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Falsas memórias no processo penal: a “contaminação” da prova testemunhal

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

FACULDADE DE DIREITO

CURSO DE GRADUAÇÃO EM DIREITO

VANESSA CALVÃO TRINDADE

FALSAS MEMÓRIAS NO PROCESSO PENAL: A

“CONTAMINAÇÃO”

DA PROVA TESTEMUNHAL.

Salvador

2018

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FALSAS MEMÓRIAS NO PROCESSO PENAL:

A “CONTAMINAÇÃO” DA PROVA TESTEMUNHAL.

Trabalho de Conclusão de Curso, apresentado à Banca Examinadora da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia, como requisito parcial para obtenção do grau de Bacharel em Direito.

Orientadora: Profa. Ma. Thaize de Carvalho Correia.

Salvador

2018

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FALSAS MEMÓRIAS NO PROCESSO PENAL:

A “CONTAMINAÇÃO” DA PROVA TESTEMUNHAL.

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à Faculdade de Direto da Universidade Federal da Bahia, como requisito parcial para a obtenção do grau de Bacharel em Direito.

Aprovado em 25 de Julho de 2018. BANCA EXAMINADORA

Thaize de Carvalho Correia- Orientadora_____________________________________ Mestra em Direito pela Universidade Federal da Bahia,

Misael Neto Bispo da França________________________________________________ Mestre em Direito pela Universidade Federal da Bahia,

Fernanda Ravazzano Lopes Baqueiro_________________________________________ Doutora em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia,

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AGRADECIMENTOS

Ao meu Deus, fonte da vida, emanação da sabedoria, Senhor do tempo, maior expressão do amor, a honra e gratidão por sua indubitável proteção e cuidado ímpar, a Ele e para Ele existem e subsistem todas as coisas.

Aos meus pais, Nailtom Trindade e Vera Lucia, pela dedicação e amparo, a quem agradeço e me espelho como referenciais seguros de vida, propulsores do incentivo e motivação para a caminhada, ao mesmo tempo em que âncoras, são também as asas que me fazem chegar mais longe.

A Ulisses dos Santos, pelo contínuo carinho e atenção, a quem compartilhei a ideia inicial desta pesquisa, sendo seu exemplo de vida o motivador para a escrita deste trabalho, cujo apoio despendido foi essencial para que se tornasse possível.

À professora e orientadora Thaize de Carvalho Correia, cumprindo mais do que o dever de ensinar, com sua acentuada criticidade, termina por inspirar e suscitar a esperança na possibilidade de efetivação de um processo penal em que o respeito às “regras do jogo”, a efetiva separação das funções, especialmente, no tocante ao sistema acusatório, correspondam ao plano concreto, desejo maior, mormente em épocas que a instabilidade jurídica e o decisionismo insistem em imperar.

À FDUFBA, por todo conhecimento adquirido.

Aos amigos e colegas de curso que comigo compartilharam desses cinco anos de faculdade, e que agora, mais próximo ao término, já mais perto da saudade, é possível recordar com mais vivacidade os sorrisos e conquistas, levando os momentos desagradáveis como experiência e lição. A todos, obrigada!

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O passado, nossas memórias, nossos esquecimentos voluntários, não só nos dizem quem somos, como também nos permitem projetar o futuro; isto é, nos dizem quem poderemos ser. O passado contém o acervo de dados, o único que possuímos, o tesouro que nos permite traçar linhas a partir dele, atravesssando, rumo ao futuro, o efêmero presente em que vivemos. Não somos outra coisa se não isso; não podemos sê-lo.

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TRINDADE, Vanessa Calvão. Falsas memórias no processo penal: a “contaminação” da prova testemunhal. Monografia (Graduação) – Faculdade de Direito, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2018.

RESUMO

O presente texto monográfico tem como tema principal as implicações das ocorrências das falsas memórias no curso do processo penal, situação que decorre de mecanismos intrínsecos, extrínsecos, involuntários e naturais, levando o depoente a crer que o seu discurso corresponde, efetivamente, à realidade ocorrida. Distancia-se, pois, da noção de mentira, ao passo que também não pode ser compreendida como patologia. É, em verdade, uma ocorrência inconsciente e passível de afetar a qualquer indivíduo, malgrado haja a propensão à determinada faixa etária. O tema reveste-se ainda mais de importância, sobretudo, em virtude da constatação de que o depoimento testemunhal é um dos principais meios de prova aplicados ao processo penal, sendo, pois, diversos os danos oriundos da valoração desta prova “contaminada”. Assim, o objetivo geral desta pesquisa é análise deste fenômeno natural quando imerso na prova testemunhal, bem como estudar as possíveis medidas redutoras de danos. Já os objetivos específicos se concentrarão, sobretudo, na apresentação da prova testemunhal em seu contexto histórico, bem como em cotejo com os principais princípios que conformam o processo penal, em especial a presunção inocência, além disso, se dedicará à averiguação dos processos psicológicos de formação, armazenamento e recuperação de memórias e possíveis elementos favorecedores de sua ocorrência. Ademais, a metodologia seguida nesta pesquisa pode ser classificada como hipotética- dedutiva, pautando-se, ainda, na revisão de literatura.

Palavras-chave: PROVA TESTEMUNHAL. PROCESSO PENAL. PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA. FALSAS MEMÓRIAS.

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TRINDADE, Vanessa Calvão. False memories in the criminal process: the “contamination” of the witness test. Monograph (Bachelor’s) – Law School, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2018.

ABSTRACT

This monographic text has as its main issue the implications of the occurrences of false memories in the course of the criminal process, a situation that results from intrinsic, extrinsic, involuntary and natural mechanisms, leading the deponent to believe that his discourse corresponds effectively to the reality of the facts. It is thus far from the notion of lying, whereas it can not be understood as a pathology either. It is, in fact, an unconscious occurrence which is likely to affect any individual, although there is a tendency to a certain age group. This matter results even more important, especially due to the fact that the testimonial evidence is one of the most important means of proof applied to criminal proceedings therefore leading to several damages generated from the assessment of this "contaminated" evidence. Thus, the general objective of this research is to analyze this natural phenomenon when immersed in the testimonial test, as well as to study the possible measures to reduce damages. On the other hand, the specific objectives will be focused on the presentation of testimonial evidence in its historical context, as well as on the main principles that make up the criminal process, especially the presumption of innocence. In addition, it will focus on the psychological processes of training, storage and retrieval of memories and possible elements favoring its occurrence. Also, the methodology followed in this research can be classified as hypothetical-deductive, still based on the literature review.

Keywords: WITNESS TEST. CRIMINAL PROCEEDINGS. PRESUMPTION OF INNOCENCE. FALSE MEMORIES.

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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

CPC Código de Processo Civil CPP Código de Processo Penal

CRFB Constituição da República Federativa do Brasil FM Falsas Memórias

MV Memória Verdadeira TTD Teoria do Traço Difuso

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO --- 11

2 A PRODUÇÃO DE PROVA TESTEMUNHAL NO PROCESSO PENAL: ASPECTOS GERAIS --- 13

2.1 CONCEITO E FUNÇÃO DA PROVA --- 16

2.2 O PRINCÍPIO DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA --- 18

2.3 BREVES APONTAMENTOS SOBRE A NOÇÃO DE VERDADE NO PROCESSO PENAL --- 20

2.3.1 Contexto histórico da busca da verdade no processo penal --- 21

2.3.2 Considerações acerca da “verdade real” --- 24

2.4 A VALORAÇÃO DAS PROVAS E O LIVRE CONVENCIMENTO DO JULGADOR- 27 2.5 A PROVA TESTEMUNHAL NO PROCESSO PENAL --- 29

2.5.1 Conceito de testemunha --- 30

2.5.2 Recusas, restrições, proibições e compromisso. A obrigação de falar a verdade ---- 30

3 CONSIDERAÇÕES A RESPEITO DO FUNCIONAMENTO DA MEMÓRIA --- 33

3.1 CONCEITO E ASPECTOS GERAIS DA MEMÓRIA --- 33

3.1.1 Tipos de memórias e seus indicativos de formação de falsas memórias --- 34

3.1.2 Estágios ou processos da memória --- 38

3.1.3 Falhas e distorções na memória: os indicativos da formação das falsas memórias 39 3.2 MAIORES CONSIDERAÇÕES SOBRE AS FALSAS MEMÓRIAS --- 44

