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As relíquias do lixão : mulheres catadoras e o engenhoso trabalho de cooperar e resistir

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Academic year: 2021

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CAMILA CAPACLE PAIVA

AS RELÍQUIAS DO LIXÃO: MULHERES CATADORAS E O ENGENHOSO TRABALHO DE COOPERAR E RESISTIR

CAMPINAS 2017

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Agência(s) de fomento e nº(s) de processo(s): CNPq, 2011/140634-8

Ficha catalográfica Universidade Estadual de Campinas Biblioteca do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas

Paulo Roberto de Oliveira - CRB 8/6272

Capacle, Camila, 1982-

C170r As relíquias do lixão : mulheres catadoras e o engenhoso trabalho de cooperar e resistir / Camila Capacle Paiva. – Campinas, SP : [s.n.], 2017. Orientador: Valeriano Mendes Ferreira Costa.

Tese (doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas.

1. Catadores de materiais recicláveis. 2. Relações de gênero. 3. Divisão sexual do trabalho. 4. Pobreza. 5. Cooperativas de reciclagem. I. Costa, Valeriano Mendes Ferreira, 1961-. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. III. Título.

Informações para Biblioteca Digital

Título em outro idioma: The dumpfill relics: womem waste pickers and the ingenious work of cooperating and resisting

Palavras-chave em inglês: Recyclable waste pickers Gender relations

Sexual division of labour Poverty

Recycling cooperatives

Área de concentração: Ciências Sociais Titulação: Doutora em Ciências Sociais Banca examinadora:

Valeriano Mendes Ferreira Costa [Orientador] Marcia de Paula Leite

Angela Maria Carneiro Araújo Maria Orlanda Pinassi

Fabiana Cristina Severi Data de defesa: 25-08-2017

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

A Comissão Julgadora dos trabalhos de Defesa de Tese de Doutorado, composta pelos (as) professores (as) Doutores (as) a seguir descritos, em sessão pública realizada em 25 de agosto de 2017, considerou a candidata Camila Capacle Paiva aprovada

Prof. Dr. Valeriano Mendes Ferreira Costa

Profa. Dra. Marcia de Paula Leite

Profa. Dra. Angela Maria Carneiro Araújo

Profa. Dra. Maria Orlanda Pinassi

Profa. Dra. Fabiana Cristina Severi

A Ata de Defesa, assinada pelos membros da Comissão Examinadora, consta no processo de vida acadêmica da aluna.

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Aos meus amores Laís e Eric Isabel e Celso Pelo acolhedor e inesquecível inverno de 2017

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Agradeço aos meus filhos, Laís e Eric, por serem tão maravilhosos, compreensíveis e darem um novo sentido a minha vida.

Agradeço a minha rede proximidade, que me apoiou, me incentivou, não me deixou desistir e compartilhou comigo o cuidado dos meus filhos. Minha mãe Isabel, que foi incansável na arte de nos dar forças e cuidar da minha família. Uma guerreira inspiradora.

Ao meu companheiro Celso, que assumiu o protagonismo da vida familiar e fez tudo com muito carinho, que ouviu, argumentou, corrigiu e melhorou esse trabalho. Sua fluidez é essencial para minha vida.

À minha sogra Alaíde, sempre cuidadosa e prestativa, que esteve ao nosso lado durante todo esse processo. Minhas irmãs Carolina e Fernanda, grandes companheiras que socorreram e alegraram momentos importantes. Ao meu pai Osmar, por acreditar em mim e incentivar meus estudos desde a infância. Aos demais familiares que me mandaram boas vibrações.

Agradeço ao meu orientador, Valeriano Mendes, pela liberdade e oportunidade de um trabalho autoral, pela confiança e pela valiosa orientação.

Agradeço às professoras que compuseram a banca de doutoramento pela discussão acalorada, por suas importantes sugestões e contribuições e por toda generosidade: Marcia Leite, Angela Araújo, Maria Pinassi e Fabiana Severi. Agradeço também a professora Lúcia Ferreira que participou e contribuiu na minha banca de qualificação junto com a professora Marcia.

Agradeço à Beatriz Tiemi, pela dedicação e apoio imprescindíveis. E também a Maria Rita e ao Reginaldo, secretários queridos do Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da Unicamp.

Agradeço à Alessandra Melo Simões Paiva, cunhada e amiga, que desvendou meu método de uma “sociologia poético-feminista”, me orientou e incentivou a criar algo novo.

Agradeço aos amigos e amigas de caminhada acadêmica: Henrique Carmona, que me levou para a Unicamp e conversou longas horas sobre meu trabalho. Carol Aguerri, que acompanhou os finalmente, fez fotos e filmagens. Elisângela Santos, sempre acolhedora.

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na minha defesa. E também a Claudia Adametes, cuja tese foi uma grande referência para o meu trabalho. Agradeço também a querida Fátima (Falua) que dividiu sua moradia em Campinas comigo, pela amizade e pelas angústias e alegrias compartilhadas.

Agradeço às amigas de maternidade e de vida, sempre presentes: Luiza Paim, que dividiu comigo a experiência de organizar um lindo livro sobre histórias de nascimento e sempre me apoiou na maternidade; a Mariana Tezini, que participou do trabalho de campo e me emprestou seu escritório; a Sandra Caldeira, pelos livros e conversas; a Itaiana Battoni, por estar sempre presente e ser uma grande companheira e Rebeca Buendia pelo trabalho e dedicação junto ao Sebo Uraricoera. Agradeço também a Ana Paula Lima por compartilhar uma jornada de autoconhecimento.

Agradeço aos funcionários da Biblioteca da FCLAr – UNESP/Araraquara em nome da Sandra, da Elaine e do Zé, por me deixarem invadir o pedaço e me tratarem com tanto carinho.

Agradeço aos amigos de trabalho da época de gestão pública, que tanto me ensinaram e compartilharam boas práticas de gestão: Paulo Albano, Paulo Alexandre, Sergio Sgobbi, Flávia de Jesus, Luciano Pizzone, Laerte Fedrigo, Vera Botta, Edmilson Bueno, Daniel Garcia, Juliana Grotti, Celso Monari, Sinézio, Ana, Tatinho, Telma, Andréa Túbero, Gisele Cortez, Juliana, Meire. Agradeço também a Davi, Paulo, Gelson e Agamemnon pelas entrevistas concedidas e as trocas de conhecimento valiosas.

Agradeço também a Maria Fernanda Mariano e a toda equipe que conheci no Projeto Cataforte I, foi uma experiência ímpar em minha vida.

Um agradecimento especial às mulheres catadoras. Às gerações do lixo: avó, mãe, filha. Às bonecas de sabugo, às flores da Acácia, às relíquias do lixão. Guardo com carinho os encontros, reuniões, viagens, passeios, longos cafés, cervejas no bar, protestos, desabafos, histórias de vida e de luta.

Para Anna Paula, Helena, Marta, Débora, Taís, Norma, Juliana, Cícera, Rosivânia, Kely, Jenifer, Roseli, Tereza, Ivone, Gildete, Cleuza, Vânia, Deise, Jaqueline, Kika, Sonia, Marilene, Nathália, Cristiane, Iracy, Inair, Marias... a todas as mulheres catadoras que eu tive a honra de conhecer e conviver. Vocês me inspiram! Essa tese é para vocês.

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15 de julho de 1955 Aniversário de minha filha Vera Eunice. Eu pretendia comprar um par de sapatos para ela. Mas o custo dos generos alimenticios nos impede a realização dos nossos desejos. Atualmente somos escravos do custo de vida. Eu achei um par de sapatos no lixo, lavei e remendei para ela calçar.

Eu não tinha um tostão para comprar pão. Então eu lavei 3 litros e troquei com o Arnaldo. Ele ficou com os litros e deu-me pão. Fui receber o dinheiro do papel. Recebi 65 cruzeiros. Comprei 20 de carne. 1 quilo de toucinho e 1 quilo de açucar e seis cruzeiros de queijo. E o dinheiro acabou-se.

Passei o dia indisposta. Percebi que estava resfriada. A noite o peito doia-me. Comecei tossir. Resolvi não sair a noite para catar papel. Procurei meu filho João José. Ele estava na rua Felisberto de Carvalho, perto do mercadinho. O onibus atirou um garoto na calçada e a turba afluiu-se. Ele estava no nucleo. Dei-lhe uns tapas e em cinco minutos ele chegou em casa.

