B R I A N N I C H O L S O N
A PREVIDÊNCIA
INJUSTA
Como o fim dos privilégios pode mudar o Brasil
GMCÃO
Agora todo mundo vai conhecer e entender a realidade
da previdência brasileira. Neste
A previdência injusta
—
Como o fim dos privilégios pode mudar o Brasil
o jornalista
inglês Brian Nicholson inova ao mostrar, de maneira
clara e simples, a ligação entre a previdência e a injustiça
social no país. O autor propõe uma Nova Previdência,
igual para todos, com uma breve transição, para reduzir
o fosso entre ricos e miseráveis e resolver o problema
fiscal. Dirigido ao leigo, a cada um de nós, este é um
livro essencial para quem se preocupa com o próprio
futuro e do país.
A PREVIDÊNCIA
INJUSTA
C o m o o f im d o s p r iv il é g io sPODE MUDAR O BRASIL
DEDICAÇÃO
Aos milhões de brasileiros e brasileiras que tiveram a infelicidade de
nascer sem nenhum direito adquirido, numa das sociedades mais
desiguais e injustas do mundo.
Copyright © 2007 by Brian Nicholson i ã edição - julho de 2007
Distribuição Nova Fronteira
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Luiz Fernando Emediato
Diretora Editorial
Fernanda Emediato
Projeto gráfico e diagram ação
Alan Maia
Preparação
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Revisão
Josias A. Andrade
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Nicholson, Brian
A previdência injusta: como o fim dos privilégios pode mudar o Brasil / por Brian Nicholson. - São Paulo: Geração Editorial, 2007.
ISBN 978-8575091562
1. Previdência social - Brasil I. Título.
07-3724 CDD: 368.400981
índices para catálogo sistemático:
1. Brasil: Previdência social 368.400981
2007 Impresso no Brasil
SUMÁRIO
UM PREFÁCIO PESSOAL...111
A VERGONHOSA E TEIMOSA DESIGUALDADE BRASILEIRA CAPÍTULO 1Desigualdade tem explicação...21
CAPÍTULO 2
Soluções míticas, heróicas, mirabolantes e... sensatas...30
CAPÍTULO 3
Na pista do problema... 41
PREVIDÊNCIA NUMA SOCIEDADE INJUSTA
CAPÍTULO 4
Previdência - todo mundo quer... 55
CAPÍTULO 5
CAPÍTULO 6
O que é valor justo? O que é privilégio?... 77
CAPÍTULO 7
Quem são os privilegiados?... 85
CAPÍTULO 8
Será que hà mesmo um déficit?... 165
%
UMA NOVA PREVIDÊNCIA PARA UMA SOCIEDADE MAIS JUSTA
CAPÍTULO 9
Por que nào melhorar a previdência que temos?... 195
CAPÍTULO 10
Princípios éticos para uma Nova Previdência... 201
CAPÍTULO 11
A estrutura da Nova Previdência... 215
CAPÍTULO 12
Transição - como atravessar o Rubicâo?...242
4
DIREITO ADQUIRIDO? OU PRIVILÉGIO ADQUIRIDO?
CAPÍTULO 13
Direito adquirido - uma lei a serviço de quem?...261
CAPÍTULO 14
A PREVIDÊNCIA INJUSTA 9
CAPÍTULO 15
Parece que a sociedade apóia os direitos adquiridos...281
CAPÍTULO 16
Algumas dúvidas finais...291
f=S|
5
CONCLUSÕES
CAPÍTULO 17
Que país deixaremos para os nossos filhos?... 301
ÍNDICE REMISSIVO... 327
ANEXOS
Os Anexos deste livro, mencionados no texto, oferecem mais informações e detalha mento dos cálculos. Encontram-se para download gratuito no site do livro, junto com alguns dos documentos, estudos e relatórios mencionados no texto; notícias e maté rias da imprensa sobre o livro, e espaço para comentários e debate sobre o tema
Por que este livro?
que levaria um inglês meio abrasileirado — mistura de jornalista e econo
mista, que aqui aportou há 30 anos como hippie, de jeans e mochila — a
dedicar mais de um ano para escrever sobre a previdência e seu papel na perpe
tuação da desigualdade? E por que me arriscar em português, essa bela segunda
língua que adquiri com a paciência dos amigos, amigas e balconistas de bote
quim, após a temeridade de aqui chegar sem saber falar nem bom dia?
Como sempre, em perguntas desse naipe, a resposta pode ser breve ou de
morada. Superficialmente, podemos dizer que escrevi este livro porque não sei
fazer outra coisa. Passei a maior parte da minha vida trabalhando como corres
pondente estrangeiro, relatando o Brasil para o mundo, e depois em vários tipos
de jornalismo econômico, principalmente escrevendo para empresários e poten
ciais investidores. Não sei fazer sapato, muito menos vendê-los, nem dirigir
multinacional ou criar gado. Por bem ou por mal, só sei pesquisar, escrever e
explicar. Isso seria a resposta mais simples. Mas a resposta verdadeira é outra.