3.2.1 Conceito --- 44

3.2.2 Breve contexto histórico --- 45

3.2.3 Teorias explicativas das falsas memórias --- 46

3.2.4 Diferenças individuais e falsas memórias --- 48

4 AS FALSAS MEMÓRIAS E A PROVA TESTEMUNHAL --- 51

4.1 PRINCIPAIS FATORES CONSUBSTANCIADORES DAS FALSAS MEMÓRIAS NA PROVA TESTEMUNHAL --- 52

4.1.1 O Transcurso do Tempo --- 52

4.1.2 A mídia --- 54

4.1.3 A sugestionabilidade e o viés do entrevistador na colheita da prova testemunhal. 57 4.2 A APLICAÇÃO DO INSTITUTO DAS FALSAS MEMÓRIAS NA JURISPRUDÊNCIA PÁTRIA --- 59

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4.3 POSSÍVEIS MEDIDAS DE REDUÇÃO DA “CONTAMINAÇÃO” DA PROVA

TESTEMUNHAL --- 62

4.3.1 Considerações a Respeito da Entrevista Cognitiva --- 63

4.3.2 Gravação das Entrevistas --- 67

5 CONCLUSÃO --- 69

REFERÊNCIAS --- 71

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1 INTRODUÇÃO

O Direito Penal, como exercício do jus puniendi do Estado, fruto do pacto social, é regido por princípios limitadores ao poder punitivo, os quais conferem, sobretudo, garantias à coletividade, viabilizando, pois, a existência de um Estado democrático, em que o devido processo legal é a regra a serem pautados todos os atos processuais, com a certeza da garantia da ampla defesa e do contraditório. Afastando-se, assim, dos atos de vingança privada, bem como da utilização do que hoje é reputado como barbárie, as acusações no processo penal são fundadas nas provas, as quais, em sua função reconstrutiva, propiciam elementos para a verificação da verdade processual.

Sendo uma das provas mais utilizadas e talvez a mais antiga, a prova testemunhal se reveste de inegável valor, requerendo, pois, estudos sobre a sua natureza, bem como das possíveis técnicas que confiram mais segurança e fidedignidade ao depoimento colhido, o que se coaduna com o reconhecimento da possiblidade de ocorrências, quer involuntárias e naturais, patológicas ou mesmo conscientes e criminosas, que ocasionam o equivocado convencimento do órgão julgador, bem como a imposição de injusta sanção ao acusado.

A falsa memória parece enquadrar-se melhor no primeiro fator, qual seja, evento involuntário, já que se afasta da noção de patologia, ao passo que também se distancia das mentiras. A compreensão desse fenômeno requer muito mais que uma análise dos seus efeitos deletérios, mas abarca o ingresso no universo das ciências médicas e psicológicas, campos que dialogam com as ciências criminais, conferindo-lhe respostas e até mesmo caminhos para a realização de medidas prévias de minoração dos eventuais danos.

O objetivo geral propulsor desta pesquisa é a análise da formação das falsas memórias no contexto das provas testemunhais no processo penal, bem como os possíveis mecanismos capazes de minimizar a sua influência.Seus objetivos específicos são: pesquisar o desenvolvimento histórico quanto à colheita da prova testemunhal; estudar, ainda que sucintamente, os processos psicológicos de formação, armazenamento e recuperação das memórias; analisar os possíveis fatores influenciadores na formação de falsas memórias; estudar a relação das falsas memórias com a prova testemunhal; averiguar o valor probatório da prova testemunhal; discorrer sobre as diferenciações das falsas memórias e a mentira, além de investigar métodos/técnicas recomendados na literatura científica para tentar prevenir a formação das falsas memórias.

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Não se tem a pretensão de buscar o esgotamento do assunto, até mesmo porque o tema se afigura complexo e ainda pendente de maiores investigações científicas, o que se requer, com o presente trabalho, é a breve abordagem da relação causa e efeito das falsas memórias no processo penal, utilizando-se, para tanto, como metodologia de pesquisa, o método hipotético- dedutivo.

As hipóteses levantadas na presente pesquisa foram: a) a prova testemunhal, malgrado a sua importância, não é suficiente para afastar a presunção de inocência; b) o decurso do tempo e a mídia são fatores que propiciam a contaminação da prova testemunhal e, por fim, c) há um despreparo pelos agentes que tomam as primeiras declarações de vítimas e testemunhas, de sorte a promoverem o sugestionamento.

O presente trabalho encontra-se estruturado, além da introdução, em três capítulos de conteúdos. O primeiro abordará as noções gerais sobre a prova testemunhal, bem como sua relação com os princípios do devido processo legal e da presunção de inocência. Abordará, ainda, o contexto histórico probatório, o conceito de testemunha, as hipóteses de recusa, proibições e impedimentos, além da questionada verdade real.

O segundo capítulo, em síntese, apresentará os principais fundamentos científicos para a compreensão das falsas memórias, ingressando no fascinante estudo sobre os tipos de memória, processos de formação, diferenciação entre recordação e recuperação, conceitos fundamentais e as falhas e distorções.

No terceiro capítulo se fará a relação das falsas memórias com a prova testemunhal, visto não ser excluída a possibilidade de sua ocorrência no curso do processo criminal. Para tanto, se abordará, especificamente, sobre os reputados pela doutrina como principais fatores, dentre estes, o transcurso do tempo, a mídia e a sugestionabilidade. Além disso, se observará como a jurisprudência tem se comportado no tocante a aplicação deste instituto nas razões decisórias, mediante a análise de casos escolhidos por amostragem. Ao final, apontará as possíveis soluções para a minoração das falsas memórias, especialmente aquelas indicadas na doutrina de Cristina di Gesu, com enfoque na entrevista cognitiva, gravação das entrevistas e o tempo para a colheita do depoimento testemunhal.

Por fim, a conclusão, onde apresentaremos as nossas inferências sobre o quanto abordado na pesquisa. Assim, o estudo das falsas memórias é um tema atual, com indiscutível relevância, e reflexos práticos, sendo este trabalho um esforço para a compreensão e quiçá contribuição neste campo do saber.

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2 A PRODUÇÃO DE PROVA TESTEMUNHAL NO PROCESSO PENAL: ASPECTOS GERAIS

A compreensão de um sistema processual penal, embasado em princípios constitucionais, em que os meios probatórios se afiguram essenciais para apuração da culpabilidade de um indivíduo, tem por raízes iniciais as concepções filosóficas que se dedicaram ao estudo da existência do Estado, os mecanismos de controle e as formas de organização social. Em HOBBES (1983, p.75 e 76), o homem é concebido inicialmente imerso em seu estado de natureza, cuja condição é de guerra de todos contra todos, sendo cada um governado por sua própria razão.

Diante do reconhecimento da igualdade natural dos homens, e sem a figura de um ente superior que detenha o poder, haveria o constante receio que outro indivíduo, talvez mais forte, causasse prejuízos patrimoniais, ou até mesmo físicos, visto a ausência da institucionalização de um poder coercitivo. A manutenção deste estado, reputado como primitivo, ameaça o perecimento da raça humana, havendo, assim, a necessidade de agregação, a qual seria “[...] um conjunto de forças, que possa sobrepujar a resistência, impelindo-as para um só móvel, levando-as a operar em concerto. Essa soma de forças só pode nascer do concurso de muitos;” (ROUSSEAU, 1983, p. 31 e 32).

A noção de sociedade, pelo viés contratualista, “[...] é, tão-só, o produto de um acordo de vontades, ou seja, de um contrato hipotético celebrado entre os homens [...]” (DALLARI, 2009, p. 12). Pelo reconhecimento da necessidade de algo ou alguém que pudesse regular as relações humanas e solucionar os conflitos, surge a figura do Estado.

O Estado, em uma abordagem contemporânea, conforme apontado por WEBER (2011, p. 56), é concebido como “[...] uma comunidade humana que, dentro dos limites de determinado território- a noção de território corresponde a um dos elementos essenciais do Estado- reivindica o monopólio do uso legítimo da violência física.”.