Ablui as crianças, aleitei-as e ablui-me e aleitei-me. Esperei até as 11 horas, um certo alguem. Ele não veio. Tomei um melhoral e deitei-me novadeitei-mente. Quando despertei o astro rei deslisava no espaço. A minha filha Vera Eunice dizia: - Vai buscar agua mamãe!

Carolina Maria de Jesus

Quarto de Despejo: diário de uma favelada

Quando a mulher negra se movimenta, toda a estrutura da sociedade se movimenta com ela, porque tudo é desestabilizado a partir da base da pirâmide social onde se encontram as mulheres negras, muda-se a base do capitalismo.

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Mulheres catadoras são cerca de 80% dos trabalhadores nas cooperativas e associações de catadores de materiais recicláveis no Brasil. Por que elas são maioria e quais as condições de trabalho e de vida dessas mulheres? De que maneira gênero, pobreza e trabalho associado se relacionam com o trabalho precário e a divisão sexual do trabalho? Como funciona o trabalho cooperativado/associado dos catadores de materiais recicláveis organizados por uma maioria de mulheres, sendo elas majoritariamente pobres, negras e sem escolarização? Estas são as questões que norteiam a presente pesquisa. Para tentar respondê-las realizamos um estudo de caso na Cooperativa Acácia, em Araraquara/SP, e analisamos o modelo de organização do trabalho, observando o cotidiano das relações e escutando as histórias de vida das cooperadas, por meio da metodologia de história oral e da observação participante. Para ampliar a questão, utilizamos também dados quantitativos e qualitativos de outras cooperativas. O conjunto da pesquisa sugere que as mulheres catadoras organizam o trabalho cooperado através de um modelo doméstico-produtivo e que elas lidam com a exclusão econômica e social por meio de redes de proximidade e do empoderamento e politização das lideranças.

Palavras-chave: Catadores; Relações de gênero; Divisão Sexual do Trabalho; Pobreza; Reciclagem.

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Women working as waste pickers represent about 80% of the workers within cooperatives and associations of recyclable material waste pickers in Brazil. Why are they a majority and what are the working and living conditions of these women? In what ways are gender, poverty and associated work related to the precarious work and the sexual division of labour? How does the cooperative/associated labor of waste pickers organized by women - being them mostly poor, black and with low or no schooling - work? Such questions have guided this research. In order to find their answers, we have carried out a case study at the Acácia Cooperative in Araraquara, SP, in order to analyze their work organizational model by observing their relational daily life and listening to their members' life histories. To do so, we have used the oral history and participant observation methodologies. In order to broaden the evidences, we have also used quantitative and qualitative data from other cooperatives. The research set as a whole suggests that women waste pickers organize the cooperative work as a domestic-productive model and that they have to deal with economic and social exclusion by using their proximity networks and the empowerment and politicization of their leaders.

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Lista de Fotos

Foto 1 – Assembleia Geral e Eleição – Cooperativa Acácia (março/2017) ...16

Foto 2 – Kely – Catadora da Acácia com vestido de noiva achado na coleta seletiva...42

Foto 3 - Catadores no Lixão de Araraquara - Ação da Cidadania, 1994 ...82

Foto 4 – Marcha da Mulheres Catadoras e bandeiras de luta ...131

Foto 5 – Catadoras da Acácia: Marta, Norma, Anna Paula e Helena ...131

Foto 6 - Escritório das mulheres do monte na Usina de Reciclagem Acácia - abr/2017... 132

Foto 7 – Vânia, Kely, Marta e Helena – catadoras em processo de formação 2016...251

Lista de figuras Figura 1 – Imagem de “O Lixo Extraordinário” de Vik Muniz...37

Figura 2 – Apresentação da Cooperativa Acácia - Relatório de Atividades de 2016...44

Figura 1 – Matéria de Jornal de 16 de abril de 2002 ...54

Figura 4 – Matéria de Jornal de 17 de novembro de 2002 ...55

Figura 5 – Matéria de Jornal de 8 de dezembro de 2002 ...56

Figura 6 – Matéria de Jornal de 4 de agosto de 2005...59

Figura 7 – Matéria de Jornal de agosto de 2005 ...60

Figura 8 – Matéria de Jornal de 30 de setembro de 2005 ...61

Figura 9 – Matérias de Jornais de 21 de novembro e de 23 de dezembro de 2005 ...62

Figura 20 – Matéria de Jornal de 23 de julho de 2006 ...64

Figura 11 – Matéria de Jornal de 9 de maio de 2008...72

Figura 12 – Convite do evento das mulheres da Cooperativa Acácia ...180

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Lista de Gráficos

Gráfico 1 – Porcentagem de mulheres e homens da Cooperativa Acácia...47

Gráfico 2 – Faixa etária dos cooperados da Acácia...50

Gráfico 3 – Autodeclaração sobre cor/raça dos cooperados da Acácia...51

Gráfico 4 – Escolaridade dos cooperados da Acácia...51

Gráfico 5 – Estado civil dos cooperados da Acácia...52

Gráfico 6 – Condições de moradia dos cooperados da Acácia...53

Gráfico 7 – Quantidade de filhos por cooperado da Acácia...147

Lista de Tabelas Tabela 1 – Retirada Cooperados da Acácia mês de abril de 2017...48

Tabela 2 – Dados preliminares da Rede Anastácia de Cooperativas...49

Tabela 3 - Quantidade de material reciclável coletado pela Acácia...75

Tabela 4 – Quantidade de cooperados e renda média da Acácia...76

Tabela 5 – Resíduos sólidos de Araraquara - Quantidade média/mensal de Jan/jul de 2017...78

Tabela 6 – Despesas em R$/tonelada...79

Tabela 7 - Perfil das Lideranças - Grupo Focal - Cooperativa Acácia 2015...149

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ABIHPEC – Associação Brasileira de Indústria de Higiene pessoal, perfumaria e cosméticos ASMARE - Associação dos catadores de papel, papelão e material reaproveitável

BNDES – Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social CATAFORTE – Programa Negócios Sustentáveis em Redes Solidárias CBO – Código Brasileiro de Ocupações

CEFET – Centro Federal de Educação Tecnológica

CEMPRE – Compromisso Empresarial para a Reciclagem

CESS - Coordenadoria de Economia Social e Solidária de Araraquara CETESB – Companhia Ambiental do Estado de São Paulo

CIISC - Comitê Interministerial de Inclusão Social dos Catadores DAAE – Departamento Autônomo de Água e Esgoto de Araraquara

DIEESE – Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos DRT – Delegacia Regional do Trabalho

EES – Empreendimento Econômico Solidário EPI – Equipamento de proteção individual FBB – Fundação Banco do Brasil

FCLAr – Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara/SP FUNASA – Fundação Nacional de Saúde

IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

IFCH – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp/SP INSS – Instituto Nacional do Seguro Social

IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada

MNCR – Movimento Nacional de Catadores de Materiais Recicláveis MNPR – Movimento Nacional da População de Rua

MTE – Ministério do Trabalho e Emprego

NAJURP – Núcleo de Assessoria Jurídica Popular da FDRP/USP OIT – Organização Internacional do Trabalho

ONU – Organização das Nações Unidas

OSCIP – Organização da Sociedade Civil de Interesse Público PEV – Ponto de entrega voluntária

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PNRS – Política Nacional de Resíduos Sólidos PT – Partidos dos trabalhadores

RSU – Resíduos Sólidos Urbanos RSD – Resíduos Sólidos Domiciliares

SDE – Secretaria de Desenvolvimento Econômico

SEMUC/SP - Secretaria Estadual de Mulheres Catadoras de São Paulo SENAES – Secretaria Nacional de Economia Solidária

SNIS – Sistema Nacional de Informações de Saneamento UNEB – Universidade do Estado da Bahia

UNESP – Universidade Estadual paulista “Júlio de Mesquista Filho” UNICEF – Fundo das Nações Unidas para a Infância

UNISOL Brasil – Central de Cooperativas e Empreendimentos Solidários USP – Universidade de São Paulo

