• Nenhum resultado encontrado

Falhas e distorções na memória: os indicativos da formação das falsas memórias

3.1 CONCEITO E ASPECTOS GERAIS DA MEMÓRIA

3.1.3 Falhas e distorções na memória: os indicativos da formação das falsas memórias

Diversos são os fatores que ocasionam o esquecimento, podendo ocorrer em qualquer dos procedimentos da memória (DAVIDOFF, 2001, p. 218). GLEITMAN, FRIDLUND E REISBERG (2003, p. 345) indicam que “[...] muitas falhas de memória são na realidade falhas da fase inicial de aquisição.”, ou seja, na fase de codificação de determinada informação, especialmente por razões de falta de atenção, seria o caso do exemplo apontado por DAVIDOFF (2001, p. 218) em que “digamos que você leia um livro enquanto pensa em uma festa. Você pode continuar lendo (sem registrar nada) até que algo o traga de volta à

realidade.”. Assim, “[...] muitas das falhas de memória são falhas de recuperação e não de armazenamento.” (GLEITMAN; FRIDLUND; REISBERG, 2003, p. 346).

A literatura aponta que as falhas de memória podem ser tanto problemas de recuperação da memória, quanto de armazenamento. Segundo ATKINSON et al. (2002, p. 301) o principal fator prejudicial à recuperação da memória é a interferência, a qual se dá quando associamos “[...] diferentes itens à mesma pista, quando tentarmos usar aquela pista para recuperar um dos itens (o item- alvo), os outros itens podem tornar-se ativos e interferir em nossa recuperação do alvo”. De forma mais simplificada, STERNBERG (2008, p. 203) explica que “a teoria da interferência diz que o esquecimento ocorre porque a recordação de certas palavras interfere na recordação de outras.”.

As pessoas são passíveis de sofrer distorções nas memórias. STERNBERG (2008, p. 208) apresenta sete maneiras em que estas distorções podem ocorrer. A primeira é a transitoriedade, trata-se do reconhecimento de que “a memória desaparece rapidamente. Por exemplo, embora a maioria das pessoas saiba que O. J. Simpson foi absolvido das acusações criminais [...], elas tendem a não se lembrar de como ficaram sabendo de sua absolvição.”. A segunda forma é a distração, exemplificada, pelo autor, na situação comum de entrar em um determinado cômodo a procura de um certo objeto, mas depois esquecer o que estava buscando. A distorção também pode ocorrer por meio do bloqueio, o qual se dá quando “as pessoas, por vezes, têm algo do qual sabem que deveriam se lembrar, mas não conseguem. É como se a informação estivesse na ponta da língua, mas elas não conseguem recuperá-la.” STERNBERG (2008, p. 208).

A quarta distorção é apontada como atribuição equivocada, situação em que as pessoas “[...] pensam que viram coisas que não viram, ou que ouviram coisas que não ouviram. Por exemplo, o testemunho ocular pode ser confundido pelo que pensamos ter visto em relação ao que realmente vimos.” (STERNBERG, 2008, p. 208). A quinta maneira em que se apresentam as distorções é a sugestionabilidade, “as pessoas são suscetíveis a sugestões, de forma que, se lhes for sugerido que viram algo, podem pensar que lembram.” (STERNBERG, 2008, p. 208). Conforme apontado por Davidoff (2001, p. 235) “sugestões de detalhes específicos- os quais as testemunhas não viram- são incorporados nas memórias sem qualquer esforço ou consciência. A inserção de uma palavra em uma pergunta ou afirmação é o bastante para mudar a memória de uma testemunha [...]”.

A sexta distorção está relacionada com o viés, “por exemplo, as [pessoas] que estão passando por dores crônicas em suas vidas têm mais probabilidades de se lembrar de dores no

passado, quer tenham passado por elas, quer não.” (STERNBERG, 2008, p. 208). O último fator de distorções da memória é a persistência, assim entendida quando “as pessoas, às vezes, se lembram de algo como sendo importante que, em um contexto amplo, tem pouca importância.” (STERNBERG, 2008, p. 208).