O jus puniendi, pela própria escolha dos governados, estaria a cargo do Estado, ao qual restou atribuído, em suma, o poder de legislar, tipificar condutas como criminosas e conduzir os atos processuais, para que, por fim, seja aplicada a sanção penal. Assim, o “[...] processo penal é o caminho necessário para a pena.” (LOPES JÚNIOR, 2016, p. 34), por meio do qual se objetiva alcançar a verdade processual, aproximada, cujo resultado não corresponde ao

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irrefutável, a uma verdade absoluta, mas sim ao que plausivelmente tenha ocorrido, mediante o conhecimento até então obtido sobre o caso em análise (FERRAJOLI, p. 42).

Os meios probatórios, e em específico a prova testemunhal, não têm a pretensão de alcançar a verdade objetiva1, mas apenas possibilitar, ainda que com fragilidades, a tentativa de reconstrução dos fatos pretéritos de sorte que, com base no quanto exaustivamente buscado, possa ser prolatado um julgamento, sem olvidar que na ocorrência de dúvidas, pelo princípio da presunção de inocência, manifeste-se o julgador pela absolvição.

A verdade processual, ou formal, é concebida tanto em seu viés fático, o qual corresponde à verdade histórica, atinente, pois, a fatos passados, quanto pelo jurídico, por meio do qual é delineada uma verdade chamada de classificatória, visto a referência à “[...] qualificação dos fatos históricos comprovados conforme as categorias subministradas pelo léxico jurídico e elaboradas mediante a interpretação da linguagem legal.” (FERRAJOLI, 2002, p. 43), seria, sucintamente, a correta submissão do fato à norma.

Ademais, tanto a verdade fática, quanto a jurídica não podem ser afirmadas mediante observações diretas (FERRAJOLI, 2002, p. 43), logo, a verificabilidade das suas assertivas se dá por meio de inferências. Assim, no tocante à primeira, a fática, a verdade das suas preposições “[...] pode ser enunciada somente pelos ‘efeitos’ produzidos, quer dizer, os ‘sinais do passado (pastness), deixados no presente pelos eventos passados, dos quais aqueles descrevem a ocorrência.” (FERRAJOLI, 2002, p. 44). Trata-se, pois, dos vestígios preservados, que para o processo penal será chamado como prova. Contudo, a investigação judicial pauta-se não apenas no encontro de fontes preexistentes, mas também na produção de “[...] novas fontes de prova, como interrogatórios, testemunhos, acareações, reconhecimentos, perícias, inspeções judiciais etc.”. (FERRAJOLI, 2002, p. 44).

Assim, a decisão judicial, longe de corresponder a uma verdade absoluta, é apenas a “[...] probabilidade na ordem de conexão causal entre o fato aceito como provado e o conjunto de fatos adotados como probatórios.” (FERRAJOLI, 2002, p. 44).

A verdade jurídica, por sua vez, pode ser verificada analisando-se o silogismo realizado, a subsunção operada de uma ocorrência do mundo dos fatos com uma tipificação legal. Para tanto, a validez desta subsunção dependerá, em primeiro lugar, da existência de

1 Segundo Ferrajoli (2002, p. 42) a verdade objetiva, certa ou absoluta é inalcançável, inclusive para o autor “a

idéia contrária de que se pode conseguir e asseverar uma verdade objetiva ou absolutamente certa é, na realidade, uma ingenuidade epistemológica, que as doutrinas jurídicas iluministas do juízo, como aplicação mecânica da lei, compartilham com o gnosiológico vulgar.”.

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precisão do conceito classificatório, dos termos que compõe o tipo legal, a exemplo, expressões como interesse público e periculosidade dão margem a inúmeras interpretações, sendo certo que “[...] o juiz tem o poder de escolher a que considere mais apropriada mediante uma decisão discricionária que pode ser mais ou menos arbitrária ou racional.” (FERRAJOLI, 2002, p. 45). Além disso, proposição fática deverá descrever o fato que deverá ser tipificado, a fim de que não ocorram indevidos silogismos, consoante as considerações abaixo expressas:

Por exemplo, ainda quando o Código Penal tenha tentado precisar o conceito de ‘lesões graves’ com critérios quantitativos no tocante ao estado de incapacidade do ofendido, para atender às ocupações habituais, pode resultar insuperável a insegurança sobre se uma fratura ou uma ferida produzida por corte, das quais, não obstante, sejam perfeitamente conhecidas todas suas características empíricas, inabilitaram a vítima além do tempo estabelecido pela norma. (FERRAJOLI, 2002, p. 46).

Com efeito, a previsão legal, somada a termos precisos favorecem à própria segurança jurídica, sendo certo que a “[...] a principal garantia da liberdade do imputado contra o arbítrio é a taxatividade e portanto a possibilidade de verificação das hipóteses típicas [...]” FERRAJOLI (2002, p.438). Mediante o respeito às regras processuais, anteriores ao fato delituoso, assim como a análise das circunstâncias fáticas, com o distanciamento de termos obscuros ou excessivamente amplos, haverá ao acusado a garantia mínima de justiça. KHALED JR. (2013, p. 452), tecendo considerações sobre o assunto, assegura que:

Em última análise, é somente através da estrita observância das regras do jogo que o processo pode em alguma medida corresponder ao ideal de justiça que dele se espera na epistemologia acusatória e democrática, pois, como já dissemos no primeiro capítulo, o formalismo acusatório exige um absoluto respeito pela forma, pois forma implica garantia- ainda que possa ser incompleta e insuficiente- contra a arbitrariedade.

Assim, observa-se, que o produto2 do processo penal não se pauta em uma verdade absoluta, mas sim aquela alcançada por meio das provas apresentadas e produzidas pelas partes, as quais, contudo, estão passíveis às diversas variantes que podem, efetivamente, fragilizarem a sua credibilidade, indicando a possibilidade que a resposta final do processo penal, ou sua verdade, seja que não há elementos idôneos a ensejar uma condenação, em clara observância à presunção de inocência, bem como o afastamento da avidez inquisitorial.

2 Esclarecemos que a utilização do termo produto refere-se ao sinônimo resultado, atinente, no presente caso, à

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2.1 CONCEITO E FUNÇÃO DA PROVA

No decorrer da história do processo penal, por não raras vezes, os julgamentos criminais se desenvolveram em sigilo, até mesmo para o acusado, sendo-lhe suprimido qualquer oportunidade de defesa, imputando-lhe acusações das quais, quando tomava ciência, era praticamente impossível ou excessivamente difícil de esquivar-se. Neste sentido, FOUCAULT (1987, p.32) aponta que:

Na França, como na maior parte dos países europeus- com a notável exceção da Inglaterra- todo o processo criminal, até a sentença, permanecia secreto: ou seja, opaco não só para o público mas para o próprio acusado. O processo se desenrolava sem ele ou pelo menos sem que ele pudesse conhecer a acusação, as imputações, os depoimentos, as provas. Na ordem da justiça criminal, o saber era privilégio absoluto da acusação.

[...] Por seu lado, o magistrado tinha o direito de receber denúncias anônimas, de esconder ao acusado a natureza da causa, de interrogá-lo de maneira capciosa, de usar insinuações. Ele constituía, sozinho e com pleno poder, uma verdade com a qual investia o acusado; e essa verdade, os juízes recebiam pronta, sob a forma de peças e de relatórios escritos; para eles, esses documentos sozinhos comprovavam; só encontravam o acusado uma vez para interrogá-lo antes de dar a sentença.

Contudo, “a essência do processo está na simétrica paridade da participação dos interessados, reforçando o papel das partes e do contraditório” (LOPES JR., 2016, p.40). Dessa forma, pelo princípio do devido processo legal, até mesmo para a validade dos atos processuais, é imprescindível o pleno conhecimento do acusado a respeito das imputações a ele atribuídas, com o amplo direito de manifestação, inclusive de uma defesa técnica, bem como a realização de um julgamento pautado no lastro probatório produzido ao longo do desenvolver do processo. Segundo MORAES (2014, p. 110) “o devido processo legal configura dupla garantia ao indivíduo, atuando tanto no âmbito material de proteção ao direito de liberdade, quanto no âmbito formal, ao assegurar-lhe paridade total de condições”.

Para além da análise da prova como um instrumento de comprovação das razões sustentadas no processo, os meios probatórios configuram, sobretudo, um direito subjetivo “[...], portanto, uma faculdade ou um verdadeiro direito- poder das partes que decorre claramente dos princípios da ampla defesa e do contraditório [...]” (MACHADO, 2014, p. 465). Assim, as provas assumem especial relevância no contexto de um sistema fundado em princípios constitucionais, com respeito às garantias mínimas do indivíduo.