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Introdução...16

Os capítulos...24

O olhar feminino no trabalho de pesquisa: referencial teórico-metodológico...26

Breve nota sobre os pressupostos teóricos e a revisão da literatura...38

Capítulo 1 - As relíquias do lixão: histórias de mulheres e catadoras...42

1.1 Cooperativa Acácia de Catadores de Materiais Recicláveis...44

1.2 A história da Acácia e o Programa municipal de Coleta Seletiva Solidária...54

Capítulo 2 – O Lixão, três gerações de catadoras, uma saga...81

2.1 A riqueza dos lixões na miséria do Brasil...95

2.2 Zonas de sombras e o lugar social do catador: pobreza, exclusão social e estigma...107

2.3 O MNCR e a ontologia dos coletivos...118

2.4 A Secretaria Estadual de Mulheres Catadoras de São Paulo – SEMUCSP/MNCR...128

Capítulo 3 - Bonecas de sabugo, gatas borralheiras e jovens mães...132

3.1 Pobreza feminina e trabalho reprodutivo...136

3.1.1 O trabalho infantil das meninas...138

3.1.1.a As bonecas de sabugo e o trabalho na roça...140

3.1.1.b Gatas borralheiras: o trabalho infantil doméstico...144

3.1.2 Maternidade e trabalho reprodutivo...146

3.1.3 O trabalho reprodutivo como determinante para a baixa escolaridade...154

3.2 Mulheres pobres e novas configurações do trabalho...156

3.3 A divisão social, sexual e racial do trabalho na catação...168

Capítulo 4 – As práticas coletivas das catadoras e o modelo de gestão feminino...180

4.1 Economia solidária: empoderamento feminino e redes de proximidade...186

4.2 O modelo doméstico-produtivo no trabalho associado de mulheres catadoras...196

4.3 O cotidiano de vida e trabalho das mulheres da Acácia pelas vozes das catadoras...201

Considerações finais...251

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Introdução

Mulher bonita é mulher que luta! Porquê mulher bonita é só mulher magra, alta, bem vestida, pele linda? Para nós, mulher bonita é a que está na luta, no dia a dia, todos os dias. Nós somos bonitas! (Helena – Caderno de Campo, 2015).

Tem um entusiasmo de quando a gente é coordenadora, porque a gente vê nosso esforço reconhecido, se você foi identificado no meio de tantos para ser coordenadora, é sinal que é uma pessoa comprometida e isso estimula a gente. Eu fui assumindo responsabilidades e isso estimulou até minha vida pessoal, porque aí eu peguei gosto em voltar a estudar. Eu ainda quero estudar para ser assistente social (Marta – Caderno de Campo, 2015).

Que a gente comece a fazer a diferença de fato, porque lá dentro da base, no dia a dia, quem faz a diferença somos nós e quando você olha lá para cima, infelizmente quem está são os homens, e a gente tem que mudar isso, porque não é justo, a gente é mais de 80% mulher e a tomada de decisão não está nas mãos da gente (SEMUCSP, 2014 - Maria Mônica da Silva, Coopcent ABC, MNRC).

Foto 2 – Mulheres catadoras nas esteiras de triagem da Cooperativa Acácia

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No Brasil, estima-se uma população de 400 a 600 mil catadores de materiais recicláveis trabalhando nas cidades. Eles estão nas ruas, nos lixões ou aterros sanitários, nas usinas de triagem, nos quintais de suas casas, nas praças, sob viadutos e marquises. Ao longo dos anos, cerca de 10% dessa população conseguiu se organizar coletivamente em cooperativas ou associações de catadores. Estudos apontam a existência de ao menos 1.100 organizações coletivas de catadores funcionando no país. Enquanto a maioria dos catadores autônomos é formada por homens, no universo dos catadores organizados de forma associativa vamos encontrar em torno de 80% de mulheres, sendo a maioria delas negras e com baixa escolaridade (IPEA, 2010; MNCR, 2014; FREITAS e FONSECA, 2011; SEMUCSP, 2014).

Catador/a de materiais recicláveis é a forma como denominamos os/as profissionais que catam ou recolhem resíduos sólidos recicláveis e reaproveitáveis - como papel, papelão, alumínio, plástico, vidro, entre outros -, e vendem esses materiais como forma de sustento. Portanto, catador/a é uma ocupação, um trabalho, caracterizado pela atividade realizada por homens e mulheres que dependem economicamente da coleta e venda de materiais recicláveis.

No Brasil a ação de catar tem início nos primórdios do século XX, com o advento do processo de industrialização e a instalação da indústria gráfica, sendo o papel o primeiro resíduo a ser reciclado e o “catador de papel” a figura típica que surge nos centros urbanos. Também no início do século há registros sobre os “garrafeiros” e catadores de sucatas. Eram poucos, assim como eram poucos os materiais que sobravam, em uma época em que era possível pensar e praticar o consumo com um mínimo de embalagens, a maioria destas reaproveitadas.

Historicamente o catador de lixo ou de resíduos sólidos reaproveitáveis é um agente social invisível. A atividade de catação tem forte vínculo com a pobreza e a miséria no Brasil. Sua trajetória é marcada pela fome e pelo estigma que o associa ao lixo, ao que é descartável, inútil.

Na década de 1970, os lixões passam a ser fonte de alimento, trabalho e moradia para parcela significativa dos miseráveis no Brasil, situação que foi se agravando ao longo dos anos seguintes. A atividade de catação foi ganhando espaço nas cidades e virando fonte de renda também para moradores de rua.

O alto índice de desemprego alcançado nos anos 1990 fez crescer de forma acentuada o trabalho não assalariado e distintas modalidades de trabalho informal. Nem

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mesmo o movimento de formalização do emprego, que teve início em 2000 e ganhou força em 2003, “conseguiu reverter a alta taxa de informalidade e precariedade do mercado de trabalho brasileiro” (ARAÚJO, 2012, p. 135).

O trabalho dos catadores está integrado, segundo Bosi (2008), ao processo de acumulação capitalista, e a condição de exclusão e miserabilidade em que vivem os qualifica para esse tipo de ocupação, tendo em vista o desemprego, a baixa escolaridade e a elevada faixa etária.

Waldman (2010, p. 17) ressalta que os resíduos se transformaram em uma opção de geração de trabalho e renda para um “exército de catadores”, que se tornou “aspecto relevante na rotina dos centros urbanos de todo o mundo”. Tal constatação pode ser explicada pelo alto índice de desemprego, atrelado ao surgimento de distintas modalidades de trabalho informal e pelo crescimento de um mercado promissor de embalagens e produtos descartáveis.

A organização dos catadores no final da década de 1980 teve início localmente, encontrando-se as primeiras experiências em cidades das regiões Sul e Sudeste. Essa organização foi acontecendo sob o modelo da economia solidária, que tem como célula a organização cooperativa e a ideologia da autogestão dos trabalhadores.

Segundo Leite (2012, p. 236), as cooperativas de reciclagem de lixo surgem “da confluência de duas questões que assumem visibilidade na década de 1980”: o fortalecimento do debate sobre o meio ambiente, em que se discutem os efeitos do crescimento do lixo produzido nas cidades e “a reestruturação econômica, com a globalização da produção e dos mercados produzindo milhares de desempregados e a tendência à precarização das relações de emprego e trabalho”. A autora aponta que a partir da década de 1990, em diversos municípios, em geral governados por partidos progressistas, começaram a se organizar cooperativas e associações de catadores de lixo.

Em 1993 foi lançada a campanha “Ação da Cidadania contra a fome, a miséria e pela vida”, coordenada pelo sociólogo Herbert de Souza, dando visibilidade à tragédia da fome e da miséria, que assolava mais de 32 milhões de brasileiros. Nesse bojo estavam inseridos os catadores, e a campanha deu visibilidade à situação de trabalho e de vida dessas pessoas nos lixões. Os catadores passaram a receber apoio da igreja católica, por meio das pastorais de rua, de ONG´s e universidades; posteriormente, o apoio veio também de militantes políticos de movimentos sociais e prefeituras municipais.

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O primeiro esforço para organização de um movimento nacional foi em 1992, mas apenas em 2001 é realizado o Congresso que funda o Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis (MNCR), um dos movimentos sociais contemporâneos mais fortes e bem organizados no Brasil. Participam desse movimento apenas catadores organizados em cooperativas ou associações.

