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4.1 PRINCIPAIS FATORES CONSUBSTANCIADORES DAS FALSAS MEMÓRIAS NA

4.1.2 A mídia

A mídia exerce inegável influência sobre a sociedade, cumprindo mais que do que o dever de informar, por vezes, em verdade, distanciando-se disso, atua como agente formador de opiniões, legitimador de estereótipos, em que a notícia, em muitos casos, adquire o viés imposto por uma classe dominante. Os meios de comunicação também se apresentam direcionados a determinados públicos alvos, sobre esse ponto, segundo ALVES FILHO (2000, p. 101), os jornais26 poderiam ser classificados como partidários, especializados, populares, alternativos e os de grande imprensa. Para esse autor, os partidários seriam aqueles que:

[...] explicitam compromisso com causa determinada, sendo fechados a qualquer outras visões de mundo. Ao fazerem-se porta-vozes de ideologias claramente delineadas (políticas, religiosas, raciais, etc.), contam com a aprovação dos que partilham do mesmo ethos cultural, e com a indiferença ou a desaprovação dos que não se identificam com ele. Estes, tendem a colocar sob suspeita informações e interpretações contidas em tais publicações, considerando-as parciais e unilaterais, julgando-as não confiáveis e falseadoras do real. (ALVES FILHO, 2000, p. 101).

Os “jornais especializados voltam-se para públicos específicos e necessariamente valem-se de terminologia hermética, só sendo capazes de atrair a atenção de iniciados.”, os

26 Apesar da expressa referência aos jornais, o sentido da colocação do autor pode ser interpretado como atinente

quais, por exemplo, abordariam temas como a filosofia, artes, literatura e esportes (ALVES FILHO, 2000, p. 101). Os populares se distinguiriam dos demais, sobretudo, porque terem por objetivo:

[...] atingir público de baixo poder aquisitivo, dedicam o espaço nobre ao noticiário sobre crimes, assaltos, acidentes e outras formas de tragédia e violências urbanas, sendo o espaço para o noticiário político nacional e internacional claramente delimitado e sumariado. (ALVES FILHO, 2000, p. 101, apud SERRA, 1980, p. 20).

Os dois primeiros tipos de jornais apresentados, partidários e especializados, guardam semelhança no tocante ao fato de “[...] atingirem público restrito, tendo, como consequência, circulação baixa e localizada. Nem os de um tipo nem os do outro podem ser considerados como representativos da mídia.” (ALVES FILHO, 2000, p. 102). Por fim, quanto aos alternativos e os de grande imprensa, estes “[...] têm em comum o fato de apresentarem-se como voltados para o ‘interesse público em geral’. Neste particular, o que os diferencia não é a grande e a pequena quantidade de exemplares vendidos.”. (ALVES FILHO, 2000, p. 102). A exemplo de jornais alternativos o autor cita o caso do Pasquim, “trata-se de jornal alternativo que, nas décadas de sessenta e setenta, valeu-se de linguagem satírica e coloquial para fazer oposição à ditadura e conquistou parcela considerável do público [...]” (ALVES FILHO, 2000, p. 102, apud BRAGA, 1991, p. 28).

Segundo BOURDIEU (1997, p. 22), a televisão exerce a violência simbólica, termo este que é conceituado, para este autor, como “[...] uma violência que se exerce com a cumplicidade tácita dos que a sofrem e também, com frequência, dos que exercem, na medida que uns e outros são inconscientes de exercê-la ou de sofrê-la.”. A ação simbólica se apresentaria, por exemplo, na escolha pelo predomínio de coisas fúteis a serem exaustivamente transmitidas ao telespectador:

Ora, o tempo é algo extremamente raro na televisão. E se minutos tão preciosos são empregados para dizer coisas tão fúteis são de fato muito importantes na medida em que ocultam coisas preciosas. Se insisto neste ponto, é que se sabe, por outro lado, que há uma proporção muito importante de pessoas quem não lêem nenhum jornal; que estão devotadas de corpo e alma à televisão como fonte única de informações. A televisão tem uma espécie de monopólio de fato sobre a formação das cabeças de uma parcela muito importante da população. Ora, ao insistir nas variedades, preenchendo esse tempo raro com o vazio, com nada ou quase nada, afastam-se as informações pertinentes que deveria possuir o cidadão para exercer seus direitos democráticos. (BOURDIEU,1997, p. 23 e 24).

As pessoas, em verdade, estão a todo tempo cercadas de informações, especialmente em decorrência do atual estágio tecnológico de desenvolvimento e alcance da mídia, contudo, grande parte dos conteúdos são triviais, ou mesmo de importância secundária, assim, “decisões do Congresso Nacional capazes de afetar milhões de brasileiros obtêm divulgação

ínfima se comparadas com as atividades inquisitoriais de alguma CPI, ou com investigações sobre a própria conduta de parlamentares.” (BATISTA, 2002, p. 14).