Logo depois de chegar no Brasil, tive a oportunidade de passar um ano
numa antiga fazenda no interior do Rio. Lugar de rara beleza, caído, mas, ainda
assim, cinematográfico. Uma casa-sede com capela própria, tartarugas centená
rias no jardim interno e samambaias de metro numa varandona enorme, de
frente para magníficos terreiros de pedra cortada à mão por escravos. E tudo
isso na maior decadência econômica, a terra esgotada há muito tempo pelo café.
O que gerara riqueza fabulosa para poucos agora rendia pouco para ninguém,
nem para os donos, nem a meia dúzia de colonos que ali moravam e trabalha
vam, descendentes daqueles que, há três ou quatro gerações, assim fazia sem
opção. E quais reais opções, eu vinha a me perguntar, tinham estes que, um sé
culo depois da abolição, herdaram pouco além da miséria?
12 BRIAN NICHOLSON
Nos anos seguintes, viajei bastante pelo Brasil, ganhando a vida como cor
respondente estrangeiro. Entrevistei favelados na periferia de São Paulo, prosti
tutas mirins no interior do Pará e uma família que morava numa caixa de
papelão no centro do Rio — isto num dia de Natal. O marido cuidava da filhi-
nha no calçadão da Rua Uruguaiana enquanto a mulher — devidamente uni
formizada, é claro — servia mesa numa casarona na Barra da Tijuca. Se Deus
quisesse, voltaria à noite com restos. Ao longo dos anos conversei com políticos,
diplomatas, empresários, torturados e torturadores, economistas, padres, velhi
nhos e milhares de cidadãos anônimos. Aventurei-me na selva amazônica com
o Exército brasileiro, nos alicerces de uma Itaipu ainda em construção e em
fábricas do ABC rodeadas pela Tropa de Choque. Vi brucutus em praça públi
ca e o Congresso fechado. Ouvi panelaço ecoar pela Zona Sul do Rio, exigindo
“Direitas Já”, e senti a dor resignada de um povo inteiro quando morreu Tancre-
do Neves. E neste tempo todo, acreditei fielmente — como, aliás, acreditou a
grande maioria dos meus amigos brasileiros — que a volta da democracia traria
dias melhores. Que a dívida social seria resgatada. Que se iniciaria a terraplana
gem do abismo que sempre separou ricos e pobres.
Pois então... Sabemos que o Brasil avançou muito. Nestas últimas décadas as
instituições democráticas se firmaram, a sociedade civil também. Para as cama
das mais favorecidas, os avanços são inegáveis. É praxe dizer o contrário, que as
coisas eram melhores, mas isso é de fechar os olhos aos enormes avanços na
medicina e nas comunicações, à abertura cultural e à modernização dos produ
tos e serviços. Em muitos sentidos, boa parte do Brasil se juntou ao resto do
mundo. As melhorias vieram não somente no qualitativo, mas também no
quantitativo, pelo maior acesso aos produtos e serviços básicos. Em meados dos
anos 1970, aproximadamente a metade dos domicílios tinha água encanada.
Hoje, são quatro em cada cinco. Um em cada quatro era conectado à rede de
esgoto. Hoje, a proporção dobrou. Luz faltava num terço dos lares. Agora, em
somente um em cada 20. A metade das famílias tinha geladeira e TV; hoje nove
em cada dez. O brasileiro agora vive mais tempo, seus filhos têm menos proba
bilidade de morrer na infância e mais chance de ir à escola.1
Se falarmos somente isso, e pararmos aqui, seria legítimo imaginar que esteja
tudo resolvido, ou pelo menos bem encaminhado. Seria só continuar em frente.
1 Comparações baseadas em dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). “Hoje' quer dizer dados de 2005.
Mas infelizmente, não é bem assim, e por duas razões. O Brasil progrediu, sim,
mas muito, muito menos que podia, ou que precisa. E o progresso que houve
deixou quase incólume o maior dos flagelos nacionais, a desigualdade, tanto que
o país, depois de ostentar as mais altas taxas de crescimento econômico do
mundo durante boa parte do século 20, rompeu o novo milênio tarjado da mais
desigual de todas as grandes nações. Nos últimos anos houve uma pequena
queda na desigualdade, graças em parte ao aumento real do salário mínimo e à
expansão de programas de transferência, como o Bolsa-Família. Trata-se de
uma queda real e bem-vinda, mas que ainda deixa o Brasil com uma estrutura
social inaceitável por qualquer ótica de justiça social.