A organização dos catadores por meio do movimento social tem contribuído para o reconhecimento da profissão e para a conquista de leis e programas, que vêm auxiliando as cooperativas e associações a obter espaços, estrutura, contratos remunerados e demais ferramentas para a sustentação dos empreendimentos e a melhoria da renda dos cooperados, embora as condições de trabalho ainda sejam preocupantes.

A profissão dos catadores foi reconhecida pela Classificação Brasileira de Ocupações - CBO na portaria n° 397, de 9 de outubro de 2002, do Ministério do Trabalho, sob o código 5192-05, fruto do trabalho de mobilização dos catadores organizados.

De acordo com a CBO (BRASIL, 2002), a descrição da profissão é a seguinte: Os trabalhadores da coleta e seleção de material reciclável são responsáveis por coletar material reciclável e reaproveitável, vender material coletado, selecionar material coletado, preparar o material para expedição, realizar manutenção do ambiente e equipamentos de trabalho, divulgar o trabalho de reciclagem, administrar o trabalho e trabalhar com segurança.

O MNCR conseguiu um espaço na agenda de governo no mandato do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, assim como a Economia Solidária conseguiu uma secretaria dentro do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), a Secretaria Nacional de Economia Solidária (SENAES). Inúmeros projetos (leis, programas, recursos) foram desenhados para fortalecer os catadores dentro do modelo da economia solidária. A Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS), instituída pela lei 12.305/2010 (BRASIL, 2010a), declara o catador como figura central e agente da coleta seletiva. Notamos que a articulação do MNCR com os programas nacionais para catadores busca consolidar um modelo institucional de organização baseado no cooperativismo, na economia solidária e na formação de redes de cooperação.

A maioria dos catadores organizados em cooperativas e associações são mulheres, segundo dados do próprio MNCR. Portanto, acreditamos que a questão de gênero é um ponto chave para entender esse modelo de organização, o qual, apesar das dificuldades, traz avanços significativos e possibilidades de inclusão social a essa população.

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No Brasil verifica-se a permanência de aproximadamente 1/3 das mulheres em atividades precárias. Nas últimas três décadas, o país passou por uma feminização do mercado de trabalho, com o ingresso de 32 milhões de mulheres, porém sem a superação da tradicional divisão sexual do trabalho, que separa o trabalho masculino do trabalho feminino e atribui maior valor ao trabalho do homem (ARAÚJO, 2012; LOMBARDI, 2012).

Muitas mulheres foram trabalhar em cooperativas de reciclagem por estarem desempregadas ou não terem outras possibilidades de emprego. Algumas mulheres fizeram a opção por essa atividade em detrimento de outras, como, por exemplo, o de empregadas domésticas, devido às relações de trabalho mais horizontalizadas (FREITAS e NOBRE, 2012).

Nesses empreendimentos,além da precariedade do trabalho, existe uma acentuada separação entre o que é “trabalho de homem” e “trabalho de mulher” (WIRTH, 2010, 2013), estereótipos que se naturalizam no cotidiano das atividades laborais e que apontam para outra questão – a intrínseca ligação entre trabalho produtivo e trabalho reprodutivo.

Entre os catadores organizados, uma quantidade significativa de mulheres é responsável economicamente por suas famílias e identificam no trabalho informal uma maior margem para conciliar seus papéis produtivo e reprodutivo, devido a acordos mais flexíveis; porém, é justamente esse o elo de ligação entre gênero e precariedade (WIRTH, 2010; LEITE, 2012).

A centralidade da questão de gênero tem como objetivo chamar nossa atenção para o debate das contradições de uma economia solidária ou economia feminina, que por um lado está relacionada com a precariedade e a divisão sexual do trabalho, relegando a mulher a uma posição de opressão, mas, por outro lado, gera inclusão e ressignificação social para muitas mulheres e suas famílias.

Dentro do MNCR surge, no estado de São Paulo, a Secretaria Estadual das Catadoras de Materiais Recicláveis – SEMUCSP, com o objetivo de articular políticas e garantir direitos às mulheres catadoras, que são maioria, mas que ainda precisam ocupar os postos de decisão dentro e fora do MNCR e dos próprios empreendimentos que participam.

Tendo em vista esse panorama geral sobre a profissão de catador, formulamos as primeiras indagações: por que a maioria dos catadores organizados são mulheres? Qual a condição de vida dessas mulheres que trabalham com a coleta e separação de materiais recicláveis? E qual é a condição de trabalho delas, tendo em vista a divisão sexual do trabalho?

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Para responder essas primeiras questões, optei pelo estudo de caso da Cooperativa Acácia, no município de Araraquara, interior de São Paulo. Trata-se da maior cooperativa da região em número de catadores (160 cooperados), em estrutura, na extensão dos contratos, parcerias e na amplitude do sistema de coleta (98% da cidade). Entre os cooperados da Acácia, 70% são mulheres, e todos os cargos de lideranças são ocupados por elas.

A pesquisa de campo na Cooperativa Acácia foi realizada por meio da observação participante e de depoimentos de vida das mulheres catadoras, com base na metodologia da história oral. Foram realizados trabalhos de campo em três momentos diferentes: em 2014, com entrevistas semiestruturadas sobre a trajetória da cooperativa; em 2015, com um grupo focal de lideranças femininas; e no primeiro semestre de 2017, com depoimentos de histórias de vida das catadoras, grupos focais e observação participante.

O cruzamento dos dados obtidos em campo com uma revisão bibliográfica de livros e teses específicas sobre catadores de materiais recicláveis resultou na verificação da intrínseca relação entre gênero, pobreza e trabalho precário. Com base na pesquisa de campo em profundidade na Cooperativa Acácia, foi possível verificar a relação existente entre mulheres pobres - em sua maioria negras1, mães solteiras e com baixa escolaridade -, e sua inserção neste universo marcado por condições precárias de trabalho, o que explica a existência de uma maioria de mulheres nessas organizações (WIRTH, 2010; LEITE, 2012; CHERFEM, 2014).

A escolha em ouvir suas histórias de vida me levou a depoimentos emocionantes e tão cruelmente reais que foi possível encontrar respaldo e paralelo na ficção, na tradição oral dos contos de João e Maria e da Gata Borralheira. Nas entrelinhas de suas frases, nos tantos olhares que expressavam ora dores e frustrações, ora conquistas e orgulho, nos gestos de empatia e distanciamento, pude compreender que meu objeto de pesquisa só estaria claro depois que eu ouvisse todos os depoimentos em sua heterogeneidade.

Esses depoimentos revelaram que a divisão sexual do trabalho para mulheres pobres está diretamente relacionada com o peso que o trabalho reprodutivo tem em suas vidas, uma vez que elas não possuem condições de pagar pelos serviços de terceiros, seja na limpeza da casa ou no cuidado dos filhos; essas mulheres são em sua maioria mães solteiras, cujos pais dos filhos são ausentes financeiramente e nos cuidados das crianças, e elas precisam

1 Neste trabalho, optou-se pela denominação do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em que a

definição da cor/raça é separada entre brancos, amarelos, indígenas, pretos e pardos, sendo que os pretos e pardos juntos representam os negros/as.

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trabalhar para garantir o sustento da família e o mínimo de condições de vida. Ou seja, quase sempre cabe a elas a garantia da cesta básica e do asseio da casa e dos filhos.

Desse primeiro resultado de pesquisa surgiram outras questões: como funciona o trabalho cooperativado/associado dos catadores de materiais recicláveis organizados por uma maioria de mulheres, sendo elas majoritariamente pobres, negras e sem escolarização? O trabalho associado é uma forma de resistência e enfrentamento da opressão e dominação sofrida por essas mulheres? Como a exclusão econômica e social é enfrentada dentro de um ambiente de trabalho associado e predominantemente feminino?

Com as informações coletadas ao longo do trabalho de campo e o referencial teórico estudado, analisamos as condições de emergência, de mobilização e de ação coletiva de uma categoria predominantemente feminina, por meio do cruzamento de três eixos estruturantes: a exclusão econômica e social; a divisão social, sexual e racial do trabalho; e a organização do trabalho sob o modelo de uma economia solidária e feminina.

