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Tipos de memórias e seus indicativos de formação de falsas memórias

3.1 CONCEITO E ASPECTOS GERAIS DA MEMÓRIA

3.1.1 Tipos de memórias e seus indicativos de formação de falsas memórias

A literatura médica aponta que ainda persistem incertezas no tocante à identificação e quantificação dos sistemas de memória existentes (EISENKRAEMER, 2006, p. 103). Pelo modelo de processamento15 é possível identificar três tipos de memórias: a sensorial, a de curto prazo e a de longo prazo.

Com efeito, “a memória parece diferir entre situações que exigem que armazenemos material por uma questão de segundos daquelas que nos exigem armazenar material por intervalos mais longos [...]” (ATKINSON et al., 2002, p. 290). GLEITMAN, FRIDLUND E REISBERG (2003, p.346) abordam a teoria dos multi- armazéns, segundo a qual, por meio de metáforas, a memória é vista da seguinte forma:

Pensemos na relação entre a nossa mesa de trabalho e a estante: as prateleiras levam muitos livros e, portanto, uma grande quantidade de informação. Mas esta informação não lhe é imediatamente acessível e, a ser necessária, poderá exigir algum tempo de procura. Por outro lado, a mesa tem apenas um espaço limitado e, por isso, só cabem alguns livros e papéis ao mesmo tempo.

Mas o que está sobre a mesa encontra- se imediatamente disponível, pelo que não se perde tempo a procurar a informação. Claro que cada uma das modalidades de armazenamento tem as suas vantagens: a estante permite armazenar uma grande quantidade de conhecimentos incluindo, naturalmente, muita informação que não precisamos de usar neste momento. Mas a mesa de trabalho dá-nos acesso imediato a um pequeno armazém de informação pertinente para o projecto do momento.

12 O contexto apresentado neste trabalho não inclui a condição do indivíduo portador da rara Síndrome da

Memória Autobiográfica Altamente Superior (HSAM- Highly Superior Autobiographical Memory), a qual faz com que as pessoas “[...] consigam lembrar-se de pormenores dos eventos de cada dia da sua vida desde que eram crianças, incluindo a data e o dia da semana em que aconteceram.” (GERSCHENFELD, 2013). Contudo, há estudos que indicam a possibilidade da manifestações de falsas memórias também nos indivíduos portadores da HSAM.

13 Conforme apontado por IZQUIERDO (2014, n.p) “existe um processo de tradução entre a realidade das experiências e a formação da memória respectiva; e outro entre esta e a correspondente evocação.”

14 Conforme se aprofundará mais a frente, as falsas memórias decorrem de processos

15 Segundo Davidoff (2001, p. 205) há muita incerteza a respeito da natureza da memória, existindo mais de 50

(cinquenta) modelos explicativos diferentes; sendo o termo modelo entendido como “[...] um sistema simplificado que contém as características principais de um sistema maior e mais complicado e sugere predições que podem ser confirmadas ou contestadas.”.

Esta distinção entre mesa de trabalho e estante é semelhante à que é fundamental para a teoria dos multi-armazéns da memória, uma distinção entre memória de trabalho (chamada memória a curto prazo na teoria inicial) e memória a longo prazo.

A capacidade temporal de armazenamento de informações demonstra ser, inicialmente, o principal elemento diferenciador entre as memórias sensoriais, as de curto prazo e as de longo prazo. A memória sensorial é caracterizada pela retenção momentânea, em geral, por menos de um segundo, de informações oriundas dos órgãos dos sentidos, com considerável risco de perda dos conteúdos, caso não transmitidos para a memória de curto prazo (DAVIDOFF, 2001, p. 205). Inclusive, “acredita-se que existe um estoque de memória sensorial separado para cada sistema sensorial (visão, audição, paladar, etc.) [...]”, (ATKINSON et al., 2002, p. 291).

A memória de curto prazo, gerencial ou de trabalho “[...] retém a informação por curtos intervalos, isto é, enquanto estamos a trabalhar com ela. Ao contrário, a memória a longo prazo armazena o material por períodos muito mais longos, às vezes por toda a vida.” (GLEITMAN ; FRIDLUND; REISBERG, 2003, p. 347). Ademais, a respeito da memória de curto prazo, entende-se que “serve para manter durante alguns segundos, no máximo poucos minutos, a informação que está sendo processada no momento, e o que fizemos ou onde estávamos no momento anterior. Dá continuidade, assim, a nossos atos.” (IZQUIERDO, 2014, n.p).