Os conteúdos veiculados pela mídia sofrem a prévia seleção, por não raras vezes, a manipulação, adornando a notícia com elementos que provoquem o exagero, inspirem o medo, a insegurança, a formação de juízos de valor, “a televisão convida à dramatização, no duplo sentido: põe em cena, em imagens, um acontecimento e exagera-lhe a importância, a gravidade, e o caráter dramático, trágico.” (BOURDIEU, 1997, p. 25). Assim, notícias sobre crimes, desastres naturais, eventos em geral catastróficos são excessivamente explorados pela mídia, sendo chamados de “[...] extraordinário ordinário, isto é, previsto pelas expectativas ordinárias, incêndios, inundações, assassinatos, variedades. Mas o extra-ordinário é também e sobretudo o que não é ordinário com relação aos outros jornais. ” (BOURDIEU,1997 , p. 26). Conforme pontuado por Batista (2002, p. 14), os noticiários encarnam, em muitos casos, representações teatrais:

Na televisão, os âncoras são narradores participantes dos assuntos criminais, verdadeiros atores – e atrizes – que se valem teatralmente da própria máscara para um jogo sutil de esgares e trejeitos indutores de aprovação ou reproche aos fatos e personagens noticiados. Este primeiro momento no qual uma acusação a alguém se torna pública não é absolutamente neutro nem puramente descritivo. A acusação vem servida com seus ingredientes já demarcados por um olhar moralizante e maniqueísta; o campo do mal destacado do campo do bem, anjos e demônios em sua primeira aparição inconfundíveis.

Assim, o processo penal é apresentado sob o viés sensacionalista e exposto como uma atração televisiva, ocupando grande parte dos noticiários, especialmente no caso dos crimes dolosos contra a vida, em que se explora, incansavelmente, a figura já quase beatificada da vítima, promovendo a comoção social e, sobretudo, incitando na população o desejo insaciável pela punição daquele que se encontra na posição de acusado, o qual é tomado, de logo, como comprovadamente culpado. Com efeito, BOURDIEU (1997, p.28) adverte sobre o “efeito de real” produzido pela mídia:

ela [ a televisão] pode fazer ver e fazer crer no que faz ver. Esse poder de evocação tem efeitos de mobilização. Ela pode fazer existir idéias ou representações, mas também grupos. As variedades, os incidentes ou acidentes cotidianos podem ser carregados de implicações políticas, éticas etc. capazes de desencadear sentimentos fortes, frequentemente negativos, como o racismo, a xenofobia, o medo- ódio do estrangeiro, e a simples narração, o fato de relatar, to record, como repórter, implica sempre uma construção social da realidade capaz de exercer efeitos sociais de mobilização (ou de desmobilização).

O referido “efeito real” torna-se ainda mais perigoso quando envolvido na representação de um crime, visto que, se já há uma tendência em conferir credibilidade ao quanto noticiado pela mídia, será ainda mais convincente mediante a reconstituição do

suposto fato criminoso, pois além da informação verbal, a visual contribuirá para a compreensão da versão sustentada, a qual se incorporará à memória como verídica.

A testemunha não está isenta de ser influenciada com informações posteriores apresentadas pela mídia, levando-a a preencher os espaços oriundos do esquecimento com conteúdos provenientes de terceiros, fragilizando, portanto, o seu depoimento. Segundo ALVES FILHO (2000, p. 104), referindo-se à mídia, “quem compra “informação” recebe a mercadoria (informação) junto com algo mais do que o anunciado: compra uma interpretação.”. Os meios de comunicação, malgrado muitos defendam a imparcialidade da notícia, apresentam notória carga de subjetivismo, bem como enviesamento de quem os financia.

É importante saber que a NBC é propriedade da General Eletric (o que significa dizer que, caso ela se aventure a fazer entrevistas com vizinhos de uma usina nuclear, é provável que...aliás, isso não passaria pela cabeça de ninguém...), que a CBS é propriedade de Westinghouse, que a ABC é propriedade da Disney, que a TF1 é propriedade de Bouygues, o que tem consequências, através de toda uma série de mediações. É evidente que há coisas que um governo não fará a Bouygues sabendo que Bouygues está por trás da TF1. Essas coisas são grossas e grosseiras que a crítica mais elementar as percebe, mas ocultam os mecanismos anônimos, invisíveis através dos quais se exercem as censuras de toda ordem que fazem da televisão um formidável instrumento de manutenção da ordem simbólica. (BOURDIEU (1997, p. 20).

Assim, “[...] a linguagem da mídia está inteiramente fora da verdade da prova, pois o seu sentido é o convencimento mediante a excitação e comoção, e logo, mediante a retórica, no sentido pejorativo do termo.” (KHALED JR., 2013, p. 465, apud GIL, 2002, p. 24). Contudo, “nossa memória é suscetível à distorção mediante sugestões de informações posteriores aos eventos.” (STEIN et al., 2010, p. 26). Com enfeito, a testemunha ao se deparar com sucessivos noticiários, reconstituições do crime, poderá incorporar ao seu discurso, ainda que involuntariamente, informações sobre fatos dos quais não presenciou.