R e v i s t a d a S o c ie d a d e B r a s i le i r a d e M e d i c in a T ro p ic a l 2 1 ( 2 ) : 8 1 -8 3 , A b r-J u n , 1 9 8 8 .
A N G IO S T R O N G IL ÍA S E A B D O M IN A L
U m Problem a de Saúde Pública?
Pedro Morera
P or m u itos a n o s, a a n g io stro ngilíase ab dom inal, ca u sa d a p elo A n g i o s t r o n g y l u s c o s t a r i c e n s i s , M o rera & C é sp ed es, 1 9 7 1 , fo i co nsid era da u m a zo o n o se de im portância a penas a cad êm ica. E s s a enferm idade tem sido encon trad a n a m aior parte d o s p a íses das A m é ricas, d esd e o s E s ta d o s U n id o s até o n o rte da A rg en tina, a pesar d o d ia gn ó stico ser, em geral, resultad o do ex a m e de rotina d a s p e ça s cirúrgicas n o s serv iço s de p atologia. E ntretanto, on d e ten h a m sid o increm en ta dos o co n h ecim en to clin ico e a m eto d o lo g ia para o d iagn óstico de lab oratório, to m a -s e ev id en te que e ss a
é um a p a rasito se com p revalên cia sign ificativa. A lé m d isso , tem os ev id ên cia s d e que a m aioria d o s c a so s p assa d esp erceb id a o u é d iag nosticad a erronea m ente.
E P I D E M I O L O G I A . A m aior parte d o s estu d o s ep id em io ló g ico s sobre e s s a p a rasito se tem sid o em C o sta R ica. N e s s e p aís, o s h o sp ed eiro s interm e d iários m a is im p ortan tes são m o lu s co s d a fam ília
V e r o n ic e llid a e , d istribuídos a m p lam ente, d esd e o n ív el d o m ar até m a is 2 .0 0 0 m etros de altitude. A taxa de in fecçã o , em 6 .0 2 5 lesm a s ex am in a d a s, co leta d a em 2 0 lo ca lid a d es, variou de 2 8 % a 7 5% co m m édia de 50% ; en co ntrou -se até 1 4 .6 0 0 larvas infectan tes em um só m o lu sco . A lé m d a s lesm a s, várias e sp éc ie s de m o lu sco s terrestres e d u lcia q u íco la s foram en co n tradas co m in fec çã o natural por A . c o s ta r ic e n s is .
E stu d o s d e laboratório estã o dem o nstra nd o que gran de variedade de e sp é c ie s, d e sse s d o is grupos d e m o lu sc o s, p o d e ser in fecta da experim entalm ente, to m a n d o -se ev id en te a grande ca p a cid ad e d o n em a- tó d io para adaptar-se a diferentes h ó sp ed es interm e diários.
O ch a m a d o rato alg od o eiro - S i g m o d o n h is -p i d u s - p a rece con stituir o h osp ed eiro definitivo m ais
im portante; o s estu d o s rea lizad o s em C o sta R ica
m ostram u m a ta xa de in fecçã o para S. h i s p i d u s de 4 3 ,2 % , sem elh a nte à en con trad a n o P an am á (3 5 ,0 % ) para a m esm a esp éc ie. O utras 11 e s p éc ie s de roedores têm sid o en con trad as co m in fecçã o natural. O verm e pode p arasitar outros grupos de an im ais, co m o o coa ti-m undi (N a s u a n a r i c a - C o sta R ica ) e sagü is ( S a g u i -n u s m y s t a x - A m a z ô n ia peruana). O h o m em d eve ser in cluíd o tam b ém na lista d o s k csp ed ciros.
Instituto de In v estig a çã o em Saúde. U n iversid a d e d a C o sta R ica.
R eceb id o para p u b licaçã o em 1 3 /1 0 /8 7 .
O p arasito é altam ente prev alen te n o am biente, o que p oderia in d icar que a s p rob ab ilidad es de infec ç ã o para o h o m em sã o igu alm ente eleva d a s.
P A T O L O G I A . N a s in fe cç õ e s hum an as p o r A .
c o s t a r i c e n s i s p o d em ser o b serv ad os claram ente d ois m ecanism os patogenéticos. E m primeiro lugar, o s verm es a du ltos v iv en d o dentro d as artérias p o d em d an ificar o en d otélio , p rov o ca n d o trom b o se e n ecro se da zo n a irrigada p e lo v a so lesa d o . E m segu n d o lugar, o s o v o s ,
em b riões e larvas, b em co m o produtos de ex cr eçã o e se creçã o d o p arasito, ch eg a m às arteríolas da parede in testin al, ca u sa n d o inflam ação.