Diante da impossibilidade de regresso ao passado, bem como na necessidade de comprovação das alegações sustentadas dentro do processo, a prova, sobretudo, diante da sua função reconstrutiva dos fatos, promove, ainda que com debilidades intrínsecas, a retratação de um momento pretérito, objetivando-se, por fim, o convencimento do juiz.

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Segundo CARNELUTTI (2006, p.45), “a tarefa do processo penal está no saber se o acusado é inocente ou culpado. Isto quer dizer, antes de tudo, se aconteceu ou não aconteceu um determinado fato [...]”. A demonstração da ocorrência do evento danoso será feita mediante o exame probatório, o qual possibilitará a verificação da ilegalidade da conduta, indícios de materialidade e autoria, bem como as demais circunstâncias incidentes na apreciação do caso.

Para TÁVORA e ALENCAR (2012, p. 375), “o processo, na visão do ideal, objetiva fazer a reconstrução histórica dos fatos ocorridos para que se possa extrair as respectivas consequências em face daquilo que ficar demonstrado.”. Trata-se do reconhecimento da impossibilidade de apreensão total do evento fatídico, assim, apenas do que resta demonstrado, que não corresponde à completude dos acontecimentos, poderá respaldar a aplicação, ou não, de uma sanção penal. No mesmo sentido, entende PACELLI (2017, p. 333) que:

A prova judiciária tem um objetivo claramente definido: a reconstrução dos fatos investigados no processo, buscando a maior coincidência possível com a realidade histórica, isto é, com a verdade dos fatos, tal como efetivamente ocorridos no espaço e no tempo. A tarefa, portanto, é das mais difíceis, quando não impossível: a reconstrução da verdade.

Com efeito, obtempera ZILLI (2003. p. 182) que a palavra prova é polissêmica, mas sob a ótica processual, “[...] pode-se enfocá-la à luz de sua importância para a reconstrução histórica dos fatos, indicando, assim, o conjunto de atividades concretizadas, tanto pelos sujeitos parciais, quanto pelo juiz [...]”. O termo reconstruir pressupõe que algo já findado será outra vez reerguido ou reedificado, há sempre um processo de reportação ao passado, como referencial, para trazer ao presente, algo que não conserva mais as suas características iniciais, sendo apenas vestígios ou lembranças. Neste sentido, consoante apontado por CARNELUTTI (2006, p. 46), “as provas servem, exatamente, para voltar atrás, ou seja, para fazer, ou melhor, para reconstruir a história.”. Nesse mesmo sentido, Lopes Jr. (2016, p. 355) aborda o chamado “paradoxo temporal ínsito ao ritual judiciário”, o qual seria:

[...] um juiz julgando no presente (hoje) um homem e seu fato ocorrido num passado distante (anteontem), com base na prova colhida num passado próximo (ontem) e projetando efeitos (pena) para o futuro (amanhã). Assim como o fato jamais será real, pois histórico, o homem que praticou o fato não é o mesmo que está em julgamento e, com certeza, não será o mesmo que cumprirá essa pena, e seu presente, no futuro, será um constante reviver o passado.

A respeito do objeto da prova, resta que claro que é a “[...] a coisa, o fato, o acontecimento que deve ser conhecido pelo juiz, a fim de emitir um juízo de valor. São os fatos sobre os quais versa o caso penal.” (RANGEL, 2013, p. 452).

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A finalidade da prova, consoante BARROS (2002, p. 108), consiste na “[...] formação da convicção do juiz e das partes quanto à existência dos fatos da causa. Seu destinatário principal e direto é o juiz, que dela necessita para formar seu convencimento a respeito da verdade dos fatos narrados no processo [...]”. A compreensão da função das provas no processo penal como meio capaz de apresentar subsídios para a prolação de uma sentença, decorre, sobretudo, da presunção de que o acusado, até a demonstração probatória em contrário e decisão definita nesse sentido, é inocente.

2.2 O PRINCÍPIO DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA

Os relatos históricos que indicam os primórdios do desenvolvimento do princípio da presunção de inocência remontam ao “[...] final do século XVIII, em pleno iluminismo, quando, na Europa Continental, surgiu a necessidade de se insurgir contra o sistema processual penal inquisitório, de base romano- canônica, que vigia desde o século XII.” (RANGEL, 2013, p. 23). Esse contexto histórico é ampliado por FERRAJOLI (2002, p. 441) o qual tece as seguintes contribuições:

Apesar de remontar ao direito romano, o princípio da presunção de inocência até prova em contrário foi ofuscado, se não completamente invertido, pelas práticas inquisitórias desenvolvidas na Baixa Idade Média. Basta recordar que no processo penal medieval a insuficiência da prova, conquanto deixasse subsistir uma suspeita ou uma dúvida de culpabilidade, equivalia a uma semiprova, que comportava um juízo de semiculpabilidade e uma semicondenação a uma pena mais leve. Só no início da idade moderna aquele princípio é reafirmado com firmeza: “eu não entendo”, escreveu Hobbes, “como se pode falar de delito sem que tenha sido pronunciada uma sentença, nem como seja possível infligir uma pena sempre sem uma sentença prévia”.

Em razão da necessidade de contenção do desenfreado poder punitivo e obtenção do respeito às garantias mínimas do acusado, a Declaração de direitos do bom povo de Virgínia de 1776, em seu dispositivo VIII, demonstra, expressamente, a necessidade do conhecimento prévio, por parte do acusado, das imputações a ele conferidas, bem como lhe é dispensado o direito à produção de provas:

VIII- Que em todo processo criminal incluídos naqueles em que se pede a pena capital, o acusado tem direito de saber a causa e a natureza da acusação, ser acareado com seus acusadores e testemunhas, pedir provas em seu favor e a ser julgado, rapidamente, por um júri imparcial de doze homens de sua comunidade, sem o consentimento unânime dos quais, não se poderá considerá-lo culpado; tampouco pode-se obrigá-lo a testemunhar contra si próprio; e que ninguém seja privado de sua liberdade, salvo por mandado legal do país ou por julgamento de seus pares.

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Na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, fundada em ideais iluministas, restou consignado, consoante expresso em seu artigo 9º que: “Todo acusado é considerado inocente até ser declarado culpado e, se julgar indispensável prendê-lo, todo o rigor desnecessário à guarda da sua pessoa deverá ser severamente reprimido pela lei.”.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos, sob o contexto de pós Segunda Guerra Mundial, em seu artigo XI, também apresenta de modo claro e inequívoco o princípio da presunção de inocência, além de se manifestar no tocante à prévia cominação legal, nos seguintes termos:

1. Todo ser humano acusado de um ato delituoso tem o direito de ser presumido inocente até que a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa.

2. Ninguém poderá ser culpado por qualquer ação ou omissão que, no momento, não constituíam delito perante o direito nacional ou internacional. Também não será imposta pena mais forte do que aquela que, no momento da prática, era aplicável ao ato delituoso.

Ainda dentro deste panorama histórico e legislativo, a Constituição Federal de 1988, prevê, em seu artigo 5º, LVII, que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória;”. Nesse sentido, aponta FERRAJOLI (2002, p. 441) que “a culpa, e não a inocência, deve ser demonstrada, e é a prova da culpa- ao invés da inocência, presumida desde o início- que forma o objeto do juízo.”.

A presunção de inocência parte do reconhecimento de que “[...] todos os ônus da prova relativa à existência do fato e à sua autoria devem recair exclusivamente sobre a acusação. À defesa restaria apenas demonstrar a eventual incidência de fato caracterizador de excludente de ilicitude e culpabilidade [...]” (PACELLI, 2017, p.50). Ademais, haveria, conforme apontado por MACHADO (2014, p.71), quatro consequências práticas imediatas do princípio da presunção de inocência:

(a) o ônus de provar a responsabilidade criminal réu fica todo ele a cargo da acusação; (b) o acusado não é obrigado a colaborar com essa prova; (c) não se admite a majoração da pena com base nos maus antecedentes representados admite a majoração da pena com base nos maus antecedentes representados por inquéritos policiais ou mesmo de processos que ainda estejam em andamento. Além disso, por força do princípio da inocência presumida, deve-se evitar qualquer espécie de rigor processual que se mostre desnecessário em relação ao acusado cuja culpa ainda não fora declarada por sentença condenatória definitiva. Isso significa que o réu, no curso do processo, deve merecer o mesmo tratamento que se dispensa a qualquer cidadão livre.