A reflexão sobre esse entrelaçamento conduz à hipótese de que as mulheres catadoras organizam o trabalho a partir de um modelo doméstico-produtivo, ou seja, de um modelo de gestão feminino em que as habilidades aprendidas no campo do trabalho reprodutivo são valorizadas e aplicadas na organização do trabalho produtivo. Elas sustentam esse modelo, lidam com a exclusão econômica e social, e resistem à opressão e dominação por meio de redes de proximidade e do empoderamento e politização de suas lideranças.

Essa pesquisa tem como objetivo investigar a situação de trabalho e de vida das mulheres catadoras, que são maioria nos grupos organizados sob o modelo de cooperativas populares, e examinar as causas e consequências desse fenômeno, desvendando a maneira como as mulheres catadoras estão organizando o trabalho cooperativado/associado diante de todas as dificuldades encontradas pela categoria, por sua situação peculiar de gênero, classe e raça2.

É também propósito desse trabalho que seus resultados sejam testados, avaliados, questionados e ampliados por catadores, gestores e pesquisadores que se dediquem a essa área ou que desenvolvam algum trabalho em que esses dados possam ser pertinentes.

2 O termo raça é utilizado por Kergoat (2010, p. 94) entre aspas. Neste trabalho utilizaremos sem as aspas, mas

adotamos a concepção da autora que justifica que: “é utilizado aqui da mesma forma que classe ou sexo, isto é, como categoria socialmente construída, resultado de discriminação e produção ideológica. (...) faço aqui um uso estratégico da palavra raça, apontando para um conceito político, cultural e social, que evidentemente não deve ser tomado no sentido biológico”.

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Por fim, buscamos ampliar o debate dentro das ciências sociais sobre questões que envolvam mulheres trabalhadoras e pauperizadas, ou ainda acerca das relações entre gênero, trabalho flexível e pobreza.

Gondin e Lima (2006, p. 61) dizem que “a definição do objeto é um processo que não se conclui senão com a própria pesquisa, pois as informações e os insights advindos da coleta e análise de dados propiciarão novos ângulos de abordagem e redefinições do problema”. As histórias de vida das mulheres catadoras de Araraquara, conduzidas pelo eixo do trabalho, mostraram novos caminhos de pesquisa e novos resultados para o entendimento da organização do trabalho dos catadores, realizado majoritariamente por mulheres.

O que encontrei garimpando relíquias do lixão foram histórias de vida de mulheres pobres, cerceadas pelos limites de sua condição de mulher e da escassez material. Encontrei memórias de infâncias que foram difíceis e sofridas, mas que se apresentaram também doces e festivas como são as memórias infantis. Conheci marcas profundas dessas mulheres, marcas de violência, marcas de resignação e marcas que foram transformadas em bandeiras de luta. Muitas perderam seus sonhos, outras batalham diariamente para torná-los realidade. Conquistaram casa própria, tiraram marido violento de casa com medida protetiva, estão fazendo faculdade, tirando carteira de motorista, viajando com a família para a praia, indo para o baile, criando os filhos. A maioria se orgulha do trabalho que realiza. Algumas querem muito mais. Outras estão plenamente satisfeitas com a vida que têm.

O título desse trabalho busca valorizar a engenharia e as habilidades que essas mulheres desenvolvem para realizar um trabalho coletivo bem feito, trabalho esse que significa atuar conjuntamente para um mesmo fim e colaborar para o meio ambiente e a vida em sociedade. O trabalho também significa para muitas dessas mulheres uma forma de resistir, de não sucumbir às intempéries que suas vidas apresentam. As histórias de suas vidas e o modo engenhoso como cooperam são relíquias e aprendizados que não devem ser dispensados e descartados.

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Os capítulos

No primeiro capítulo apresentamos o objeto de pesquisa, a Cooperativa Acácia de catadores de materiais recicláveis. Traçamos um perfil dos seus cooperados e contamos a história de formação da cooperativa, que se entrelaça com a história de formação do Programa Municipal de Coleta Seletiva Solidária de Araraquara. Mostramos a importância da construção de políticas públicas de coleta seletiva com inclusão de catadores, cujo modelo principal é a adoção de um contrato de prestação de serviços, em que o poder público remunera os catadores pelos serviços prestados ao município.

No segundo capítulo, ao contar a saga de três gerações do lixão de Araraquara, temos a intenção de problematizar a gravidade da situação dos lixões do país, bem como tratar de temas como a fome, o estigma e a exclusão social, que permeiam a vida de quem tem no lixo trabalho, alimento e/ou moradia. A partir da apropriação do lixo enquanto mercadoria, podemos entender como se dá a organização dos excluídos e a mobilização, por meio do MNCR, de uma categoria que tem fome de cidadania. O cenário onde se desenvolve essa história é o da reestruturação produtiva, da precarização do trabalho e da pauperização do/a trabalhador/a, incluindo os desdobramentos de gênero e raça. A contradição, do ponto de vista do movimento social ou a consonância, do ponto de vista do capital, é que se trata de um mercado em franca expansão e cuja cadeia produtiva gera bilhões, não usufruídos pela base da pirâmide. Neste capítulo discutimos principalmente o eixo temático da exclusão econômica e social e suas formas de enfrentamento por meio da organização de um movimento social e da valorização da categoria de trabalho.

O terceiro capítulo cumpre a função de contar as histórias de vida das mulheres catadoras da Cooperativa Acácia, onde foi realizado um estudo de caso. Esse capítulo procura mostrar que na vida de mulheres pobres a relação entre gênero, raça, baixa escolaridade e o peso do trabalho reprodutivo são determinantes para a inserção precária no trabalho produtivo. Pela voz das catadoras tomamos conhecimento de vidas marcadas pelo trabalho infantil, pela falta de escolaridade, pela maternidade precoce e pela violência doméstica. Marcas que carimbam a trajetória profissional dessas mulheres e delimitam um espaço para ocupações que não necessitem de escolarização e qualificação profissional, e que também lhes proporcionem acordos mais flexíveis, em concordância com o peso que o trabalho reprodutivo lhes impõe. Procuramos demonstrar que as condições de emergência de uma categoria

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predominantemente feminina devem ser explicadas pela consubstancialidade entre gênero, classe e raça, e pela via da divisão sexual do trabalho.

O quarto capítulo é dedicado a mostrar a organização e o cotidiano de trabalho das catadoras sob o modelo de uma economia solidária e feminina, com o intuito de que a voz delas, através de seus depoimentos, seja o principal instrumento de explicação dessa forma de organização. Apontamos alguns nós onde os eixos principais de análise se cruzam em meio ao cotidiano de trabalho das mulheres catadoras. O principal desdobramento é a verificação de um modelo doméstico-produtivo de organização e funcionamento das cooperativas de catadores/as, baseado nos saberes populares e nas experiências de vida dessas mulheres. As redes de proximidade, por sua vez, explicam a forma como se dá o enfrentamento à opressão e dominação vivida pelas mulheres estudadas, bem como a resistência à exclusão econômica e social por meio de um trabalho que cumpre um papel social. Outra forma importante em que percebemos o enfrentamento, tanto da dominação de gênero quanto da exclusão social, está no empoderamento e na politização das lideranças femininas.

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O olhar feminino no trabalho de pesquisa: referencial teórico-metodológico

Pesquisar mulheres catadoras significou me reinventar como cientista social e me empoderar como pesquisadora. Eu tive que sair detrás das franjas da política pública, organizar o emaranhado de fios pendentes e criar uma trança onde eu conseguisse entrelaçar três trajetórias: o percurso do catador da invisibilidade à organização social, a história de vida e de trabalho das mulheres catadoras e os caminhos do cotidiano de trabalho de uma cooperativa de catadores de materiais recicláveis.

Foi pela via da política pública que conheci as mulheres catadoras de Araraquara/SP, em meados de 2005, quando eu iniciei minha participação no Comitê Gestor da Coleta Seletiva. Eu me tornava então “agente” e depois coordenadora (2007-2008) da Coordenadoria de Economia Social e Solidária (CESS) da Prefeitura Municipal de Araraquara (PMA), e os catadores se tornaram o público alvo do meu trabalho desde então.