Este livro, então, é fruto inicial da uma tentativa pessoal de entender o por
quê deste drama perene. Como seria possível o Brasil passar de ditadura militar
para democracia, de hiperinflação para estabilidade, de economia fechada a
aberta, de exportador de café a exportador também de jatos, e a desigualdade
quase não mudar? Em alguns momentos, até piorar?
Digo “fruto inicial” porque este livro não traz todas as respostas, e certamente
não aponta todas as soluções. Trata, primordialmente, da previdência, e do impac
to dessa na desigualdade. Há uma razão muito simples para essa focalização. Se
podemos chamar a desigualdade de o pior problema social do Brasil, então a ver
dade chocante é que o maior gasto social do país pouco ou nada contribui, e em
alguns anos talvez chegue a piorar, seu maior problema social. Parece tão absurda
que se precisa ler duas vezes para ver se não pulou algumas palavras. Mas é assim.
E o mais incrível, talvez, é que os peritos sabem disso. Escrevem teses e fazem
conferências sobre o assunto. Mas o que é de amplo conhecimento dos especialis
tas vive soterrado debaixo de complicados textos acadêmicos e matemática assus
tadora. A mensagem morre na porta da faculdade. O grande público ressente as
aposentadorias astronômicas, principalmente de uma minoria no setor público,
mas simplesmente não sabe da existência generalizada dos subsídios e privilégios,
e seu papel na perpetuação da desigualdade.
Um livro, portanto, que nasceu com a proposta de tratar de vários aspectos
da desigualdade — educação, gastos sociais, estrutura fiscal, discriminação
racial e políticas de desenvolvimento, por exemplo —, acabou mirando a pre
vidência. Não por ser ela a única coisa que o país precisa resolver para atacar
a desigualdade, longe disso. Mas por ser este, o maior gasto social do país, um
iníquo freio ao progresso econômico e social, quando deve ser — e pode ser
14 BRIAN NICHOLSON
Uma pessoa que não existe...
Neste livro, vamos conhecer a figura singela e batalhadora da dona Maria. Ela
não existe. Mas, de certa maneira, todos nós já a conhecemos, já a vimos. A minha
dona Maria mora preferencialmente no Vale do Jequitinhonha, longe de qualquer
cidade, após quilômetros de estrada de chão. Mas há muitas opções, e cada leitor
tem a liberdade de escolher a dona Maria que quiser. Dona Maria é quem aparece
na televisão, sempre que haja uma seca, ou enchente na periferia, ou deslizamento
em área de risco, ou cólera num mangue invadido por palafitas. Dona Maria apa
rece também na fila do INSS, de madrugada, sem dinheiro para comprar uma se
nha para receber o que é garantido de graça pela Constituição. Sempre que a TV
traz um problema destes para dentro de nossas salas, lá estará a dona Maria.
Podemos descrever a dona Maria de muitas maneiras, mas basta uma. Dona
Maria é o Brasil que não deu certo. Ela é uma das dezenas de milhões de cida
dãos que, apesar das palavras bonitas de sete constituições federais, não têm
direito adquirido a nada.
Num determinado momento, pensei em dar vida a dona Maria — identifi
car um caso apropriado, entrevistar, fotografar e colocar no livro. Mas desisti,
porque a dona Maria vive em tantas situações diferentes que nenhum exemplo
seria representativo. E ao escolher uma, talvez daria a idéia de que as outras
seriam menos importantes. Ao destacar uma dona Maria do sertão, arriscamos
esquecer da dona Maria da periferia.
Também, sei que não preciso descrever a pobreza e a desigualdade brasileira.
Quem vive no Brasil já as conhece muito bem. As injustiças sociais não preci
sam de ainda mais descrições comoventes, ou de fotos emotivas em preto-e-
branco. Precisam mesmo é de soluções. Portanto, prefiro que cada leitor,
enquanto ler sobre os privilégios da previdência, pense sobre todas as donas
Marias que conhece, e sobre aqueles rios de dinheiro público que hoje fluem
para uma minoria privilegiada, e como eles podem ser mais bem usados.
Há outra razão para não descrever casos individuais. Enquanto pensarmos
na miséria e na desigualdade em termos de casos específicos, corremos o risco
de imaginar que a solução virá com ajustes pontuais, por exemplo, o aumento da
assistência aqui ou ali. É sempre mais fácil pensar assim, certamente mais con
veniente. Mas não é verdade. No jargão mais moderno, a desigualdade brasilei
ra é estrutural, e sua perpetuação é sistêmica. Estará conosco enquanto ficamos
de olhos fechados à necessidade de mudanças estruturais.