LOPES JR. (2016, p. 369) indica que a essência do princípio da presunção de inocência pode ser resumida na expressão “dever de tratamento”, a qual deve se manifestar tanto na dimensão interna, quanto na externa.

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Dentro do processo, a presunção de inocência implica um dever de tratamento por parte do juiz e do acusador, que deverão efetivamente tratar o réu como inocente, não (ab)usando das medidas cautelares e, principalmente, não olvidando que a partir dela se atribui a carga da prova integralmente ao acusador (em decorrência do dever de tratar o réu como inocente, logo, a presunção deve ser derrubada pelo acusador). Na dimensão externa ao processo, a presunção de inocência impõe limites à publicidade abusiva e à estigmatização do acusado (diante do dever de trata-lo como inocente).

A respeito da dimensão externa do referido “dever de tratamento”, é possível acrescentar as considerações de CARNELUTTI (2006, p. 28) o qual, irretocavelmente, preceitua que “o acusado sente ter a aversão de muita gente contra si; algumas vezes, nas causas mais graves, lhe parece que esteja contra ele todo mundo. Não raramente, quando o transportam para a audiência, é recebido pela multidão com um coro de imprecações; [...]”.

No tocante à dimensão interna, PEDROSO (2001, p. 48) aponta a necessidade da certeza, embasada em provas, a fim de que seja prolatada uma sentença, desta forma, “a menor dúvida a respeito acena para a possibilidade de inocência do réu, de sorte que a Justiça não faria jus a esta denominação se aceitasse, em tais circunstâncias, um édito condenatório, operando com uma margem de risco- mínima que seja- de condenar quem nada deva.”.

2.3 BREVES APONTAMENTOS SOBRE A NOÇÃO DE VERDADE NO PROCESSO PENAL

A compreensão do termo abstrato verdade comporta inúmeras interpretações, variando, inclusive, no tempo e no espaço. Ao longo da história, conforme se demonstrará, o processo penal se desenvolveu, por muitas vezes, sob a égide do sistema inquisitorial3, pautado na busca da verdade real, sendo a atuação jurisdicional direcionada a esse fim. Assim, as funções de julgar e acusar, por não raras vezes, confundiam-se, lançando dúvidas sobre a imparcialidade e figurando o acusado apartado das mínimas garantias processuais.

Por meio de torturas e exposições às mais vis circunstâncias, acreditava-se que as confissões obtidas por tais meios correspondiam à verdade, sem ponderar que nessa situação o indivíduo, a fim de ver cessadas as agressões, assumiria qualquer culpa, inclusive de fatos impossíveis de ter existência concreta.

3 O sistema inquisitorial é caracterizado, sobretudo, pela “[...] aglutinação de funções na mão do juiz e atribuição

de poderes instrutórios ao julgador, senhor soberano do processo. Portanto, não há uma estrutura dialética e tampouco contraditória.” (LOPES JR., 2016, p.42).

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Assim, tem-se cada vez mais estudado o sistema acusatório, o qual, diferentemente do inquisitorial, prevê o juiz como um terceiro efetivamente imparcial, com a clara distinção das funções dos atores no processo penal, iniciativa provatória das partes e plena publicidade dos atos processuais (LOPES JR., 2016, p. 43).

2.3.1 Contexto histórico da busca da verdade no processo penal

O processo penal na Grécia antiga era concebido em torno de valores ditos democráticos em que “[...] a figura do julgador singular cedia espaço para a Assembléia do Povo, ou para o Senado, onde se formavam os tribunais da época, compostos de dezenas- e em alguns casos até por centenas- de juízes.” (BARROS, 2002, p. 51).

Nesse contexto, “as provas deviam ser produzidas pelo acusador durante os debates realizados no dia do julgamento. Do seu turno, ao acusado cabia produzir provas de sua inocência, além de prestar juramento de dizer a verdade.” (BARROS, 2002, p.52, apud ALMEIDA JR, p. 24).

Quanto ao desenvolver dos atos processuais “predominava a oralidade e atuação de ofício do juiz para casos específicos.” (GOULART 2002, p.23, apud ECHANDÍA, 1995, p. 56). Ademais, Goulart (2002, p.23, apud MATTOSO, 1984, p. 38) destaca, já nesse período, a

utilização da violência como mecanismo para obtenção da verdade:

As principais provas eram testemunhas, documentos e o juramento, sendo que a tortura probatória “era aplicada não só aos escravos como também a cidadãos livres e estrangeiros e descrita por Demóstenes como um meio seguro de obter evidências.”.

No direito romano a participação do juiz na busca pela verdade, assumindo também a gestão probatória, variava conforme o sistema de governo adotado (BARROS, 2002, p. 53). Durante o Período Régio4, aponta BARROS (2002, p. 53, apud MANZINI, p. 3) a ocorrência de um poder sancionatório desenfreado, conferido ao julgador, de sorte a não encontrar limitações, ocupando até mesmo a função acusatória:

[...] que nesse período não se conhecia qualquer limitação ao poder de julgar. Ao tomar conhecimento da notitia crimininis, era o magistrado e não outra pessoa quem dava início às investigações para apuração do fato. A tais providências preliminares dava-se o nome de inquisitio. Dispensava-se a acusação, e a pena podia ser imposta pelo magistrado ao cabo das investigações. Nessa fase o processo penal era denominado cognitio (cognição espontânea) e nele firmou-se o antiquíssimo sistema

4 O Período Régio ou da Realeza vai desde a fundação de Roma em 754 a.C., até aproximadamente o ano de 510

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procedimental romano, por meio do qual atribuíam-se, originariamente, poderes limitados ao magistrado na direção do processo, e, consequentemente, na pesquisa da verdade criminal.

Durante a fase da República5 verifica-se a figura dos cônsules, que eram magistrados, como detentores do poder, em substituição aos reis (BARROS, 2002, p. 54). Ademais, durante nesse período teria surgido o que parece ser uma instância recursal, denominada de provocatio ad populum, instituto que objetivava a realização do reexame do caso apreciado, oferecendo, pois, uma “[...] oportunidade ao condenado de obrigar o magistrado a apresentar ao próprio povo (populum), reunido em assembléia, as provas que havia colhido no curso da inquisitio a fim de que nova decisão fosse proferida sobre o caso.” (BARROS, 2002, p. 54).

Ao final do período da República adotou-se o accusatio, ou processo acusatório, nova forma de realização do rito procedimental penal. A principal inovação promovida foi, sobretudo, a separação das funções de acusar e julgar, visto que, a partir de então, as questões eram levadas ao julgador por qualquer pessoa reputada como cidadã romana. Verifica-se, ainda, nesse sistema processual, a efetiva necessidade do acusador provar as suas alegações, sob o risco de vir a sofrer a responsabilização criminal, na hipótese de absolvição do imputado. Ademais, caso o ofendido não apresentasse a sua demanda, restando inerte, aquele que praticou o delito permaneceria impune, demonstrando, assim, a necessidade de provocação (BARROS, 2002, p. 55).

Na fase subsequente, chamada de Principado6, ocorre o retorno do predomínio do regime absoluto, período histórico caracterizado pela centralização do poder na figura do soberano. Nessa época, o processo penal é marcado pelo cognitio extra ordinem7, por meio do qual “[...] podiam os magistrados imperiais invadir a esfera de atuação do acusador particular, o que vai dar ensejo à criação do procedimento ex officio, aliás muito proveitoso para consumar as perseguições políticas da época.” (BARROS, 2002, p. 57) instaurando, assim, mais uma vez, o sistema inquisitorial.

A comparação entre o sistema acusatório e o processo extraordinário, pode ser assim resumida: “[...] enquanto no período da República, o magistrado tinha uma atuação de neutralidade na fase de instrutória do processo penal, pois a prova dos fatos competia às

5 A República corresponde ao período subsequente ao da Realeza, em que se verifica notável fortalecimento do

poder romano (BARROS, 2002, p. 54).

6 A era do Principado teve início, aproximadamente, por volta do ano 27 a.C, (BARROS, 2002, p. 57).

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partes, no período do Alto Império8 sua intervenção, na produção de provas, era admitida sem limitações [...]” (BARROS, 2002, p. 57).