A co m b in a çã o d es te s d o is fen ô m en o s à sus- cetib ilid a de d o h o sp ed eiro, a o núm ero de p arasitos e a su a lo c a liz a çã o são fatores que determ inam as d ife renças d a a presen ta çã o clín ico -p a to ló g ica d essa en ferm idade, varian d o d esd e a q u eles c a so s o n d e so m en te o a p ên d ice está en v o lvid o, até a q u elas situ a çõ es on d e se faz n ec essá ria a re ss e c ç ã o do íle o term inal, c e c o e parte de c ó lo n ascen d en te.
O ex a m e m a cro scó p ico d a s p e ça s cirúrgicas, e m geral, m o stra áreas d e n ecro se e esp essa m en to da p arede intestinal; o lú m en p o d e esta r dim inuído e o s gâ ng lios lin fá ticos au m en tad o s d e tam an h o. O esp es sam en to d a parede intestinal é d evido a reação inflam a tória que p o d e m ostrar vários p ad rões. N a m a ioria d o s c a s o s , o b serv a -se forte infiltração eo sin o fílica , e sp e cialm ente da m u c o sa e su b m u cosa. O v o s férteis e, às v e z e s , inférteis, em b riões e larvas p o dem ser ob ser v a d o s n o tecid o . O ca sio n a lm en te sã o en con trad os granulom as rela cion ad os o u n ã o co m e ss a s estruturas p arasitárias. E m t o m o de o v o s o u em b riõ es em v ia s de d egen eraçã o, p odem ser encon trad as p eq u enas áreas de n ecrose. E sse s p eq u en os fo c o s n ecró tico s, bem co m o, a q u eles o b serv ad o s n a a u sên cia d e estruturas p arasitárias sã o ca u sa d o s p o r an tígenos de ex cre ç ã o /s e c r e ç ã o , con form e d em on stra -se m ed ian te téc n ica s im u n o qu ím icas (m éto d o de p eroxid a se-a ntip e- roxidase - P .A .P .). A s grandes áreas d e n ecro se que p o d em cau sar p erfuração e p eriton ite sã o p rov ocad a s p elo fen ô m en o trom b ótico n a s artérias p arasitadas.
A s le s õ e s h ep á ticas cau sad a s por A . c o s t a r i c e n s i s são sem elh a n tes àq u ela s p rod u zid as p or 7 b -
x o c o r a c a n a i s . E ntretanto, a p a to g en ia é diferente. A cred ita m os que n a ang iostron gilíase, o habitat errô n e o é a lca n ça d o durante a m igração d a s larvas, d o s v a so s lin fáticos para as artérias; es se fen ô m en o p o d eria ser d ev id o a vários fatores que d iscutirem os m ais
C o m u n ic a ç ã o . M o r e r a P . A n g io s tr o n g ilía s e a b d o m in a l. U m p r o b l e m a d e S a ú d e P ú b li c a ? R e v is t a d a S o c ie d a d e B ra s ile ir a d e M e d i c i n a T r o p ic a l 2 1 : 8 1 -8 3 , A b r-J u n , 1 9 8 8 .
adiante. Q u a lq u er que seja a ca u sa , em alguns ca so s,
os
pa rasitos lo ca liz a m -s e ecto p ica m en te n as v eia s ( e n ã o n a s artérias) m esen térica s e o s o v o s sã o carreadosao
figad o, o n d e p rovocam rea çã o in flam atória tam bém caracteriza da p o r in ten sa in filtração eo sin ofílica. A lé m d isso , alguns verm es ad u ltos p o d em ch egar ao fig ad o, o n d e m orrem e degen eram -se, cau sa n d o ainda m ais in flam ação e n ecro se.A t é o m o m en to , to d o s o s testíc u lo s resseca d o s, p or apresentar le s õ e s p rovocad as por e s s e p arasito, p rovinh am d e crian ças n a s q u ais o s m em a tód io s esta v a m nas artérias esp erm ática s ca u sa n d o obstru ç ã o e inflam ação.
M A N I F E S T A Ç Õ E S C L Í N I C A S . A d o en ç a afeta, principalm ente, a s cria nças, em b ora m u itos ca s o s ten h am sid o d ia g n o stica d o s em ad u ltos, em C o s ta R ic a e ou tros p a íses d a s A m érica s. N o h om em , à sem elh a n ça d o que ocorre em ratos, o p arasito lo ca liz a -s e n os ram os íle o -c e c o -c ó lic o s da artéria m esen - térica superior. T a m b ém têm sid o o b serv ad os c a s o s n o s q u ais o s p arasitos estav am lo c a liza d o s n os v a so s d o figado e d o co rd ã o esp erm á tico.