Dito isso, nunca podemos esquecer que qualquer discussão de problemas
sociais será, no final das contas, uma discussão que envolve pessoas de carne e
osso. Falar que existem 50 milhões de pobres no Brasil, vivendo com menos de
meio salário mínimo por pessoa por mês, ou 20 milhões de indigentes com
menos de um quarto de um mínimo, é descrever uma estatística. Outra coisa é
imaginar na prática como seria, na sua própria família, sobreviver com R$ 6,34
ou R$ 3,17 por pessoa por dia, em valores de 2007. É algo que, para a grande
maioria dos leitores deste livro, e também seu autor, seria tão irreal quanto ima
ginar a vida em outro planeta.2
Duas lebres que podem ser levantadas...
Algumas pessoas vão dizer que estrangeiro não deve se meter em assuntos
assim. Se é para criticar, que volte ao seu país de origem, que certamente não
será perfeito. E ponto de vista que respeito, mas com o qual — obviamente
— não posso concordar. Somos todos membros da sociedade em que mora
mos, independentemente do documento que carregamos no bolso. Condená
vel mesmo seria exatamente o contrário — dizer que quem passa a vida num
outro país pode se isentar dos seus problemas sociais, se eximindo de qual
quer responsabilidade para com sua solução. De qualquer maneira, o livro
fala por si. O que importa são os argumentos expostos, e não o lugar de nas
cimento do autor.
Outras pessoas, talvez as mais jovens, podem achar que previdência não é
assunto que lhes interesse — que é algo só para velhinhos, ou quem logo será.
Em outras palavras, algo com o qual se pode preocupar mais tarde. Ledo enga
no. Se os jovens adultos de hoje não lutam para mudanças fundamentais, eles
arriscam passar as próximas três ou quatro décadas pagando impostos e contri
buições para subsidiar privilégios de outras pessoas. E não adianta pensar, que
sua vez virá. É totalmente impossível imaginar que nos meados do século 21,
2 Há várias maneiras de calcular o número de pobres e indigentes no Brasil. Tudo depende das definições. Em geral, vamos usar a seguinte definição: indigência (extrema pobreza) = renda domiciliar per capita de menos de um quarto de um salário mínimo por mês. Pobreza = renda domiciliar per capita de menos da m etade de um salário mínimo por mês. Segundo o Rodar Social 2006 do Ipea, usando dados do IBGE, havia em 2004 no Brasil 52,5 milhões de pobres, sendo 19,8 milhões deles indigentes. Em valores do salário mínimo de 2007, de R$ 380, significa ria uma pessoa viver com menos de R$ 6,34 (pobreza) ou R$ 3,17 (indigência) por dia. O número de pobres e in digentes flutua, conforme o valor do salário mínimo, distribuição de benefícios sociais, etc., e houve nos anos Tecerfres uma queda, graças à ampliação entre outros, do Bolsa-Família e da Aposentadoria Rural. Para nossas finalidades, podemos usar números redondos d e 50 milhões de pobres e 20 milhões de indigentes.
16 BRIAN NICHOLSON
quando a proporção de idosos no Brasil será o triplo de hoje, o país vai poder
bancar privilégios remotamente parecidos com os atuais.3
Ao mesmo tempo, enquanto não redirecionar os gastos sociais para os mais
pobres e para a educação fundamental, os jovens brasileiros de hoje verão seu
país se arrastar durante muitas décadas com a desigualdade acima do aceitável e
o crescimento econômico abaixo do possível. Pensando assim, podemos dizer
que, em muitos sentidos, são os jovens adultos de hoje que seriam os mais inte
ressados em mudar a previdência.
Três ressalvas essenciais...
Este livro não tem a proposta de comparar governos. Vamos falar bem e mal
de coisas feitas em várias administrações, mas não há nenhuma tentativa, por
exemplo, de selecionar dados que coincidem com determinados mandatos presi
denciais. Ao contrário, usamos sempre os dados melhores e mais recentes dispo
níveis, no momento de escrever. Quanto ao INSS e o regime dos servidores
federais, os ministérios da Previdência e do Planejamento oferecem muitos dados,
mas os dados dos Estados e municípios são mais escassos e em alguns momentos
precisamos usar compilações eventuais de terceiros. E quando referimos à “previ
dência brasileira” ou “a previdência nacional”, isso quer dizer todos que recebem
dinheiro público — INSS, servidores civis e militares, juntos. Ao falar especifica
mente sobre o INSS ou o regime dos servidores, chamamos por estes nomes.