A memória humana está sujeita a inúmeras influências, a exemplo de conhecimentos anteriores ao fato, os quais se inserem, ainda que involuntariamente, na descrição do ocorrido. Segundo DAVIDOFF (2001, p. 222, apud RUMELHART e ORTONY, 1977) “[...] as pessoas têm conhecimento das condições que precisam ser atendidas antes que alguma coisa possa ser qualificada como ação ou evento válidos.”, trata-se da noção de esquemas, os quais “[...] são continuamente ativados enquanto processamos informações. Eles guiam tanto a codificação quanto a recuperação.” (DAVIDOFF, 2001, p. 222). Exemplificando, DAVIDOFF (2001, p. 222 e 223) apresenta os estudos dos investigadores Zadny e Gerard, atinentes aos esquemas, com o seguinte experimento:

[...] exibiram um videoteipe aos sujeitos do experimento: dois estudantes andando por um apartamento, conversando sobre um roubo e drogas. Antes, alguns participantes haviam sido informados de que os estudantes pretendiam assaltar o apartamento (esquema 1). Outros foram informados de que os estudantes estavam procurando drogas (para tirar de lá antes que a polícia chegasse) (esquema 2). Outros, ainda, foram informados de que os estudantes estavam à espera de um amigo (esquema 3). Os esquemas influenciaram aquilo que os participantes codificaram e recuperaram. Em um teste posterior, as pessoas que haviam recebido o esquema do roubo, por exemplo, lembravam mais do diálogo sobre o roubo e de mais objetos que poderiam ser levados (como cartões de crédito) do que outros.

No estudo de Zadny- Gerard, os esquemas antecederam a codificação. Os esquemas têm a mesma influência quando vêm depois da codificação. Suponha que lhe dêem a biografia de uma mulher, Betty, para ler (Snyder e Uranowitz, 1978). Após codificar o material, você descobre que Betty é lésbica. Por fim, você deve destacar os fatos que leu. Você estará propenso a “recordar” material compatível com o esquema de lésbica. Nesse caso, “recordar” implica inventar. (DAVIDOFF 2001, p. 222 e 223 apud ZADNY e GERARD, 1974).

A todo o momento as testemunhas estão sujeitas aos esquemas, desde os estigmas e estereótipos que construíram a figura do delinquente, ou segundo LOMBROSO (2007, p. 58), o “criminoso- nato”, o qual define previamente, por características fenotípicas, o indivíduo propenso à prática de crimes, até a tendenciosa abordagem midiática, com o fascínio em transformar o processo penal em um espetáculo e obter audiência. Assim, integram a composição do depoimento testemunhal elementos criados ou incorporados, inclusive, é característica humana a circunstância de que “quando o passado não combina com nossas idéias atuais, frequentemente modificamos os dados para melhorar o ajuste. Fazemos o mesmo com os ‘fatos’.” (DAVIDOFF, 2001, p. 223).

As experiências posteriores aos fatos também exercem influências na retenção de longo prazo, afinal, “nossas memórias são facilmente alteradas por eventos que ocorrem após um incidente real.” (DAVIDOFF, 2001, p. 223). Estudando os efeitos da experiência posterior sobre a memória, ELIZABETH LOFTUS propôs o seguinte experimento:

Em um estudo típico, os participantes assistiram a um filme sobre um acidente de automóvel, após o que alguns tiveram de responder à pergunta: “A que velocidade estava o carro esporte branco quando passou pelo celeiro, enquanto trafegava por uma estrada do interior?”. A outros foi feita a mesma pergunta, tirando a frase “quando passou pelo celeiro”. Nenhum celeiro aparecia no filme. Mais tarde, perguntou-se a todos se haviam visto um celeiro. A pergunta enganosa introduziu a probabilidade de eles relatarem ter visto um celeiro que não existia. (Estes participantes apresentaram probabilidade seis vezes maior de relatar a existência do celeiro, em relação àqueles a quem não fora feita a pergunta com a versão do “celeiro”.) A informação contida na pergunta parecia ter sido integrada na recordação. (DAVIDOFF, 2001, p. 223, apud LOFTUS, 1982; MORTON et al,. 1981).

O exemplo apresentado acima também demonstra o problema do sugestionamento, de modo que, ao ser questionada a respeito de pontos específicos dos quais não presenciou, mas que pelo contexto fático geral é possível a ocorrência, e tomando por base os prévios esquemas já incutidos na memória, a testemunha acolhe e incorpora ao seu discurso, ainda que inconscientemente, a sugestão embutida na pergunta. Assim, “se novos eventos influem nas lembranças, não é de surpreender que as pessoas confundam o que ocorreu em uma ocasião com aquilo que ocorreu em outra. Por ora, não está claro se as lembranças originais são recuperáveis: imagens inexatas podem varrê-las por completo.” (DAVIDOFF, 2001, p. 223, apud LOFTUS, 1982; MORTON et al,. 1981).