Q u a n d o o s p arasito s lo c a liz a m -s e n a região c ec a l, o s p a cie n tes geralm ente apresentam dor abdo m ina l n a fo s s a ilía c a e n o flan co direito; a p alp a çã o do a b d ô m en e o toq u e retal p od em ser d o lo ro so s. Q u a se sem pre o b serv a -se febre, algu m as v e z e s acom p a nh ad a de calafrios. N o s c a so s crô n ico s o s p a cien tes p o dem perm an ecer co m feb rícula e dor le v e o c a sio n a l durante várias sem an as.
U m a ch a d o im portante é a p resen ça de m a ssa tum oral n a fo s s a ilía ca direita. S em co n h ecer e ssa p arasitose, m u itos m éd ico s p od em confundir e ssa m a ss a inflam atória co m um tum or m aligno.
O leu cogram a p o d e ser norm al em p o u co s d o en tes m a s a p resen ça d e leu co cito se e a eosin o filia co n stitu em d a d o s im p ortan tes para o d ia gn óstico c lín ico . N a m a ioria d o s c a so s, o núm ero de le u có c ito s varia d e 1 5 .0 0 0 a 4 0 .0 0 0 por m m 3 e a eo sin o filia varia de 2 0 a 5 0 % . O estu d o ra d iológ ico ta m b ém é im por tante, j á q u e o m e io d e con traste p o d e revelar irregula rid ad es e esp essa m e n to d a parede intestinal.
Q u a n d o há le s õ e s h ep á tica s, o d o en te ap resen ta d o r no quadrante superior direito. A p alp a ção d o fígad o é d olo ro sa e geralm en te e x is te h ep atom ega lia.
A lo c a liz a ç ã o d o s verm es a du ltos n as artérias d o cordão esp erm á tico , em geral, produz o clu sã o d estes v a so s e n ecrose testicular, sem elh a n te à o b ser v a d a n a to rçã o d e sse órgão.
D I A G N Ó S T I C O . Já que no h o m em , as larvas d e prim eiro está g io n ã o s ã o en con trad as nas fe z e s (c o m o ocorre n o s ratos), d esen v o lv em o s u m a técn ica d e aglu tin a çã o de partículas d e lá tex, altam ente e sp e cífic a (9 8 ,7 % ) e sen s ív e l (1 0 0 ,0 % ). A co m p aração d e sse m éto d o co m a té cn ica de m icr o -E L I S A ( 3 5 0 soros estu d a d o s) m o strou resu ltad os sem elh an tes. C o m a ajuda d o teste de aglu tinação tem o s en con
trado, em m éd ia , 1 2 c a s o s /1 0 0 .0 0 h a b ita n tes/a n o , ta x a que ap resenta atu alm en te um ten d ên cia a crescer.
A L G U M A S C O N S I D E R A Ç Õ E S . 1. C o m o foi d ito anteriorm ente, alguns a n ti-h elm ín ticos p ro vo ca m lo c a liz a ç õ e s erráticas em ratos exp erim entalm en te infectad os. O m esm o efe ito p o deria ser p rod u zid o n o ser h um ano, ex p lica n d o a s lo c a liz a ç õ e s ectó p ica s n o fígado e no testículo. P o r e s s e m o tiv o, n os p reocu p a m o s co m o u so ind iscrim inad o d es sa s d rogas n a s áreas en d êm ica s, m u itas v e ze s sem prescrição m éd ica. A lé m d isso , a o relatar o p rim eiro c a s o de in fecç ã o h ep á tica p o r A . c o s t a r i c e n s i s d e screv em o s a ocorrên cia de febre alta a s so cia d a à p a rotid ite, 2 2 d ias an tes da m a n ifesta çã o da p a to log ia ab dom inal. N o s perguntam os se n ã o p od eria a febre ta m b ém contribuir p ara es s a s m ig raçõ es erráticas, co m o se sa b e , suced er co m A s c a r i s l u m b r i c o i d e s ?