Este livro inclui várias comparações internacionais, algumas das quais bas
tante reveladoras. Mas nunca fazemos isso para sugerir que o Brasil deva copiar
ou rejeitar este ou aquele exemplo. É sempre útil ver os erros e acertos dos outros
países, mas todas as sociedades são únicas. O Brasil tem características próprias
de previdência existente, população, distribuição de renda e economia informal
que exigem uma solução própria. Nada de “copiar e colar”. E por extensão, va
mos lembrar que todos os países têm seus problemas. Alguns lidam melhor ou
pior com determinados assuntos, mas nem por isso são “melhores” ou “piores” no
conjunto. Cabe a cada sociedade se estruturar na maneira que reflete os desejos
dos cidadãos. E se porventura, a maioria dos brasileiros — mas a maioria mesmo,
e não somente a maioria dos mais ricos — aprova a atual extrema desigualdade,
3 Em 2050 as pessoas acim a de 60 anos representarão um em c a d a quatro brasileiros, com parado com um em c a d a onze em 2005.
e acha legal os privilégios na previdência, e quer continuar assim, então não há
por que mudar. E este livro perdeu sua razão de ser.
Agora, uma palavra aos peritos. Trata-se de um livro para leigos. Não foi
escrito para economistas com Ph.D. da Universidade de Harvard. Espero que
os peritos o leiam, e o critiquem, mas que não reclamem da ausência daquelas
fórmulas matemáticas assustadoras ou dos gráficos complicados que infestam as
páginas da maioria dos textos sobre o assunto. Uma das razões pela qual o Bra
sil convive há tanto tempo com uma previdência tão injusta é que ela é, por
natureza, um assunto desgraçadamente complicado, um labirinto de leis, regras
e tabelas. Quem não é do ramo acaba refém de declarações incompreensíveis,
erradas, mal-intencionadas ou até desonestas — por exemplo, quando alguém
alega que “não podemos mexer na previdência porque ela sustenta milhões de
pobres”, sem mencionar que ela também paga benefícios superprivilegiados
para uma minoria, e muito bem podia fazer uma coisa sem a outra.
Por não ser dirigido aos peritos, este livro não exige do leitor nenhuma com
petência em matemática ou economia. Quem entende de porcentagens não terá
problema em acompanhar o raciocínio. Em alguns momentos, fazemos alguns
cálculos, por exemplo para mostrar o tamanho dos subsídios, mas as partes mais
detalhadas estão sempre em anexos, disponíveis na internet no site www.previ-
denciainjusta.com.br, ou eventualmente em notas no final do livro. E mesmo
assim, nunca vamos além das quatro operações básicas.
E os muitos agradecimentos
Nessa empreitada, me apoiei no trabalho de técnicos, peritos, ministérios,
instituições e até jornalistas especializados. O crédito está no texto, ou uma nota
no final.
Sem os sites do Ipea, da Unicamp, do Banco Mundial, dos ministérios da
Previdência e da Justiça, e do Banco Central, este livro não teria sido possível.
Uma das glórias da internet é de aproximar o cidadão comum das fontes de
informação e conhecimento.
Várias pessoas tiverem a gentileza e a generosidade de me ajudar de forma
mais imediata. O economista Fábio Giambiagi (Ipea) e José Cechin, ministro
àaÇrevidência em 2002 e secretário-executivo do ministério nos seis anos an
teriores, tiverem a paciência de ler o texto central quando ainda num estágio
18 BRIAN NICHOLSON
“beta”. Seus amplos comentários certamente me salvaram de vários erros técni
cos e conceituais. O professor Rodolfo Hoffmann, da Unicamp, e os advoga
dos Mário Paiva, de Belém, e Plauto Rocha, de São Paulo, fizeram o mesmo
sacrifício com, respectivamente, a primeira seção e aquela que trata do direito
adquirido. E o senador Eduardo Suplicy e o sociólogo Simon Schwartzman,
presidente do Instituto de Pesquisas Sociais e Políticas Públicas, me receberem
para valiosas conversas. Tom Murphy,Tania Celidônio, Jurandir Craveiro, Gus
tavo Barbosa e Ricardo Soares, todos amigos queridos, leram e criticaram várias
partes do texto. E a minha família — esposa Anne, filho Eric e cachorros Bren-
da e Oliberto — me oferece uma vida além do computador. Para todas essas
pessoas, meus profundos agradecimentos.
E as duas ressalvas essenciais — o fato de pessoas terem me ajudado com
essa tarefa, inclusive lendo e comentando o texto, não quer dizer que concor
dam, ou não, com as teses e propostas. Essas — bem como eventuais erros e
omissões — são da inteira responsabilidade do autor.