A condição emocional do ser humano também influencia a forma como se dá a apreensão dos fatos, “as pessoas parecem reter melhor conteúdos complexos quando o sistema nervoso está moderadamente incitado durante a codificação. O incitamento pode provir de um motivo ou emoção ou de estímulos químicos como nicotina, cafeína ou anfetaminas.” (DAVIDOFF, 2001, p. 223, apud MCGAUGH, 1983). Contudo, o incitamento só é favorável quando moderado, visto que, por exemplo, a exposição do indivíduo a cenas violentas “[...] tendem a levar a intenso incitamento. Sob tais circunstâncias, tendemos a codificar imprecisamente aquilo que está ocorrendo [...]” (DAVIDOFF, 2001, p. 235, apud ERDLYI E GOLDBERG, 1979). Segundo STEIN et al. (2010. p. 97) as “[...] memórias emocionais não são mais confiáveis e precisas do que memórias de eventos não emocionais.”

Ao presenciar a cena de um crime que envolva violência, a testemunha que esteja com os níveis de incitamento elevados não conseguirá adquirir, com exatidão, o quanto visto ou

ouvido, logo, posteriormente, desencadeará falhas na recuperação da memória, não por um problema no armazenamento, mas na fase inicial em que exposta ao fato.

Assim, a prova testemunhal padece de muitas fragilidades, contudo, a sua utilização continua ampla, visto que “[...] só em hipóteses excepcionais, provam-se as infrações com outros elementos de prova. Em geral, as infrações penais só podem ser provados, em juízo, por pessoas que assistiram ao fato ou dele tiveram conhecimento.” (TOURINHO FILHO, 2013, p. 338). O resultado disso é que “já se estimou que até 10 mil pessoas por ano podem ser condenadas indevidamente com base em testemunhos oculares equivocados.” (STERNBERG, 2008, p. 210, apud Cutler e Penrod, 1995; Loftus e Ketcham, 1991).

O método de reconhecimento de pessoas, na esfera do direito penal, encontra previsão legal em nosso ordenamento jurídico no art. 226 do Código de Processo Penal de 1941, sendo feito, inicialmente, pela descrição da pessoa que deva ser reconhecida. Sendo que, o inciso II desse artigo prevê que “a pessoa, cujo reconhecimento se pretender, será colocada, se possível, ao lado de outras que com ela tiverem qualquer semelhança, convidando-se quem tiver de fazer o reconhecimento a apontá-la”. Contudo, Sternberg (2008, p. 210), sob o viés da psicologia, aponta os principais problemas, concernentes a este método de reconhecimento:

As filas de suspeitos para identificação visual podem levar a falsas conclusões (Wells, 1993). As testemunhas oculares partem do pressuposto de que o criminoso esta na fila, o que, no entanto, nem sempre é o caso. Em situações em que o autor de um crime não estava presente, os participantes ficaram suscetíveis a apontar alguém em seu lugar. Dessa forma, conseguiam reconhecer alguém na fila como o autor do crime. As identidades de não-autores presentes na fila também podem a0fetar as conclusões das testemunhas (Wells, Luus e Windschitl, 1994). Em outras palavras, o simples perfil dos outros que participam da fila pode influenciar na identificação de uma pessoa como autor de um crime, de forma que a escolha dos indivíduos que funcionam como "fator de distração" é importante. A polícia pode afetar inadvertidamente a probabilidade de uma identificação ou mesmo a ocorrência de uma identificação falsa.

Assim, “a investigação e a análise da possibilidade da presença de falsas memórias nos depoimentos de testemunhas evita que pessoas sejam investigadas, presas, acusadas e condenadas com base em uma prova frágil, tal como é a prova testemunhal [...]” (GIACOMOLLI e DI GESU, 2008, p. 4350 e 4351), demonstrando a necessidade de busca por meios capazes de minorar a ocorrência de danos, bem como propiciar o devido processo legal.

3.2 MAIORES CONSIDERAÇÕES SOBRE AS FALSAS MEMÓRIAS

As falsas memórias não se confundem com mentiras, memórias reprimidas ou mesmo distúrbios mentais, tratam-se, em verdade, de “[...] um fenômeno que se materializa no dia a dia das pessoas, têm sua base no funcionamento saudável da memória e não são a expressão de patologia [...]” (STEIN et al., 2010, p. 37). Assim, pelo reconhecimento da normalidade da sua ocorrência, é que na apreciação de um testemunho não se pode afastar a possibilidade de que parte do relato seja fruto de falsas memórias, ainda que apenas os detalhes.