Já na fase da Monarquia Absoluta9, estando ainda vigente o sistema do processo extraordinário, observa-se a acentuação das práticas inquisitoriais, sobretudo, mediante a utilização da tortura como meio idôneo à obtenção da verdade. Nesse sentido, Goulart (2002, p. 24, apud MATTOSO, p. 39) apresenta vários métodos de tortura, utilizados, não apenas como punição, mas, sobretudo, como meio probatório, objetivando, especialmente, a confissão, a qual era considerada suficiente para a condenação:

[...] o fogo (tormentum ignis), a fome (tormentum famis), a sede (tormentum sitis), o pano com sal na goela (tormentum ex sale et lintes), a pendura (tormentum funis vel cordae) e vários animais (tormentum cum capra, onde a cabra lambia até descarnar as sola da vítima, previamente esfregadas com sal; tormentum cum scarabeo onde um escravelho ou outro inseto era colocado sobre o corpo da vítima e tampado com um vaso, tal como o rato no penico). Usaram diversos tipos de açoite: ferula, com uma só correia, scutica, com duas correias entrelaçadas; flagellum, três tiras com nós de osso; plumbatae, várias tiras com bolinhas de chumbo e cabo de madeira. Foram também mestres no emprego de máquinas como a rota (roda) e o equuleus (cavalete). A roda, cuja invenção se atribui a Cômodo, tinha aplicação variada: móvel, servia para esmagar como um rolo compressor; fixa num eixo com manivela, servia para amarrar a vítima, provocar-lhe lentas cambalhotas sobre uma fogueira ou um chão de pregos. O cavalete, também conhecido como proto, não passava de um leito de madeira no qual a vítima era atada com braços e pernas separados na forma de X e esticada por meio de dois carretéis, um na cabeceira, outro nos pés, onde as cordas iam se enrolando. Entre as penas capitais, serviam-se da decapitação com machado ou espada, da precipitação do alto da rocha Tarpéia, do afogamento, das feras na arena e da cruz.

Posteriormente, ao final desse fase, têm-se um processo penal escrito, “[...] sendo reproduzido nos autos os interrogatórios dos acusados e os depoimentos das testemunhas.” (BARROS, 2002, p. 59).

A respeito do sistema medieval, sucintamente, LIMA (2018, p. 13) aponta que a defesa chegou até mesmo a ser reputada como empecilho à verdade. O processo penal nessa época é marcado pela instauração da ação penal de ofício pelo ente julgador, inclusive, “[...] no século XV, [...], é criado em Portugal e Espanha o Tribunal do Santo Ofício, sendo a prova colhida secretamente e com o ‘acusado’ tendo que ‘jurar a verdade’, isso tudo com ampla utilização da tortura [...]”.

Observa-se, pois, que adoção do sistema inquisitorial implicou, conforme brevemente apresentado, no distanciamento do respeito à dignidade da pessoa humana. Ademais, tão grave quanto a inexistência de garantias fundamentais, é a sua inaplicabilidade, mormente

8 Alto Império é o mesmo que Principado.

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quando em busca de alcançar uma verdade real, e assim supostamente alcançar o ideal de justiça, aquele que deveria se comportar como uma figura imparcial, à espera das provas produzidas pelas partes, atua ativamente, transpondo os limites do legal, mas fundamentando seus atos com a reinterpretação de princípios ao seu próprio alvedrio, ou mesmo com o preenchimento de termos abertos, por exemplo, como se todos os meios justificassem os fins10,sem considerar que maior dano é gerado à coletividade, o qual não é compensado, nem mesmo minimamente, com a sanção de quantos ou de quem quer que seja.

2.3.2 Considerações acerca da “verdade real”

O termo verdade é proveniente do latim veritae, que pode ser entendido como exatidão, realidade ou conformidade (BARROS, 2002, p. 14). O processo penal pode, indubitavelmente, não corresponder à exatidão dos fatos, visto que as próprias provas são incapazes de apresentar todas as variantes que ocasionaram o cometimento do delito.

Consoante expresso no contexto histórico, em nome de uma verdade real inúmeros foram os episódios em que a subtração do direito de defesa, bem como a aplicação de tortura a fim de obter a confissão, foram utilizadas.

A persecução da verdade real, especialmente quando feita pelo julgador, pode ocasionar, como já provado pelas experiências remotas indicadas nos registros históricos, o afastamento do princípio da imparcialidade, o reforço de estigmas, além da busca por provas que apenas justifiquem o prévio convencimento do juiz, trata-se da desvirtuação da prova, a qual visa reconstruir um momento pretérito, a partir do qual, após a minuciosa análise, e se presentes fortes indícios, será possível a prolação de uma decisão condenatória. Ou seja, deve-se partir da análideve-se das provas para a formação de um convencimento, não o contrário.

A busca pela verdade real, como finalidade máxima do processo penal, guarda referência com o ainda não superado sistema inquisitorial. Assim, PACELLI (2017, p. 339) pontua que:

Talvez o mal maior causado pelo citado princípio da verdade real tenha sido a disseminação de uma cultura inquisitiva, que terminou por atingir praticamente todos os órgãos estatais responsáveis pela persecução penal. Com efeito, a crença inabalável segundo a qual a verdade estava efetivamente ao alcance do Estado foi a responsável pela implantação da ideia acerca da necessidade inadiável de sua perseguição, como meta principal do processo penal.

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Considerando a manutenção de um sistema misto, tal qual ocorre no Brasil (LOPES JR. 2016, p. 45), em que o caráter acusatório e o inquisitório, talvez com a preponderância deste último, confluem para a formação do processo penal, há de se observar o respeito pelas “regras do jogo” e a contenção de danos, tal como observa KHALED JR. (2013, p. 454):

a lógica que move o sistema deve ser estruturada a partir da necessidade de contenção e não de maximização de danos, motivo pelo qual a efetiva separação das funções de acusar e julgar e a gestão da prova nas mãos das partes expressam regras do jogo com as quais não se deve transigir. Somente assim os espaços de arbitrariedade que possibilitam o decisionismo processual podem em alguma medida encontrar contenção, em uma estrutura voltada para essa finalidade. [...] Como já dissemos, o único sentido de uma ambição de verdade é o de obter a condenação, motivo pelo qual deve haver uma efetiva separação das funções de acusar e julgar, cabendo exclusivamente às partes a gestão da prova.

Dentre as características observáveis no sistema inquisitorial, LOPES JR. (2011, p. 558) aponta uma espécie de ritualística em torno da construção da verdade, para esse autor, “o mito fundante do processo (notoriamente o inquisitório) é a verdade, logo, isso estrutura um ritual e um procedimento que dê conta dessa função.”. A utilização da toga, os termos em latim, o crucifixo pendente sobre a figura dos magistrados, o modelo arquitetônico adotado nos tribunais compõem a ritualística do judiciário e encarnam a aparência de justiça, respeito ou mesmo de sagrado (LOPES JR., 2011, p. 558).

Com efeito, o processo penal é pautado em provas, as quais, contudo, diante de suas fragilidades inerentes, apesar de função retrospectiva, são incapazes de retratar de forma absoluta o fato ocorrido. Aponta LOPES JR. (2011, p. 557, apud DURAN, 1997), especialmente no tocante à prova testemunhal, características que denotam o quão passível a distorções é esse meio de prova:

O crime é história, passado, e, como tal, depende da memória de quem narra. A fantasia/criação faz com que o narrador preencha os espaços em branco deixados na memória com as experiências verdadeiras, mas decorrentes de outros acontecimentos. A imaginação colore a memória com outros resíduos. É o clássico exemplo do cubo: podemos ver duas, no máximo três faces. O cubo só é real no imaginário, pois somente assim se conhece as 6 faces. Não há dúvidas de que a imaginação não forma imagens, mas deforma as cópias pragmáticas fornecidas pela percepção.