SEÇÃO 1
A VERGONHOSA
E TEIMOSA
DESIGUALDADE
BRASILEIRA
CAPÍTULO 1
Desigualdade tem explicação
E
ste livro, como todos, tem raízes. Mas estão perdidas no passado, em algum
momento entre a chegada de Pedro Alvares Cabral e agora, quando o
Brasil enfrenta o novo milênio ostentando o título vergonhoso de o mais desi
gual de todos os grandes países. Vamos tocar só de passagem nestes cinco sécu
los, porque embora haja aceitação geral de que o sistema de colonização,
exploração e escravidão deu o pontapé para a desigualdade, este não é um livro
de história. Também vamos tocar só de leve no impacto das várias políticas
econômicas aplicadas no século 20, e agora no início do século 21, embora não
reste dúvida que algumas aumentaram a injustiça social. Nosso desafio é menos de
estudar as origens da desigualdade, e muito mais de entender por que ela con
tinua tão firme e forte, e de pensar em como podemos reduzi-la.
Nesta primeira seção, veremos as enormes distorções nos gastos sociais no
Brasil. Em vez de centrar fogo nos mais pobres e na redução da desigualdade,
estes gastos acabam favorecendo principalmente a classe média e os mais ricos.
E vamos ver que o sistema previdenciário, que é de longe o maior dos gastos
sociais, de fato acaba reforçando a injustiça.
A partir dessa constatação esdrúxula, na Seção 2 descascamos a previdên
cia, área por área, para entender como seria possível um absurdo desses. Vere
mos que a previdência brasileira tem seu lado bom, beneficiando milhões de
pobres. Mas veremos também que a maior parte do bolo vai para uma minoria
que desfruta de mordomias que superam de longe os benefícios pagos nos pa
íses mais ricos do mundo. E lembrando que apenas criticar é fácil, na Seção 3
detalhamos uma Nova Previdência, que acaba já com os privilégios e dota o
país de um sistema enraizado na justiça social — uma proposta que vai me
educação fundamental e a saúde popular. Uma vez que os privilégios são em
geral protegidos pelo direito adquirido, na Seção 4 discutimos as opções para
mudança constitucional. E finalmente, na Seção 5, pensamos sobre o país nas
próximas décadas, o Brasil de nossos filhos, com e sem um tratamento de
choque na desigualdade.
Este livro não tem ideologia. Não é da esquerda, nem da direita. Mas ele se
baseia em alguns fundamentos da democracia. É importante enfatizar isso, dado
que uma altíssima autoridade judicial dizia que os privilégios da previdência só
poderiam mudar com “uma revolução”.
O autor deste livro entende, primeiro, que uma sociedade verdadeiramen
te livre será organizada sempre para o bem e o benefício da maioria — o que
não quer dizer que as minorias serão sacrificadas. Numa sociedade livre, as
pessoas decentes serão sempre abertas aos interesses e às necessidades das
outras. Afinal, todos nós somos, ou seremos em algum momento, parte de
uma minoria.
Segundo, entendo que os cidadãos numa sociedade livre têm sempre o
direito de decidir quais são seus reais interesses. Numa sociedade livre ne
nhuma pessoa, nenhuma minoria e nenhuma instituição fala mais alto que a
vontade da maioria. E na expressão dessa vontade, cada cidadão tem voz e
valor iguais.
O terceiro princípio, que realmente decorre dos dois primeiros, é que numa
sociedade livre, dinheiro público tem dono. Pertence à sociedade. Não pertence
ao governo, nem aos ricos, nem aos pobres, mas a todas as pessoas, igualmente.
E como dinheiro público pertence ao povo, este tem pleno direito de decidir o
que fazer com aquele que é seu. Também tem o direito, futuramente, de mudar
de idéia. E finalmente, uma conseqüência bastante importante — o fato de uma
pessoa contribuir mais aos cofres públicos, e outra pessoa menos, não dá àquela
o direito de influenciar mais no seu uso.
Além destes três princípios, este livro se apóia numa suposição, a de que a
grande maioria dos brasileiros quer viver numa sociedade mais justa. Não va
mos propor nenhuma utopia socialista, onde todos ganham salário igual, nem
vamos gastar tempo debatendo em exatamente qual momento a desigualdade
deixa de ser inaceitável, para se tornar uma característica normal de uma socie
dade livre e capitalista, na qual todos têm habilidades e objetivos diferentes.
A PREVIDÊNCIA INJUSTA 23
Mas vamos entender que, do jeito que está hoje, a desigualdade brasileira não
reflete a vontade da grande maioria. Nem de longe.
Essas observações iniciais são necessárias por uma razão simples. Com qua
se dois séculos de independência, e mais de cem anos de república, e mais de
duas décadas de democracia plena, o Brasil ainda ostenta uma das piores distri
buições de renda do mundo. Se, há duzentos anos, este era o país da casa-gran
de e senzala, é hoje o país do BMW blindado e do menino de rua. É isso que o
povo quer? É essa a vontade da maioria? E supondo que não seja, estamos for
çados a perguntar — por que, então, continua assim? O que aconteceu? Ou
talvez devemos perguntar: o que não aconteceu?
O pior do mundo? O segundo pior?
