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A historiografia positivista que nunca o fo

Na cultura historiográfica francófona, o sonho da objetividade alcançará a sua plenitude com a crescente hegemonia do paradigma das ciências da natureza (que os vários positivismos e cientificismos teorizavam), numa conjuntura em que aumentaram as prevenções contra o modo de escrever história à Michelet. Este foi o programa de boa parte do grupo de La Revue Historique (1876), de Gabriel Monod,

cujo “discurso do método” foi teorizado por Charles-Victor Langlois e Charles Seignobos na obra Introduction aux Études Historiques (1898). Ora, na caraterização

desta corrente – comummente designada por “história positivista” –, ter-se-á de distinguir o positivismo, enquanto conceção filosófica (Augusto Comte) e sociológica (Comte, Durkheim), do chamado positivismo historiográfico, porque este, na

linha da lição rankeana, não aspirava à formulação de leis ou de juízos teleológicos universais (o positivismo de Comte é um finalismo, logo, uma “filosofia da história” que explorava o recente prestígio da ciência). A historiografia seria, tão-só, um discurso narrativo, em que os acontecimentos (tidos por sinónimos de “factos”) estavam ordenados de acordo com o princípio da causalidade eficiente.

Por conseguinte, será pouco avisado confundir-se o conceito de positividade – estudo de algo que “está aí” – com os projetos de cariz nomotético. Como os acontecimentos seriam evanescências de singularidades irreversíveis e, de certa maneira, contingentes, o saber historiográfico também cairia na metafísica se anelasse alcançar a universalidade que as leis científico-naturais possuiriam. Ora, para A. Comte, tal como para o seu grande mestre Aristóteles, só havia ciência do geral. Só que, agora, a ciência-modelo não era mais a metafísica, mas a própria filosofia (de Comte). Depois de ter demonstrado, à luz da lei dos três estados, a

ultrapassagem da teologia e da metafísica, a filosofia teria como objeto definitivo fundamentar, histórica e racionalmente, o campo científico. Porém, esta totalização – afinal, uma nova metafísica – não entusiasmou o trabalho dos historiadores e, praticamente, só Louis Bourdeau (L’Histoire et les Historiens, Essai Critique de l’Histoire Considerée comme Une Science Critique, 1888) lhes lembrou que a historiografia, para

ser científica, tinha de se inspirar, mais assumidamente, na Weltaschauung comteana.

filosófico e de destacar o papel decisivo da crítica interna e externa dos documentos levou alguns autores (Guy Bourdé e Hervé Martin, 1983) a chamar à corrente em estudo “escola metódica”. A analogia com o trabalho de Descartes é óbvia, embora a comparação possa ser equívoca: o cartesianismo pressupunha uma ontologia dualista (separação entre a res cogitans e a res extensa) e baseava-se na dúvida metódica

e em regras para se pensar bem através de ideias claras e distintas. Todavia, estas tinham uma génese apriorística, e o critério de verdade dos juízos residia na sua coerência interna, em consonância com um paradigma matemático-geométrico, ou melhor, com uma conceção racionalista do conhecimento.

Não obstante o seu discurso manifesto, a “história metódica” perfilhou, na prática, uma difusa filosofia empirista, cujas consequências mais visíveis podiam conduzir à confusão entre os conceitos de evento e de facto histórico e indicar a

existência de uma similitude entre a leitura do documento, feita pelo historiador, e a observação dos fenómenos, realizada pelo cientista, sugerindo-se, assim, que a realidade da narração mimitizava a realidade narrada. No fundo, e seguindo Peter Burke, tudo isto pode ser resumido nesta fórmula: um sítio para cada facto, e um facto para cada sítio. Como recordou Braudel, acreditar-se-ia, sem mais, que a verdade

estava na autenticidade documental, ou melhor, que “o fetichismo oitocentista dos factos vinha completado e justificado por um fetichismo dos documentos” (E. H. Carr, s.d.). É verdade que esta historiografia também se quis libertar da metafísica das filosofias da história, embora estivesse excessivamente atraída pelo prestígio das ciências da natureza. Por isso, pergunta-se: ela não acabou por veicular, objetivamente, uma ideia de história que, afinal, não quebrava com os quadros do teleologismo historicista? Pendemos a responder que sim.