Por meio de diversos experimentos, os cientistas descobriram que a memória de trabalho, a qual não deixa traços16 e nem produz arquivos (IZQUIERDO, 2014, n.p), é capaz de guardar, ao mesmo tempo, em geral, apenas sete partes (agrupamentos), com variação de dois itens a mais ou a menos, de qualquer coisa, a exemplo de palavras, dígitos ou letras (DAVIDOFF, 2001, p. 214). Para que se determinasse a capacidade da memória operacional, os psicólogos apresentaram, rapidamente, sem que houvesse tempo de armazenamento na memória de longo prazo, diversos itens a um grupo de indivíduos, sendo que, o quanto recordado iria refletir a capacidade de retenção da memória de curto prazo (ATKINSON et al., 2002, p. 295).

Outro papel desempenhado pela memória de curto prazo é o de gerenciadora, “no momento de receber qualquer tipo de informação, deve determinar, entre outras coisas, se essa informação é nova ou não e, em último caso, se é útil para o organismo ou não.”

16 Entende-se que a memória de longo prazo é a que promove alterações anatômicas no cérebro, formando, pois,

registros ou traços. A memória de curto prazo “[...] depende, simplesmente, da atividade elétrica dos neurônios dessas regiões: há neurônios que ‘disparam’ seus potenciais de ação no início; outros, no meio e outros, no fim dos acontecimentos, sejam estes quais forem.” (IZQUIERDO, 2014, n.p)

(IZQUIERDO, 2014, n.p). Além disso, as pesquisas apontam que há um favorecimento do código fonológico no processo de codificação da memória de trabalho, em detrimento ao semântico, sendo que, “[...] a codificação na memória de curto prazo parece ser basicamente acústica, mas também pode haver alguma codificação secundária.”. (STERNBERG, 2008, p. 191).

Como a memória de curto prazo tem por principais moduladores, no córtex pré- frontal17 anterolateral, os neurotransmissores18 acetilcolina19 e a dopamina20, “[...] um estado de ânimo negativo, por exemplo, por falta de sono, por depressão ou por simples tristeza ou desânimo, perturba nossa memória de trabalho.” (IZQUIERDO, 2014, n.p). Assim, uma pessoa sujeita a essas circunstâncias, sendo algumas delas até mesmo comuns, poderá apresentar dificuldades para reter o quanto presenciado, por exemplo.

Já as memórias de longo prazo envolvem mudanças na estrutura física do cérebro, oriundas de novas conexões neurais (MEMORY, 2006)21, trata-se de traços de memória “[...] desenvolvidos com o intuito de estabelecerem-se novas vias capazes de serem ativadas pela mente pensante, no sentido de reproduzir as memórias.” (SILVÉRIO e ROSAT, 2006, p. 220). Assim, “o crescimento de novas conexões é o que permite que uma memória dure dias, meses e anos22” (MEMORY, 2006). A implicação com especial relevância para este trabalho consiste no fato de que o ato de lembrar deixa as memórias vulneráveis a mudanças, indicando que a memória não se torna imutável, significando, pois, que “[...] toda vez que uma memória é lembrada ela fica vulnerável a alteração.”23 (MEMORY, 2006).

A memória de longo prazo é marcada pela codificação semântica, ou seja, a sua representação dominante “[...] não é acústica ou visual e sim baseada nos significados dos itens. [...] Vários minutos depois de ouvir uma frase, a maior parte do que conseguimos

17Área cerebral responsável pela realização de funções relacionadas, por exemplo, à atenção, julgamento, organização, expressão de emoções, resolução de problemas e pensamento crítico. (MARTINS, 2014).

18 Sucintamente, os neurotransmissores são substâncias químicas, secretadas pelos neurônios, que proporcionam a realização das sinapses químicas, e, por consequência, a transmissão da maioria dos sinais do sistema nervoso. (GUYTON e HALL, 2011, p.575).

19 A acetilcolina é um neurotransmissor fundamental no desempenho cognitivo, “é a concentração desse neurotransmissor, durante a sinapse, que vai permitir a fixação da informação, de aprendizado de coisas novas, de resgate de informações aprendidas, além de outras atividades intelectuais.” (SAYEG, 2012).

20 “A dopamina é um importante neurotransmissor envolvido no controlo motor, funções endócrinas, cognição, compensação e emotividade.” (ESTEVINHO e FORTUNATO, 2003, p. 21).

21 Entrevista com Joe Ledoux, registrada no documentário Memory Hackers, 2016, direção de Anna Lee

Strachan, consoante mais detalhes técnicos expresso nas referências.