Entre 2005 e 2008, participei ativamente de todo o processo de formação e consolidação da Cooperativa Acácia de Catadores de Materiais Recicláveis, bem como da implantação e ampliação do programa municipal de coleta seletiva do município de Araraquara, além da construção e assinatura do contrato de prestação de serviços com o DAAE (Departamento de Água e Esgoto de Araraquara) - órgão público responsável pelos resíduos sólidos no município. O contrato foi um dos primeiros do Brasil a entrar em vigor.

Em 2010, trabalhei como formadora e assistente técnica no Projeto do Governo Federal - CATAFORTE I, contratada pela UNISOL Brasil, atuando junto às Cooperativas Coopervida, de São Carlos, e Cooperviva, de Rio Claro. Em 2011, ingressei no Doutorado em Ciências Sociais no IFCH/Unicamp e iniciei a presente pesquisa, realizando um trabalho de campo em 2014 na Cooperativa Mãos Dadas, em Ribeirão Preto, e na Cooperativa Acácia durante os anos 2014, 2015 e 2017. Participei também de alguns encontros do MNCR e da Rede Anastácia de Catadores ao longo desse período. Ao todo, são 12 anos acompanhando direta ou indiretamente o trabalho da Cooperativa Acácia e das demais cooperativas de catadores da região.

Durante dez anos eu me dediquei a estudar manuais e diretrizes para aprender as melhores formas de organizar empreendimentos econômicos populares. Conheci leis, programas, projetos e muitos grupos organizados e reorganizados. Elaborei atas, estatutos,

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planilhas. Realizei conferências, fóruns, encontros, cursos. Por dez anos eu estive, de alguma forma, fomentando a organização de pessoas em associações e cooperativas de trabalho. Naturalmente, os primeiros anos da pesquisa de doutorado foram marcados pelo olhar de uma gestora pública e pela leitura dos documentos oficiais.

Nos últimos dois anos meus estudos e minhas vivências pessoais, principalmente a maternidade, redirecionaram o meu olhar para as questões de gênero de tal modo que elas reverberaram na minha pesquisa. Ao olhar as mulheres catadoras, que eu conhecia há tantos anos, percebi que eu sabia muito pouco sobre elas, e que até então eu havia falado muito e ouvido pouco. Foi então que iniciei o caminho inverso, saindo do ponto de conforto e silêncio em que me encontrava para o espaço de trabalho das catadoras, repleto de vozes, de contradições, de vida. Realizar um estudo de caso na Cooperativa Acácia de Araraquara, com as mulheres catadoras, por meio da observação participante e de depoimentos de vida com a metodologia da história oral, significou aprofundar questões e perceber relações que não seriam possíveis olhando apenas para documentos. Entretanto, utilizar também os documentos oficiais da cooperativa3 e sobre ela nos possibilitou ver como se identificam e se apresentam esses trabalhadores.

As catadoras me contaram suas memórias de vida e a forma como organizam e interpretam o trabalho que realizam. Elas são a maioria. Elas são a voz e o suor que estruturam esses empreendimentos. Elas queriam falar, eu estava pronta para ouvir. Portanto, o produto final dessa tese é baseado no olhar de uma pesquisadora inquieta, feminista e sensível às questões que surgiram das vozes e dos relatos das mulheres catadoras. As memórias coletadas retratam a história de um grupo social em uma determinada época e local. Registradas, elas ganham valor social e tornam-se parte do conhecimento científico produzido nas Ciências Sociais no Brasil.

Como diz Lang (1992, p. 7):

Os resultados de uma pesquisa, de modo geral, pouco ou nada revelam das dificuldades enfrentadas pelo pesquisador para chegar até eles. Omitem-se as dúvidas, o questionamento, o constante refazer. O trabalho de pesquisa se assemelha a um caminho não linear, um

3 Foram utilizados os seguintes documentos da Cooperativa Acácia: Estatuto Social, Regimento Interno,

Contrato de Prestação de Serviços de Coleta Seletiva com o DAAE, Relatório de Atividades de 2016, Cadastro dos Cooperados (atualizado até dezembro de 2016), Planilha de Retirada dos Cooperados (abril 2017), Planilha de materiais coletados e vendidos (2008 a 2017), Plano de Gestão Participativa da Rede Anastácia (2017). Também foram utilizados recortes de jornais antigos (2002 a 2008) guardados pela autora.

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suceder de encruzilhadas. Há um contínuo avaliar das possibilidades, vantagens e desvantagens vislumbradas em cada atalho.

Para realizar uma pesquisa social, tendo em vista as relações sociais entre os atores, optamos por um estudo de caso da Cooperativa Acácia, aprofundando a observação das práticas de trabalho dos cooperados e, principalmente, das mulheres, utilizando diferentes métodos para coletar informações. Buscamos também efetivar o objetivo ressaltado por Quimelli (2009, p. 73):

Os Estudos de Casos podem especialmente ser utilizados quando o objetivo do pesquisador não é simplesmente ver o que os sujeitos de pesquisa entendem sobre determinado assunto, mas o que e como eles trabalham na prática o tema a ser investigado, e como este tema influencia criticamente as suas vivências diárias.

Ainda consultando Quimelli (2009), apreendemos que o estudo de caso investiga um fenômeno contemporâneo dentro de seu contexto da vida real e é baseado em uma grande riqueza de material empírico, em que são usadas múltiplas fontes de evidência. O estudo de caso é bastante apropriado para descrever rotinas e momentos problemáticos e significativos nas vidas dos indivíduos, e pode, como parte da metodologia da pesquisa qualitativa, ser uma estratégia adequada de investigação quando o pesquisador se torna participante do processo. A autora ressalta que, através do estudo de caso, é possível dar conta de diferentes aspectos, como o social, político, econômico e dimensões comportamentais que exercem influência sobre o objeto de estudo.

O estudo de caso não é uma escolha metodológica. Ele é a escolha do objeto a ser estudado e pode gerar um estudo mais concreto, mais contextualizado e baseado em populações de referência. O estudo de caso qualitativo possui quatro características essenciais, segundo Merriam (1998, p. 13 apud ANDRÉ, 2005, p. 18): a particularidade; uma descrição densa e completa do caso; uma compreensão heurística do fenômeno com a descoberta de novos significados e, por fim, a indução que, mais do que a verificação da hipótese pré-definida, significa a descoberta de “novas relações, conceitos, compreensão”.

Os caminhos perseguidos por uma pesquisa qualitativa, portanto, levaram-me à utilização de um método multifocal, envolvendo uma abordagem interpretativa do objeto em questão. Para Denzin e Lincoln (2006), a pesquisa qualitativa possui uma multiplicidade de métodos que buscam, através da chamada triangulação, assegurar uma compreensão em profundidade do fenômeno analisado. Minayo (1998) define a triangulação como a combinação e cruzamento de múltiplos pontos de vista, através do trabalho conjunto de

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pesquisadores, informantes e múltiplas técnicas de coleta de dados. Quimelli (2009) ressalta que uma simples sistematização de todas as informações coletadas no campo não é suficiente, uma vez que espera-se uma explicação dos fenômenos observados, através de um processo de análise dos dados.

Bourdieu vai nos mostrar que a produção do conhecimento sociológico nunca é uma obra de indivíduos isolados. Ela tem sempre um caráter relacional e diz respeito a um sistema que ultrapassa o nível das relações objetivas, levando também em consideração as relações dialéticas entre as estruturas e as disposições estruturais que os atores tendem a reproduzir, ao que o autor chama de “duplo processo de interiorização da exterioridade e de exteriorização da interioridade” (BOURDIEU, 1994, p. 47).

Realizar uma pesquisa qualitativa foi um grande desafio, uma batalha “contra a ilusão que consiste em procurar a neutralidade na anulação do observador” (BOURDIEU, 1999, p. 706) e uma busca por uma construção realista do meu objeto de pesquisa. Sobre a construção do objeto, Bourdieu (2002, p. 27) vai dizer:

(...) é um trabalho de fôlego, que se realiza pouco a pouco, por retoques sucessivos, por toda uma série de correções, de emendas, sugeridos por o que se chama o ofício, quer dizer, esse conjunto de princípios práticos que orientam as opções ao mesmo tempo minúsculas e decisivas.