Segundo CASARA (2015, p. 178) “o conhecimento é, portanto, sempre parcial. Em que pese a existência de procedimentos de otimização do processo de reconstrução histórica de fatos, o julgador e os demais atores jurídicos não podem ignorar a impossibilidade humana de descobrir a verdade.”. Assim, ao julgar, deve o juiz pautar-se no lastro probatório presente nos autos, o qual é limitado, visto a impossibilidade de completa demonstração da realidade fática ocorrida, mas que propicia indícios a fim de que seja exercido o poder punitivo do Estado, contudo, sendo sempre os atos processuais conduzidos em respeito ao princípio da

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presunção da inocência. Além disso, deve-se sempre observar a suscetibilidade de ocorrência de falhas e distorções nas provas colhidas:

[...] não há como reconstituir no processo um fato criminoso que já não existe mais, que pertence ao passado e que, portanto, não se constitui mais numa realidade. Logo, só será possível representá-lo na memória, no plano mental e na imaginação dos sujeitos processuais. E essa representação, como toda representação, é sempre suscetível de subjetivismos, além do que os meios de prova são também suscetíveis de falhas, distorções, manipulações etc. É justamente por essa razão que, em lugar de uma “verdade real”, fala-se numa “verdade processual”, ou seja, numa verdade construída dentro do processo, utilizando as provas, as oportunidades processuais e argumentação, sempre com o objetivo de estabelecer uma correspondência razoável entre o fato histórico, que pertence ao passado, e o fato representado nos autos, que será julgado no presente. (MACHADO, 2014, p. 461).

O próprio tema, ora pesquisado, denota que a verdade real é inalcançável, visto que as falsas memórias são circunstâncias que levam o indivíduo a acreditar ser a verdade fatos que nunca ocorreram, ou que ocorreram de modo diverso, mas que em sua memória denotam vividamente representados. CASARA, atento a esse fenômeno, assim pontuou:

A existência de “falsas memórias” (que não se confundem com a simulação e o falso testemunho, posto que, na “falsa memória”, o depoente acredita estar a descrever a verdade), a relação testemunha- autoridade (que pode fazer nascer na testemunha o desejo de relatar tão somente o que acredita ser o que a autoridade quer ouvir), a falta de estrutura da polícia técnica, dentre outros fatores, revelam a ingenuidade daqueles que buscam e acreditam descobrir a verdade. (CASARA, 2015, p. 178, apud SHACTER, 2003, p. 125-127, 143, 145, 155-166; DI GESU, 2010 e PONTE, p. 831-852).

No mesmo sentido, RANGEL (2013, p.7) defende uma verdade processual, para o qual, “a verdade é dentro dos autos e pode, muito bem, não corresponder à verdade do mundo dos homens. Até porque o conceito de verdade é relativo, porém, nos autos do processo, o juiz tem que ter o mínimo de dados necessários (meios de prova) para julgar admissível ou não [...]”.

Os próprios sentidos humanos são incapazes de apreender todos os estímulos propiciados pelo meio em que imerso, assim, “percebemos apenas sintomas da realidade, mas não ela própria, ou, no máximo, uma fração dela.” (KHALED JR., 2013, p. 457).

A prova testemunhal, “[...] principal meio de prova utilizado no processo penal brasileiro [...]” (LOPES JR. 2011, p. 556), por exemplo, possui limitações intrínsecas que tendem a diminuir a sua credibilidade, visto que a “nossa memória é suscetível à distorção mediante sugestões de informações posteriores aos eventos. Além disso, outras pessoas, suas percepções e interpretações podem, sim, influenciar a forma como recordamos dos fatos.” (STEIN et al., 2010, p. 26).

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Ademais, segundo KHALED JR. (2013, p. 456), “[...] os sentidos humanos têm uma percepção extremamente limitada do mundo e do que acontece ao seu redor. Em outras palavras, a realidade não é inteligível por si só ao olhar daquele a observa, mesmo que diretamente.”. Ocorre que o processo penal é produzido por homens, em que é impossível o afastamento das suas limitações, malgrado possam ser minoradas. Stein et al. (2010, p. 22) apresenta um relato em que resta evidenciado a falibilidade da memória humana, bem como as implicações jurídicas decorrentes:

Chamado para fazer uma corrida, um taxista foi vítima de um assalto, no qual sofreu ferimentos, e foi levado ao hospital. O investigador do caso mostrou ao taxista, que ainda em fase de recuperação, duas fotografias de suspeitos. O taxista não reconheceu os homens apresentados nas fotos como sendo algum dos assaltantes. Passados alguns dias, quando foi à delegacia para realizar o reconhecimento dos sujeitos, ele identificou dois deles como sendo os autores do assalto. Os homens identificados positivamente eram aqueles mesmos das fotos mostradas no hospital. Os suspeitos foram presos e acusados pelo assalto. Ao ser questionado em juízo sobre seu grau de certeza de que os acusados mesmo os assaltantes, o taxista declarou: “eu tenho mais certeza que foram eles, do que meus filhos são meus filhos!”. Todavia, alguns meses depois, dois rapazes foram presos por assalto em uma cidade vizinha, quando interrogados, confessaram diversos delitos, inclusive o assalto ao taxista.

Assim, as provas, malgrado a sua importância, não são plenamente possíveis de apresentar a realidade fática, não havendo em que se falar de verdade real, mas sim de verdade processual, a qual é fruto do quanto produzido pelas partes, verdadeiras gestoras da prova. ALENCAR e TÁVORA (2012, p. 62, apud KHALED JR., 2009, p.33), confirmam esse pensamento, visto que acreditam que “devemos buscar a verdade processual, identificada como verossimilhança (verdade aproximada), extraída de um processo pautado no devido procedimento, respeitando-se o contraditório, a ampla defesa, a paridade de armas e conduzido por magistrado imparcial.”.

2.4 A VALORAÇÃO DAS PROVAS E O LIVRE CONVENCIMENTO DO JULGADOR

O Código de Processo Penal de 1941 ao tratar das provas, em seu artigo 155, caput, identifica o livre convencimento motivado como princípio a ser seguido pelo juiz na apreciação das provas produzidas, a fim de pautar a sua decisão.

Conforme posicionamento doutrinário haveriam três sistemas relacionados à avaliação da prova. O primeiro seria o da inquisitio “[...] no qual o juiz- acusador formava livremente a sua convicção, sem declinar os caminhos trilhados pelo seu raciocínio e pelo seu espírito [...]” (PACELLI, 2017, p. 346), demonstrando, assim, a completa situação de arbitrariedade em que

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já esteve pautado o processo penal. O segundo sistema de avaliação seria o da prova tarifada, em que, de antemão, já se previa o valor de cada meio probatório, atinente ao delito em análise, retirando do julgador a possibilidade de formação do seu convencimento em outros elementos probandos (PACELLI, 2017, p. 346).

Já o terceiro sistema, atualmente adotado no processo penal pátrio, trata-se da persuasão racional, entendendo-se que “[...] o juiz é livre na formação do seu convencimento, não estando comprometido por qualquer critério de valoração prévia da prova, podendo optar livremente por aquela que lhe pareça mais convincente.” (PACELLI, 2017, p. 346). Em tal sistema, malgrado haja a possibilidade maior de escolha e liberdade na formação do seu juízo cognitivo, o juiz estará sempre vinculado ao dever de motivar, sob o risco de indesejoso regresso ao período do poder desmedido do órgão julgador.

O que confere previsibilidade mínima e segurança jurídica ao sistema processual penal é a taxatividade. Contudo, longe de se conceber um julgador como mero sabedor e aplicador da lei, em uma atividade estritamente mecânica, o juiz é, em verdade, o agente que irá realizar a análise fática e interpretar os dispositivos legais, sendo, pois, atividade cognitiva, porém sempre atento aos limites do poder punitivo. Com efeito, conforme apontado por STRECK (2015, p. 34), o poder discricionário pode ser apresentar travestido de livre convencimento, alertando, pois, ao protagonismo judicial.

Para a doutrina administrativista, discricionariedade significa “[...] liberdade de decisão diante do caso concreto, de tal modo que a autoridade poderá optar por uma entre várias soluções possíveis, todas válidas perante o direito.” (DI PIETRO, 2015, p. 255). Assim, discricionariedade não é sinônimo de livre escolha, assim entendida aquela que não atende a critérios mínimos de verificação, como a oportunidade e conveniência, mas sim a que se atenta às opções legais.