Em primeiro lugar, estes historiadores estavam convencidos de que o corpus

documental era esgotável, tal como aconteceria, com o decorrer do tempo, à respetiva análise. Em segundo lugar – mostra-o a história da historiografia –, por entre os interstícios da sua proclamada objetividade, emitiam-se juízos de valor filhos de uma ideia iluminista-republicana de história, pois, se ao nível da intenção perseguia a verdade, o historiador “metódico” também trabalhava – consciente ou inconscientemente, pouco importa – “d’une manière secrète et sûre à la grandeur de la Patrie en même temps qu’au progrès du genre humain” (Gabriel Monod,

1876). Assim, indo para além do discurso manifesto desta corrente, consegue-se desconstruir a sua ilusão de “neutralidade” absoluta. Segundo Guy Bourdé e Hervé Martin, a historiografia “metódica” acaba, explícita ou implicitamente, por fazer a apologia de valores, sejam os de um regime (República), da Mãe-Pátria (França), do sonho de um império colonial (Argélia), ou de um universalismo republicano que, no entanto, era mediado por uma visão francocêntrica e eurocêntrica do mundo, esse pecado original das filosofias modernas da história.

Além do mais, as suas narrativas não deixaram de pôr em cena uma linguagem que é tributária da reflexão filosófica. Conceitos como método, acontecimento e documento

eram instrumentos que os historiadores da primeira metade do século XIX já não dispensavam. A estes, juntaram um pequeno grupo de categorias (espaço, tempo, caos, processo), fatores que aconselham a que se defina com mais cautela o seu proclamado

“positivismo” (J. C. Bermejo, 1987). Por outro lado, o relevo dado à factualidade neste tipo de historiografia não excluía o recurso à interpretação, nem à convocação de condicionantes sociais na explicação e compreensão dos factos. Explicitamente, fê-lo Seignobos, no seu ensaio La Méthode Historique Appliquée aux Sciences Sociales

(1901), texto em que se distanciou das ilusões miméticas através desta posição teórica: “l’histoire est essentiellement une science de raisonnement”.

Diga-se que os cultores do chamado positivismo historiográfico sempre tiveram consciência dos limites da aplicação do método clássico das ciências da natureza ao estudo da realidade histórica. Mostram-no as suas distâncias no que concerne à indução de leis e à capacidade que a historiografia teria para a previsão de longo alcance. No fundo, não lhes faltou uma certa inquietação teórica, atitude que os seus críticos silenciaram para melhor celebrarem a sua historiografia como “nova”. Langlois e Seignobos (Introduction aux Études de l’Histoire, 1898) estariam a ser

“positivistas” quando escreveram que “a história, sob pena de se perder na confusão dos seus materiais, tem de obedecer estritamente à necessidade de proceder sempre por questões, como as outras ciências”? Assim sendo, não estaremos perante a defesa da “história-problema”, apesar de a reflexão sobre esse intercâmbio com as ciências sociais não ter sido muito explicitada nesta conjuntura, em parte devido ao atraso das ciências do homem em relação às ciências da natureza? (Elena Hernández Sandoica, 1995). No entanto, e ao contrário do que algumas ideias feitas sustentam,

estes historiadores “positivistas” estavam longe de confundirem a narrativa histórica com os factos narrados. Como explicitamente foi frisado por Seignobos, se o discurso historiográfico devia “représenter les choses”, ele também tinha de “comprendre leurs rapports” (Ch. Seignobos, 1906). De certo modo, muitas das verrinas lançadas contra o “documentalismo” e o cientificismo historiográfico talvez só sejam aplicáveis às teses do Fustel de Coulanges na sua primeira fase, quando defendeu o cariz dominantemente analítico da investigação histórica e incentivou o historiador a colocar-se perante os documentos como o químico estaria face às suas provetas (François Hartog, 1988), dado que “la vérité historique ne se trouve que dans les documents”.

Os melhores historiadores oitocentistas, pese a sua devoção à objetividade, reconheciam, ainda, a impossibilidade de controlarem a presença da subjetividade e da imaginação no seu próprio discurso. Por exemplo, Seignobos aceitava-a, ao

defender que todas as ciências sociais trabalhariam, “não sobre objetos reais, mas sobre as representações que se fazem dos objetos” e, consequentemente, sobre as intenções sinalizadas por traços que a mediação do questionamento e da suspeição

metódica da falsificabilidade eleva a documentos, “matéria-prima” da elaboração e certificação dos “factos históricos”. Destarte, e como o próprio Seignobos também frisou, estudar os factos exteriores, isto é, o positum, “sans connaître les

états psychologiques qui les motivent, ce serait vouloir comprendre les mouvements d’un danseur sans entendre la musique sur laquelle il danse” (Seignobos, 1901). Isto significa que não poderá haver explicações objetivas sobre o passado sem se compreender por que é que as coisas aconteceram (Gadamer).