2. A fo nte d e in fecçã o para o h o m em parece ser a s larvas co n tid a s n a m u cosid a d e que as lesm a s d eix a m ao loco m ov erem -se; e s s e m a terial p od eria con tam inar a lim en to s o u ob jetos que, esp ecia lm en te
as cria nças, lev a m à b o ca . E m C o s ta R ica , 50% d as lesm a s, em m édia, estã o in fectad a s. N o E q u ad or, um estu d o prelim inar m ostrou tam b ém altas tax as de in fecçã o d o s m o lu sco s, em bora, a penas um ca so hu m an o tenh a sid o en con trad o n a q u ele país. C o m e x c e ç ã o d o B rasil e H on d u ras, estu d o s sem elh a ntes n ã o estã o em an d am ento em outros p a íses.
3. A s lesm a s representam tam b ém im portante praga agrícola, a fetan d o p rin cip alm en te a cultura de feijão. E stu d o s rea liza d o s na E s c o la A g ríco la P an a- m erica na n o v a le do Z am o ran o , H on d u ras, d em on s tram que as lesm a s têm ca u sa d o perdas que p od em ch egar a 4 0 m ilh õ es d e d ólares anuais. Q u a l a razão d e s s e in crem ento n a p op u la çã o de m o lu scos? E ntre ou tros fa tores, n ã o p o d eria ser efeito d o u s o freqüente de p e sticid a s, que, a o destruir o s co n tro les b io ló g ico s d o s m o lu sc o s, au m en taria su a p op u la çã o , criando m a io res o portun id ad es d o h o m em infectar-se?
4 . O coa ti-m u n d i d a C o sta R ic a e sagü is da A m a z ô n ia p eruan a foram en con trad o s co m in fecç ã o natural. A lé m d isso , v ários roed ores, naturalm ente in fecta d o s, s ã o ex clu siv a m en te florestais. E s te s d ad os p a recem in d icar que A . c o s t a r i c e n s i s é um p arasito co m u m c ic lo silv estre e que d e v e estar distribuído n a s m atas, nas A m ér ica s, p rovavelm en te co m en v o lv i m en to de v á rios m a m íferos e m o lu sco s.
5 . A p rev a lên cia d a d o e n ç a hum ana, en con trad a em C o s ta R ic a ( 1 2 c a s o s /1 0 0 .0 0 0 h ab itan tes), é m aior q u e m uitas outras en ferm id ad es p arasitárias. P orém , acreditam os que e s s e d a do rep resen te som en te um a parte dos c a so s que realm en te ex istem , j á que tem os o b serv ad o que a d istrib u içã o g eo gráfica da d o en ça d epend e, em parte, d a p resen ça de m éd ico s que co n h eça m o prob lem a e co m o d iag no sticá-lo.
6. N o B rasil, e s s a m o lés tia tem sid o registrada no D istrito F ed e ra l (B ra sília), S ã o P a u lo , P araná,
C o m u n ic a ç ã o . M o r e m P . A n g io s tr o n g ilía s e a b d o m i n a l U m p r o b l e m a d e S a ú d e P ú b li c a ? R e v is t a d a S o c ie d a d e B r a s ile ir a d e M e d i c in a T ro p ic a l 2 1 : 8 1 -8 3 , A b r-J u n , 1 9 8 8 .
S an ta C atarina e R io G ran d e d o Sul. A lé m d isso , estu d o s p relim in ares d em onstraram a in fecçã o natural em lesm as d a fam ília V e r o n i c e l l i d a e no R io G ran d e do Sul.
7. T o d o s o s c a s o s encon tra do s, e x c e ç ã o da C o sta R ica , foram d ia gn ostica d o s através do estud o h istop a to ló g ico , o u seja, a p ó s in tervenção cirúrgica. D e s s e m o d o , n ã o ex istem d a do s, de c a so s m en o s graves, que n ã o requeiram cirurgia. N ã o acred itam os q ue a d iferen ça que p o ss a existir entre as co n d içõ es am bientais, em C o s ta R ic a e em p a íses v izin h os, ex pliq u e a d iferença entre o núm ero de ca so s en con
trados aqui e em outros p a íses. P ortan to, se o fator m ais im portante é o con h ecim en to d o p rob lem a e de co m o su sp eitá -lo e d iag n o sticá -lo , n o futuro p od eria ser con firm ad a a c o n c ep çã o d esta p arasitose co m o um p rob lem a de S aú d e P ú b lica.
A G R A D E C I M E N T O
M eu profundo agrad ecim ento a o D r. C arlo s G ra eff T e ix eira (D ep a rta m en to d e P a to lo g ia , In stituto O sw a ld o C ruz) p o r su a v a lio sa co la b o ra çã o na tra d u çã o para o português.