Há trinta anos, o economista brasileiro Edmar Bacha cunhou a imagem
do Brasil como “Belíndia”, um país imaginário composto de uma minoria que
vivia com padrões europeus, por exemplo, a Bélgica, e uma grande maioria
que vivia (ou existia) com padrões dignos dos países mais pobres do mundo,
por exemplo, a índia. Desde então, duas coisas continuam — a excelência da
imagem, e também sua validade, porque o Brasil continua tão desigual quanto
era. Se não piorou.
O que queremos dizer, ao descrever um país como “desigual”? Afinal, em
todos os lugares do mundo existe gente que ganha mais, outras que ganham
menos. Não vamos gastar horas debatendo se a desigualdade é inerente à con
dição humana, mas simplesmente reconhecer que hoje, na etapa atual da evolu
ção da nossa espécie, a desigualdade existe em todas as sociedades. A questão é
de grau — alguns países são muito desiguais, outras bem menos.
Uma maneira bastante fácil de medir a desigualdade dentro de um país é
comparar a renda média das pessoas mais ricas com aquela das mais pobres, es
quecendo a turma do meio. O mais simples de tudo seria comparar dois grupos
iguais, por exemplo, os 10% mais ricos com os 10% mais pobres. Mas os peritos
preferem usar um grupo maior de pobres, para evitar imprecisões que possam
acontecer na estimativa das rendas muito pequenas. Portanto, vamos comparar a
renda média dos 10% mais ricos com a renda média dos 40% mais pobres. Há
muitas maneiras bem mais sofisticadas de medir a desigualdade, mas para nossas
finalidades basta uma ferramenta simples. Para o Brasil, vamos usar os dados mais
recentes do IBGE, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, e para o resto
do mundo, as informações mais recentes do Banco Mundial.4
Primeiro, uma ressalva — alguns peritos acham que os dados estariam mag-
nificando um pouco a desigualdade brasileira, em comparação com alguns ou
tros países. Nada de conspiração, é simplesmente uma questão de diferenças
técnicas no processo estatístico. Pode ser que, mudando a metodologia do
IBGE, o Brasil subisse alguns degraus no ranking mundial. Mas nunca ao pon
to de imaginar que o país não é muito desigual.
Pelos dados do IBGE, então, os 10% de brasileiros mais ricos embolsam 45%
da renda no país, enquanto os 40% mais pobres ficam com somente 9%. Isso
quer dizer que os ricos ganham em média 20 vezes mais que os pobres. Tem
baixado um pouco nos últimos anos, mas continua sendo uma das piores taxas
do mundo. Vamos ver como ela se compara com alguns outros países:
20 VEZES-BRASIL
0 A M É R IC A LATIN A 0 Á SIA 0 Á F R IC A 0 PA ÍSES D E S E N V O L V ID O S
20 vezes COLÔMBIA 10 vezes CHINA 18 vezes ÁFRICA DO SUL 7 vezes ESTADOS UNIDOS 17 vezes MÉXICO ó vezes INDONÉSIA 13 vezes NIGÉRIA 7 vezes PORTUGAL 15 vezes ARGENTINA 6 vezes VIETNÃ 7 vezes REINO UNIDO
5 vezes ÍNDIA 6 vezes AUSTRÁUA 5 vezes RÚSSIA ó vezes ITÁLIA 4 vezes CORÉIA DO SUL 5 vezes ESPANHA
5 vezes FRANÇA 4 vezes ALEMANHA 3 vezes JAPÃO
4 Aqui, já estou fazendo uma barbeiragem, usando fontes e anos diferentes. Os dados do Brasil vêm da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios. Pnad - IBGE, via IpeaData, de 2004, enquanto os internacionais são calculados a partir da Tabela 2.7 do World Development Indlcators 2005, disponível no site do Banco Mundial, onde os dados são de 2000 a 2002. Seria possível usar dados do Brasil da mesma época, mas se fizéssemos isso, omitiríamos a queda mais recente na desigualdade brasileira. A tabela mostra a média per capita do rendimen to domiciliar bruto - incluindo transferências como aposentadorias, antes de imposto. Existem várias fórmulas matemáticas para medir a desigualdade. Qualquer que seja o método escolhido - o mais comum é o coeficien te de Gini - ele pode ser usado para comparar salários brutos, ou salários líquidos depois de impostos e outras deduções. Podemos incluir ou excluir rendimentos de outras fontes, por exemplo, juros, aluguéis e benefícios d a previdência. Podemos medir renda ou consumo. E só para complicar, podemos comparar indivíduos, ou famílias, ou a renda média por pessoa em cad a família, ou em cad a domicílio (que é a base d a tabela). C a d a m étodo tem suas vantagens e limitações.