Para Gondim e Lima (2006, p. 61), é “a natureza do objeto que deve guiar a escolha da metodologia”. O caminho escolhido foi o de dar voz às mulheres catadoras. Eu queria ouvir suas histórias de vida e, a partir de suas trajetórias, problematizar questões pertinentes às relações de gênero no universo do trabalho associado entre catadores e, de modo geral, às Ciências Sociais. A história de vida, segundo Minayo (1998, p. 127), “é instrumento privilegiado para se interpretar o processo social a partir das pessoas envolvidas” e desvenda o ponto de vista e as motivações dos protagonistas dos fatos sociais que, geralmente, são descartados na visão oficial dos setores dominantes.

Nesse sentido, passamos a utilizar a metodologia da história oral de vida e da observação participante, e a escolha da Cooperativa Acácia para a realização do estudo de caso não poderia ter sido melhor. Devido aos trabalhos realizados há anos com a cooperativa, existia uma notável abertura e disponibilidade das mulheres para a realização da pesquisa. Morar na mesma cidade em que a cooperativa funciona ampliou minha disponibilidade para

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participar das atividades e do cotidiano de seus membros, além de me permitir acrescentar minha observação enquanto cidadã beneficiada pelo serviço de coleta.

A história oral, segundo Meihy (1998, p. 17), é um recurso moderno usado para estudos referentes à vida social de pessoas, uma forma de captar experiências de pessoas que estão disposta a falar sobre aspectos de suas vidas. “Ela é sempre uma história do tempo presente e é reconhecida como história viva”.

Por meio da história oral, por exemplo, movimentos de minorias culturais e discriminadas, principalmente mulheres, índios, homossexuais, negros, desempregados, além de migrantes, imigrantes exilados, têm encontrado espaço para abrigar suas palavras, dando sentido social às experiências vividas sob diferentes circunstâncias (MEIHY, 1998, p. 11).

Queiroz (1987, p. 6) afirma que a história oral “é um termo amplo que recobre uma quantidade de relatos a respeito de fatos não registrados por outro tipo de documentação ou cuja documentação se quer completar”, podendo registrar a experiência de um só indivíduo ou de diversos indivíduos de uma mesma coletividade.

Para Meihy (2000, p. 85), história oral é como são chamados “os processos decorrentes de entrevistas gravadas, transcritas e colocadas a público segundo critérios predeterminados pela existência de um projeto estabelecido”, e ressalta que, tanto no Brasil quanto na América Latina, muitos debates têm qualificado a história oral como uma das mais promissoras tendências de entendimento da sociedade. O autor demonstra que a história oral se inicia com a elaboração de um projeto e a definição de um grupo de pessoas a serem entrevistadas; segue-se então a gravação das entrevistas, a transcrição e conferência dos depoimentos, a autorização para o uso e, por fim, a análise dos dados e a publicação dos resultados, que devem, inclusive, voltar ao grupo que gerou as entrevistas (MEIHY, 1998).

Para Amado e Ferreira (2006), a história oral é uma metodologia de pesquisa e, como tal, deve encontrar suas bases teóricas em uma literatura mais ampla, produzida dentro das ciências humanas. Meihy (2000, p. 96) ainda vai afirmar que ao assumir “sua função de reveladora de micro histórias”, e com foco em situações específicas, a história oral mostra seu potencial crítico como uma metodologia que dá voz aos grupos silenciados.

Fabiana Severi (2010) assinala que alguns teóricos entendem a história de vida como um dos tipos de narrativa que compõem a metodologia qualitativa da história oral, assim como o depoimento ou o relato de vida. Recorrendo a Lang (2001 apud SEVERI, 2010), ela vai mostrar que a história oral, enquanto metodologia, permite conhecer a realidade

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presente e um passado ainda próximo, por meio da voz daqueles que viveram as experiências, ou seja, permite conhecer a versão dos envolvidos.

Para Meihy (1998), a história oral de vida é uma das formas mais cultivadas do gênero e ela é mais subjetiva do que objetiva, residindo nisso a sua força. Na história de vida, as experiências subjetivas são consideradas como dados importantes. Bourdieu vai dizer que a história do indivíduo é uma especificação da história coletiva do seu grupo e sua classe:

Podemos ver nos sistemas de disposições individuais, variantes estruturais de habitus de grupo e de classe, sistematicamente organizadas nas diferenças que os separam: o estilo pessoal, isto é, esta marca particular que trazem todos os produtos de um mesmo habitus, é uma variação em relação ao estilo de uma época ou de uma classe (BOURDIEU, 1973, p. 189 apud MINAYO, 1998, p. 127). Ao que Minayo (1998, p. 110) acrescenta, posicionando a entrevista como um instrumento privilegiado para coletar informações que revelam condições estruturais, assim como sistemas de valores, e que tem, ao mesmo tempo, “a magia de transmitir, através de um porta-voz, as representações de grupos determinados, em condições históricas, socioeconômicas e culturais específicas”.

Para Queiroz (1987, p. 7), na história de vida existe uma narrativa linear e individual dos acontecimentos que o narrador considera significativos, em que também é possível perceber as relações com os membros do seu grupo, de sua profissão, de sua camada social. Cabe ao pesquisador captar o que ultrapassa o caráter individual dos relatos e “que se insere nas coletividades a que o narrador pertence”. Para Zeila Demartini (1992, p. 47), não se deve buscar uma uniformidade ou padronização dos relatos, pois a riqueza que cada entrevistado tem a contar pode estar “na citação de um fato desconhecido, na descrição de um fato corriqueiro”.

Segundo Meihy (1998, p. 45), “nas entrevistas de história oral de vida, as perguntas devem ser amplas, sempre apresentadas em grandes blocos, de forma indicativa dos acontecimentos e na sequência cronológica da trajetória do entrevistado”. De acordo com Minayo (1998), a história de vida pode ser completa ou tópica, sendo que a tópica enfatiza uma determinada etapa ou setor da vida pessoal ou de uma organização. Já para Queiroz (1987), existe uma diferença entre história de vida e depoimento de vida, pois no depoimento o fio condutor fica nas mãos do pesquisador, que dirige a entrevista, ainda que sutilmente.

Da “vida” de seu informante só lhe interessam os acontecimentos que venham se inserir diretamente no trabalho e a escolha é unicamente efetuada por este critério. Se o narrador se afasta em digressões, o

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pesquisador corta-as para trazê-lo de novo ao seu assunto. Conhecendo o problema, busca obter do narrador o essencial, fugindo do que lhe parece supérfluo e desnecessário. E é muito mais fácil a colocação do ponto final assim que o pesquisador considere ter obtido o que deseja. A entrevista pode se esgotar em um só encontro, os depoimentos podem ser mais curtos, residindo aqui uma de suas grandes diferenças para com as histórias de vida (QUEIROZ, 1987, p. 7-8).

Maria Cecília de Souza Minayo (1998, p. 108) demonstra que a função da entrevista, entendida como “comunicação verbal e colheita de informações”, é obter dados tanto objetivos e concretos, que poderiam ser obtidos por outras fontes, como censos e estatísticas, quanto obter dados subjetivos que se referem diretamente aos valores e opiniões do indivíduo entrevistado.

Para a realização das entrevistas, fui orientada a encontrar o nó central da rede de relações da cooperativa e, a partir dessa pessoa, conseguir a indicação de outras pessoas importantes para serem entrevistadas, até as indicações começarem a se repetir, chegando a uma saturação. Esse grupo de pessoas vai ser chamado por Gondim e Lima (2006, p. 65) de informantes-chave:

Essas pessoas constituem-se em verdadeiros “porteiros” da pesquisa, pois são personagens centrais para a compreensão de certos processos, movimentos sociais e para a identificação de lideranças de grupos, uma vez que detêm a memória de determinados fatos e situações sociais. Além disso, concentram informações sobre o objeto a ser estudado, facilitando o acesso a outras pessoas, grupos e instituições e fornecendo o “caminho das pedras”.

