua vez, no campo historiográfico, sabemos que os scriptores eram,

em boa parte, membros do clero e que tratavam de assuntos dominantemente religiosos, pelo que não surpreende o halo providencialista, milagreiro e catequético de muitas das suas narrativas (R. Collingwood). Em certa medida, pode mesmo defender-se que os objetivos ético-cívicos perseguidos pela mais relevante historiografia greco-romana foram transferidos para as representações (escritas e/ou iluminadas) de exemplaridades de cunho cristológico e hagiográfico, cuja rememoração estava ao serviço do aperfeiçoamento espiritual que daria acesso à Jerusalém Celeste. Em suma, a assunção da história só tinha sentido se fosse religiosamente vivida como um trânsito salvífico para o pós-histórico.

II

A fragmentação da República Cristã, a paulatina afirmação da autonomia

do poder temporal da Majestade, o despertar de uma mundividência mais antropocêntrica e “conquistadora”, tanto da natureza como da história, foram condicionantes que levaram alguns dos protagonistas destas mudanças a pensar-se como “modernos”. Do ponto de vista epistémico, esta metamorfose provocou uma maior cesura entre a fé e a razão, assim como entre o homem e a natureza. E, se a afirmação do espírito crítico e metódico foi uma das consequências desta longa revolução cultural, o distanciamento face à metafísica e, sobretudo, à teologia abriu um caminho que, no contexto de controvérsias várias, conduzirá à chamada “revolução científica moderna”, processo que também se repercutiu na historiografia.