Segundo LOPES JR (2016, p. 383) “[...] o livre convencimento é, na verdade, muito mais limitado do que livre. E assim deve sê-lo, pois se trata de poder e, no jogo democrático do processo, todo poder tende a ser abusivo. Por isso necessita de controle.”. Para CASARA, o livro convencimento seria um mito:

O livre convencimento motivado não passa de um mito, “enunciado do impossível”, com conteúdo manifesto a ocupar um lugar que antes ficava vazio na dogmática processual penal. Um mito, que, como a verdade, tem estruturado de ficção e parte da crença de que o sujeito é capaz de julgar de acordo com a sua consciência, em atenção unicamente às provas que constam dos autos. (CASARA, 2015, p. 183, apud LACAN, 1992, p.132 e LACAN, 2008, p. 253).

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Ademais, o Código de Processo Civil de 1973 previa, em seu artigo 131, expressamente, a possibilidade de livre apreciação da prova, devendo o juiz, contudo, atentar-se aos fatos e circunstâncias constantes dos autos. O CPC de 2015, diferentemente, teve no seu projeto, por sugestão de Lenio Streck, a retirada da expressão livre convencimento, ou qualquer outra similar (STRECK, 2015, p. 35), restando assim previsto no artigo 371 que “o juiz apreciará a prova constante dos autos, independentemente do sujeito que a tiver promovido, e indicará na decisão as razões da formação de seu convencimento.”. A motivação, para tanto, residiu no seguinte fundamento:

[...] embora historicamente os Códigos Processuais estejam baseados no livre convencimento e na livre apreciação judicial, não é mais possível, em plena democracia, continuar transferindo a resolução dos casos complexos em favor da apreciação subjetiva dos juízes e tribunais. Na medida em que o Projeto passou a adotar o policentrismo e coparticipação no processo, fica evidente que a abordagem da estrutura do Projeto passou a poder ser lida como um sistema não mais centrado na figura do juiz. As partes assumem especial relevância. Eis o casamento perfeito chamado ‘coparticipação’, com pitadas fortes do policentrismo. E o corolário disso é a retirada do ‘livre convencimento’. O livre convencimento se justificava em face da necessidade de superação da prova tarifada. Filosoficamente, o abandono da fórmula do livre convencimento ou da livre apreciação da prova é corolário do paradigma da intersubjetividade, cuja compreensão é indispensável em tempos de democracia e de autonomia do direito. Dessa forma, a invocação do livre convencimento por parte de juízes e tribunais acarretará, a toda evidência, a nulidade da decisão.

Assim, não se espera neutralidade do julgador, visto ser impossível, somos formados por nossas memórias, convicções, paixões, gostos, o que nos faz humanos, o nosso subjetivismo. O que se requer, malgrado possa ser reputado como mito, é a efetiva atenção às provas consubstanciadas no processo, de sorte que as decisões restem fundamentadas, de modo que não imperem arbitrariedades. No tocante ao extremo envolvimento emocional com a causa, ou mesmo favorecimento de uma parte, por guardar correspondência com suas convicções pessoais, medida que se impõe é o reconhecimento da sua parcialidade, e, consequentemente, afastamento do processo. Dessa forma, o já questionado livre convencimento não deve dar azo à atuação desrespeitosa aos ditames legais.

2.5 A PROVA TESTEMUNHAL NO PROCESSO PENAL

A prova testemunhal guarda as seguintes características: judicialiade, visto que os depoimentos, como regra, devem ser prestados sempre em juízo; oralidade, preza-se pelo depoimento verbal, em detrimento ao escrito; objetividade, visto que o testemunho deverá ater-se às circunstâncias que guardem interesse para a causa, minorando, pois, os

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subjetivismos; retrospectividade, de sorte tratar-se de um processo de reportação ao passado; e, por fim, a obrigatoriedade, que, como o próprio nome pressupõe, é o dever, por assim dizer, imposto à testemunha de colaborar com a justiça (MACHADO, 2014, p. 507 e 508).

2.5.1 Conceito de testemunha

Etimologicamente a palavra testemunha remete ao termo supersts, “[...] expressão em latim que designa aquele que passou por uma experiência e que por isso pode depor sobre ela. Portanto, ampara-se em um critério de autoridade, embasado na dimensão de presença: ‘eu vi, eu estava lá, eu constate’.” (KHALED JR., 2013, p. 467). Segundo PACHECO (2008, p. 653), “testemunha é toda pessoa humana capaz de depor e estranha ao processo, chamada ao processo para declarar a respeito de fato percebido por seus sentidos e relativo à causa [...]”.

Testemunhar, por sua vez, seria “[...] uma manifestação do conhecimento, maior ou menor, acerca de um determinado fato.” (PACELLI, 2017, p. 419). Conforme MACHADO (2014, p. 507), o testemunho seria “[...] uma exposição verbal, feita perante o juiz, por quem tenha ciência do fato criminoso ou que conheça alguma questão relevante sobre esse fato, objeto da acusação.”.

Seja qual for a definição, importa compreender que esse meio de prova é “[...] imprescindível ao processo, como fator de humanização.” (DI GESU, 2014), ponto favorável para a continuidade de sua aplicação, ante as fragilidades que apresenta.

2.5.2 Recusas, restrições, proibições e compromisso. A obrigação de falar a verdade.

Por força do art. 202 do Código de Processo Penal vigente, “toda pessoa poderá ser testemunha”. Trata-se de maior abertura para a produção de prova testemunhal, diferentemente do que ocorre no processo civi, a razão para tanto pode ser vista pela busca de um maior grau de certeza, sobretudo, em virtude dos bens jurídicos envolvidos no processo (PACELLI, 2017, p. 420).

Uma das características da prova testemunhal é a obrigatoriedade, a qual resta consagrada no artigo 206 do CPP. O referido dispositivo legal também apresenta exceções a essa regra, assim, o ascendente ou descendente, o afim em linha reta, o cônjuge, ainda que

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desquitado, o irmão, o pai, a mãe, ou o filho adotivo do acusado, salvo quando não for possível, por outro modo, obter-se ou integrar-se a prova do fato e de suas circunstâncias, poderão recursar-se a depor. Trata-se, como pontuou LOPES JR. (2016, p. 481), de uma “[...] proteção para aquelas pessoas que, em razão do parentesco e presumida proximidade, não sejam obrigadas a depor.”. Assim, as supracitadas pessoas do artigo 206 do CPP, até poderão ser ouvidas, contudo, como declarantes, não se submetendo, pois, ao juramento que impõe a veracidade das alegações (MACHADO, 2014, p. 509).

Com efeito, seria possível inferir que os informantes, por não prestarem compromisso, não se sujeitam à responsabilização penal decorrente do crime de falso testemunho11, inclusive, sendo esse o entendimento esboçado no Habeas Corpus 92.836-SP (2007/0246973-3), de relatoria da Ministra Maria Thereza de Assis Moura, julgado em 27 de abril de 2010, impetrado em face do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, que denegou a ordem intentada para trancar o Inquérito Policial nº 109/06, por entender que o crime de falso testemunho pode ser praticado por testemunha descompromissada, tal como o cônjuge. Restando apreciado o remédio constitucional, a Turma, por unanimidade, concedeu a ordem de Habeas Corpus (STJ, 2010).

Há pessoas que, todavia, são proibidas de depor, visto expressa disposição legal, conforme consta no art. 207 do CPP, as quais, “em razão de função, ministério, ofício ou profissão, devam guardar segredo, salvo se, desobrigadas pela parte interessada, quiserem dar o seu testemunho.”.

A exemplo de ocupações em que o dever de sigilo é parte essencial para o desempenho das atividades, pode-se citar as exercidas pelos “[...] padres ou pastores de quaisquer religiões, os advogados, os médicos, os psicólogos e psiquiatras que tenham conhecimento dos fatos a partir do exercício das respectivas funções.” (PACELLI, 2017, p. 423). Não poderia ser diferente, visto o risco da quebra da confiança depositada no profissional, o que, consequentemente, inviabilizaria o pleno exercício da função.

Em virtude do reconhecimento que o depoimento prestado pela testemunha constitui meio de prova, inclusive, com abrangente utilização, servindo de embasamento para a formação da convicção do julgador, o art. 342 do Código Penal tipifica o ato de fazer

11 Segundo PACELLI (2017, p. 420) o “[...] art. 342 do CPP não faz qualquer referência ao compromisso como

elementar do tipo penal de falso testemunho. Assim, em regra, todos têm o dever de por, decorrendo daí também o dever de dizer a verdade, conforme imposição da lei [...]”.

Referências

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