Realizei uma entrevista exploratória com a presidente da Cooperativa Acácia em 2011 e ela deu abertura para a realização da pesquisa e das demais entrevistas. A primeira etapa do trabalho de campo foi realizada entre os meses de agosto e setembro de 2014. Entrevistei novamente a presidente da cooperativa e a partir dela seguiram-se as indicações. As entrevistas foram semiestruturadas com base em um roteiro pré-determinado, que investigava a trajetória profissional dos catadores, a formação da cooperativa, o início da coleta seletiva no município, a parceria com os órgãos municipais e o contrato de prestação de serviços, informações sobre a gestão da cooperativa e de sua relação com o MNCR, com os projetos do Governo Federal e com outros parceiros. Perguntamos ainda sobre a participação na Rede Anastácia e os projetos futuros.

Ao todo, seis cooperadas foram entrevistadas, todas mulheres, sendo que cinco delas ocupavam algum cargo de direção ou coordenação na cooperativa. Entrevistei também

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dois gestores públicos municipais e os dois gestores que trabalham como funcionários da cooperativa. As entrevistas tiveram em média uma hora de duração.

Em 2014, foi realizado também um trabalho de campo na Cooperativa Mãos Dadas, de Ribeirão Preto, com entrevistas e a aplicação de questionários socioeconômicos aos cooperados, além de entrevistas com apoiadores da cooperativa, principalmente da USP/Ribeirão Preto. Os dados referentes a esse trabalho são usados, quando possível, em comparação com a cooperativa Acácia e serão objeto de uma publicação futura.

No final de 2015, para colher dados específicos sobre as relações de gênero, realizei uma nova entrevista com a presidente da cooperativa Acácia, que é também a representante do Comitê Regional Anastácia do MNCR. Na ocasião, foi também efetuado um trabalho de grupo focal com lideranças da cooperativa.

A entrevista com a presidente da cooperativa foi aberta, pedi apenas que ela me contasse sobre a formação da SEMUC/SP – Secretaria das Mulheres Catadoras de Materiais Recicláveis do Estado de São Paulo e as condições das mulheres catadoras. Associei as informações da entrevista com as obtidas no documentário que mostra a formação da secretaria (SEMUCSP, 2014), cruzando-as com dados oficiais do site do MNCR (2014, 2015).

A estratégia de coleta de dados através de grupo focal, segundo Minayo (1998), pode ser utilizada para dar um foco à pesquisa ou formular questões mais precisas, assim como para complementar informações e desenvolver hipóteses de pesquisa para estudos complementares.

A utilização da técnica de grupo focal permite ao pesquisador conseguir uma boa quantidade de informações em um curto período de tempo. Além disso, o trabalho em grupo revela uma multiplicidade de pontos de vista e processos emocionais que são difíceis de se manifestar por outros meios. Para Gatti (2005, p. 11), a pesquisa com grupos focais, “além de ajudar na obtenção de perspectivas diferentes sobre uma mesma questão, permite também a compreensão de ideias partilhadas por pessoas no dia-a-dia e dos modos pelos quais os indivíduos são influenciados pelos outros”.

Minayo (1998) ressalta que a intercomunicação no grupo faz emergir opiniões que permeiam a consciência e o comportamento dos indivíduos, mas que são, na realidade, coletivas ao grupo. Para Lopes (2014, p. 485), essa técnica também permite “a concepção de processos de construção da realidade por determinados grupos sociais, assim como a

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compreensão de práticas cotidianas, atitudes e comportamentos prevalecentes no trabalho com alguns indivíduos que compartilham traços em comum”.

Do ponto de vista operacional, a discussão de grupo ou “grupos focais” se faz em reuniões com um número de seis a doze informantes, com cerca de uma hora e meia de duração, contando geralmente com a presença de uma pessoa para facilitar a discussão. Para o encontro com as lideranças, preparei trinta questões que nortearam a discussão. Os temas foram: trabalho produtivo e reprodutivo, desigualdades de gênero no interior da cooperativa e na vida particular, educação e qualificação profissional, liderança e empoderamento feminino. O roteiro foi flexível, as questões tiveram apenas o intuito de facilitar e conduzir a discussão, algumas não foram mencionadas, outras desencadearam novos temas, e a sequência das questões foi alterada conforme o calor das discussões. O encontro foi gravado, durou uma hora e quarenta minutos. Participaram dele cinco lideranças. Os resultados preliminares desse trabalho de campo foram divulgados no artigo “Mulheres catadoras: articulação política e ressignificação social através do trabalho”, publicado na Revista Idéias do IFCH em dezembro de 2016 (PAIVA, 2016).

Em 2017, retornei à usina de reciclagem, sede da Cooperativa Acácia, e realizei uma terceira etapa da pesquisa de campo, durante os meses de fevereiro a maio, dando início a um trabalho de observação participante e de novas entrevistas.

As entrevistas com as cooperadas da Acácia seguiram o modelo de depoimentos de vida, cujo eixo central foi o trabalho doméstico/reprodutivo e produtivo/cooperativado. O roteiro das entrevistas seguiu um padrão de questões em torno da infância, vida familiar, escolarização, maternidade, ingresso no universo do trabalho. Indagamos que tipos de trabalhos já exerceram, quem faz o trabalho doméstico e de cuidado dos filhos, se sofreram discriminação por ser mulher, por ser negra ou por ser catadora, se sofreram algum tipo de violência, como é o trabalho atual, o papel que este ocupa na vida delas e o que pensam sobre cidadania e sobre a luta por direitos iguais. Perguntamos também sobre seus sonhos.

Foram realizadas dezenove entrevistas semiestruturadas e com roteiro flexível, sendo dezoito mulheres e um homem, que me pediu para ser entrevistado. Com exceção de uma entrevista na casa da catadora, todas as outras foram realizadas no ambiente e no horário de trabalho, uma no ecoponto e as demais na usina de reciclagem.

Durante todo o trabalho de campo houve o cuidado de respeitar a privacidade das catadoras, assim como de buscar a informalidade para deixa-las à vontade em contar suas

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histórias de vida. Antes de cada entrevista eu explicava o conteúdo e objetivo do trabalho, contava que iria gravar a conversa, que esta seria transcrita e que eu utilizaria trechos de suas histórias ao longo da tese. Quando perguntei sobre anonimato, elas me deram permissão para usar os próprios nomes, dizendo que não teriam nada para esconder. Eu ligava o gravador (um aplicativo do celular), logo a tela do aparelho se apagava e, em poucos minutos, nós nos esquecíamos da sua função. Todas as entrevistas foram transcritas por mim.

Durante o trabalho de observação participante, realizamos o evento das Mulheres Catadoras da Acácia, referente ao 8 de março - Dia Internacional da Mulher -, que aconteceu no dia 23 de março de 2017 na sede da cooperativa. O evento foi um ponto forte da pesquisa de campo, porque me levou a participar do cotidiano da cooperativa e eu passei a ser conhecida e aceita por toda a coletividade. Foi quando senti pela primeira vez que havia uma oportunidade de expandir o trabalho de campo para todos os setores e grupos da cooperativa.

Quivy e Campenhouldt (1998, apud MINAYO, 1998, p. 74) acreditam que os métodos de observação direta servem para captar os comportamentos no momento em que eles se produzem, sem a mediação de um documento, e mostram que, na observação participante, estuda-se uma comunidade participando da vida coletiva dela.

Apresentando diferentes abordagens sobre observação participante, Minayo (1998) recupera esse método em variados trabalhos e traz considerações que foram cruciais para o desenvolvimento do meu trabalho de campo. Para a autora, a observação é uma parte essencial do trabalho de campo na pesquisa qualitativa e é importante para a compreensão da realidade. Ela recupera, entre outras, a formulação de Schwartz & Schwartz (1955, p. 355 apud MINAYO, 1998, p. 135), conforme segue abaixo:

Definimos observação participante como um processo pelo qual mantém-se a presença do observador numa situação social, com a finalidade de realizar uma investigação científica. O observador está em relação face a face com os observados e, ao participar da vida deles, no seu cenário cultural, colhe dados. Assim o observador é parte do contexto sob observação, ao mesmo tempo modificando e sendo modificado por este contexto.

Uma contribuição importante do trabalho de Minayo (1998) foi recuperar as bases metodológicas do clássico Trabalho de Campo de Malinowski, para quem o material da observação participante tem a intenção de realizar uma reconstrução teórica da totalidade funcional por meio de regularidades e do que é típico de um grupo social, separando a

Referências

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