Em conclusão: nos finais do século XIX, mantinha-se o esforço para delimitar a historiografia da filosofia da história e para reivindicar o seu cariz científico, através de um método crítico – inspirada, em boa parte, no método histórico-filológico – que se pensava ser o mais adequado para comprovar a veracidade do narrado. E, se esta prática foi condicionada pela incidência paradigmática das ciências da natureza, o certo é que ela se foi deslocando para um maior diálogo com as novas ciências sociais emergentes (particularmente, com a economia, a geografia humana, a sociologia, a antropologia), ao mesmo tempo que, com a nova historiografia da primeira metade do século XX – de que a revista Annales (1929) virá a ser a melhor

representante – e, pouco depois, com Braudel, cresceu o debate acerca do cariz inter e transdisciplinar que devia nortear a investigação, de molde a que a história pudesse ser o conhecimento federador de todas as ciências sociais.

Na segunda metade do século XX, descontado o entusiasmo que foi posto na universalização do uso de métodos quantitativos, o saber histórico tornou-se mais recetivo ao reconhecimento da sua faceta narrativa e hermenêutica, assim como dos contributos oriundos das outras ciências sociais. Estas mudanças alargaram o campo da interdisciplinaridade e corrigiram os exageros cientificistas (e economicistas) das décadas anteriores, ao mesmo tempo que renovaram as problemáticas e as escalas espaciotemporais de análise. Em suma, caminhou-se para a aceitação de uma menos canónica e mais humilde epistemologia da complexidade, em comsonância

quer com a hora dos “regressos” (L. Stone) e dos múltiplos anúncios do novo do novo (nova História Política, nova História Militar, nova História da Cultura, nova

História Económica, Biografia, etc.) e de uma mais consciente interrogação acerca dos efeitos cognitivos do lugar (institucional e sociopolítico) e dos tempos em que a

“operação historiográfica” se processa. De onde esta outra consequência: o esforço de autonomização do métier historiográfico foi acompanhado pela necessidade de o

próprio historiador agir como epistemólogo do seu próprio ofício.

O registo de todas estas metamorfoses, algumas proclamadas como rutura pelos seus protagonistas (exemplo: a atitude da primeira geração analista para com a “história

positivista”), tem ainda de incluir o da continuidade da crítica dos historiadores às pretensões omniscientes e prognósticas das filosofias da história. Em Portugal, por exemplo, uma boa expressão deste distanciamento pode ser encontrada em Alexandre Herculano, quando, na década de 1870, lembrava ao jovem Oliveira Martins que, para se ser um grande historiador, ter-se-ia de frequentar mais os arquivos e ser-se menos recetivo à sereia da filosofia da história (Vico, Herder, Hegel, Proudhon), género que, para o solitário de Vale de Lobos, não passaria “romances”, onde a síntese já está antes da análise. Se esta prevenção, inspirada em Ranke, passou pela historiografia “positivista”, ela será prolongada pela “nova história” analista, conforme

se pode constatar nas críticas que Lucien Febvre e Braudel fizeram a dois epígonos do género, Spengler e Toynbee, cujas obras – A Decadência do Ocidente (1922-1926) e,

sucesso entre guerras. Ora, para aqueles historiadores, eles mais não eram que “dois filósofos oportunistas da história”. Assim sendo, será limitado pensar que a crítica às grandes metanarrativas só teve uma expressão filosófica com Nietzsche e, no século XX, com o pensamento existencialista e, mais tarde, com o ideário pós-moderno. Sem pôr em causa a importância destes contributos, é nossa atenção sublinhar que, a partir dos alvores da Modernidade, a luta pela autonomização epistémica da historiografia também implicou um combate permanente contra o peso das retrospetivas teológicas e filosóficas.

Compreende-se. A par das (ilusórias) promessas de verdade absoluta e definitiva, as filosofias da história – sucedâneos secularizados e racionalizados das teologias da história –, tal como tinha acontecido com a metafísica grega, traziam consigo a desvalorização da análise historiográfica e, consequentemente, a depreciação ontológica do concreto, do particular e mesmo do contingente. Daí a sua vocação para justificar ideologias – termo de grande futuro, criado nos inícios de Oitocentos – de pretensões sistémicas. Elevando o modelo hegeliano a matriz, a pós-modernidade – inspirada na crítica ao historicismo (filosófico e historiográfico) feita por Nietzsche – tentou desconstruir o domínio mundividencial conquistado por este tipo de metanarrativa após o Iluminismo. E, no essencial, rejeitou-o por esta razão: ele queria ditar as normas de organização dos acontecimentos e das ações humanas, através de uma diegese que encobria a postulação apriorística da finalidade e de um fim que a res gestae estaria a cumprir. Neste horizonte, esta

só podia ser qualificada como a manifestação fenomenológica de uma essência que, simultaneamente, estava antes e para além do presente histórico (Miguel Ángel