22 Trecho obtido da narração do documentário Memory Hackers, 2016, direção de Anna Lee Strachan, consoante

mais detalhes técnicos expresso nas referências.

23 Trecho obtido da narração do documentário Memory Hackers, 2016, direção de Anna Lee Strachan, consoante

recordar ou reconhecer é o significado da frase.” (ATKINSON et al., 2002, p. 299). Percebe- se, assim, que em um depoimento, a testemunha, como regra, não reproduzirá as informações em sua integralidade, ou mesmo, nos exatos termos ocorridos, mas sim, haverá o crivo da interpretação semântica, o que envolve fatores subjetivos, a exemplo das convicções pessoais, o grau de instrução, emotividade ou estado psíquico.

No processo de recuperação dos fatos, na memória de longo prazo, “em geral, recordamos fragmentos e completamos os detalhes com suposições lógicas. Eventualmente, geramos respostas precisas que com frequência não são exatas [...]” (DAVIDOFF, 2001, p. 216). Mais uma vez, a formação de suposições lógicas também não se distancia do subjetivismo do indivíduo, por tal razão, os detalhes, quando oriundos de uma prova testemunhal, malgrado por vezes essenciais para a resolução do caso penal, devem ser observados com desconfiança por parte do julgador, já que a neutralidade não é característica intrínseca ao ser humano, visto que a própria estrutura biológica, no processo de recuperação de dados, conta com a memória criativa que preenche os espaços dos fragmentos com informações conjecturais. Sobre esse ponto, adverte STEIN et al. (2010, p. 37):

Com frequência utilizamos o fato de lembrarmos algo com vividez e certeza de ter ocorrido como um argumento ou até mesmo uma indicação inexorável de que nossa memória retrata um fato que realmente aconteceu dessa forma. Dificilmente contra- argumentamos com alguém que lembra de um evento com certeza absoluta e com riqueza de detalhes. Todavia, o avanço das pesquisas sobre FM demonstra que o ser humano é capaz de lembrar, de forma espontânea ou sugerida, eventos que nunca aconteceram, instiga a questionarmos sobre os limites entre o falso e o verdadeiro.

Mediante diversos experimentos e registros anteriores na literatura médica, DAVIDOFF (2001, p. 216) traz as seguintes observações:

Uma extensa série de cuidadosos estudos de laboratório conduzidos por James Jenkins (1981) e seus colaboradores sugere que nossas memórias visuais são muito semelhantes à nossa memória de fatos. Formamos alguma idéia de um evento total e depois a completamos com fragmentos que recordamos e com conhecimentos gerais. O produto final é coerente e lógico, mas não necessariamente acurado.

Por meio de estudos pautados na recuperação das memórias, especialmente dirigidos pelo psicólogo inglês Frederick Bartlett, por meio dos quais era solicitado aos participantes que analisassem ilustrações, histórias, entre outras itens, e posteriormente, às vezes anos após, reproduzissem o quanto apreendido (DAVIDOFF, 2001, p. 216 e 2017 apud BARTLETT, 1950), constatou-se que:

Em geral, as pessoas retêm elementos comumente encontrados, que podem ser chamados de marcos. Elas acrescentam detalhes a esses marcos e os atualizam, resumem e simplificam. Além disso, elas juntam os fios da meada de forma lógica. Em resumo, elas reconstroem o material com base em seu conhecimento e expectativas. O mais curioso é que os seres humanos quase não têm consciência de estar fazendo tudo isso.

A prova testemunhal se funda na recuperação de memórias, na tentativa de reconstrução dos fatos pretéritos, o que é feito sob o viés do observador, o qual imprime, ainda que involuntariamente, suas expectativas, bem como expõe as informações com base no conhecimento obtido ao longo da vida, não sendo absurdo considerar que no depoimento prestado estejam embutidos os próprios juízos de valor desse indivíduo.

As memórias podem ainda ser classificadas, conforme o seu conteúdo, em declarativas e procedurais. As memórias declarativas seriam aquelas que “[...] registram fatos, eventos ou conhecimentos [...]” (IZQUIERDO, 2014, n.p). Dentre as memórias declarativas, “[...] as referentes a eventos aos quais assistimos ou dos quais participamos denominam-se episódicas ou autobiográficas; as de conhecimentos gerais, semânticas.” (IZQUIERDO, 2014, n.p). Segundo DAVIDOFF (2001, p. 224), “Marigold Linton descobriu que, com a repetição, memórias episódicas são transformadas em semânticas.”.