A PREVIDÊNCIA INJUSTA 25
São excluídos da lista países como Botsuana, Namíbia, Haiti, Lesoto, Serra
Leoa e Paraguai, que juntos com o Brasil são as tradicionais lanternas em tabe
las de desigualdade. Não se trata de nenhuma tentativa de maquiar a lista. E
que, com todo respeito àqueles países, eu diria não são — ou não devem ser —
boas comparações para o Brasil.
Agora, o que podemos dizer sobre a lista?
• Primeiro, que a desigualdade é visivelmente maior na América Latina e na
África que no restante do mundo. E o Brasil aparece na mesma faixa da
África do Sul, país que sofreu com décadas de apartheid.
• Segundo, que não há muita relação entre o nível econômico de um país e seu grau
de desigualdade. Os países mais ricos são, em geral, mais iguais, mas muitos paí
ses pobres, principalmente na Ásia, também têm baixa desigualdade. Os Estados
Unidos são bem mais desiguais que a índia, mas em média o americano é 13
vezes mais rico, mesmo ajustando pela diferença nos preços. O brasileiro médio
é três vezes mais rico que o vietnamita, mas o brasileiro pobre ganha menos que
o do Vietnã. E o Banco Mundial, ao comparar o Brasil com outros países que
têm o mesmo nível de PIB per capita, estimou que a alta desigualdade brasileira
cria 29 milhões de pobres adicionais. De fato, Fernando Henrique Cardoso tinha
razão ao martelar sempre que “o Brasil não é um país pobre, é um país injusto”.5
• Terceiro, fica óbvio que não há relação entre tamanho de população e igualda
de. Indonésia, índia e China são todos maiores que o Brasil, e mais pobres, mas
são sociedades mais iguais. É verdade que a desigualdade na China vem au
mentando, com a industrialização, mas continua bem abaixo da do Brasil.
Por que o Brasil continua campeão invicto, a mais desigual das grandes na
ções? Vamos ver, rapidamente, de onde vem essa desigualdade. E depois, vamos
ver possíveis soluções.
De fato, o Brasil nunca foi nenhum paraíso de justiça social — pelo menos
depois da chegada de Cabral. Passou de colônia escravista para monarquia es
cravista, com uma pequena quantidade de ricos e profissionais, e com muita
gente livre, mas basicamente indigente. Disse a economista Maria Cristina
5 A com paração entre os 10% mais pobres no Brasil e Vietnã vem do relatório do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) 2005, pág. 6. A estimativa do número adicional de pobres, do relatório
Cacciamali, da USP: “O passado colonial e escravocrata é o ponto de partida da
concentrada distribuição de riqueza e da renda no Brasil.”6
A imigração européia e asiática acelerou a formação de um pequeno núcleo
de classe média urbana, que cresceu com a industrialização, mas foi um proces
so que em grande parte deixou de lado os escravos libertados e seus descenden
tes, e também aquela massa enorme de indigentes. Se pensarmos na imagem de
Belíndia, podemos dizer que a parte “Bélgica” cresceu no século 20 como uma
pequena ilha dentro de um imenso mar de “índia”.
Mas outros países grandes também eram colônias, e tiveram escravidão,
mais notavelmente os Estados Unidos. O Brasil conseguiu sua independência
depois dos EUA, é verdade, mas não muito depois. E mesmo assim, a inde
pendência não mudou fundamentalmente a situação da grande maioria dos
brasileiros. Por que será que o Brasil não seguiu um caminho parecido de desen
volvimento, uma vez livre das argolas de ferro de seu algoz colonial?
Economistas e historiadores oferecem dezenas de explicações para trajetó
rias diferentes de desenvolvimento em países diferentes, incluindo recursos
naturais, posição geográfica, clima, educação, valores religiosos e culturais e
abertura ao comércio. Às vezes a discussão ganha fortes conotações ideológi
cas, e como é sempre o caso, os peritos brigam muito entre si. Seria uma le
viandade tentar resumir um enorme debate em poucas linhas. Mas ao pensar
especificamente no Brasil e nos Estados Unidos, parece evidente que um fator
fundamental foi a natureza da colonização dos dois países. Nos Estados Uni
dos, além das grandes atividades escravistas, surgiu em muitas regiões uma
economia local viável enquanto o Brasil continuou essencialmente como ex
portador de matéria-prima durante muito tempo depois da independência.
Talvez mais importante ainda: nos EUA houve uma sociedade com forte viés
democrático, com a criação de instituições robustas e a importação acima de
tudo de idéias modernas da Europa. No Brasil colonial, as estruturas e valores
socais refletiam o lado atrasado do Velho Mundo. Um exemplo só, mas bas
tante simbólico: a primeira gráfica no que seriam os Estados Unidos foi ins
talada em 1638, e antes de 1800 surgiram mais de 130 jornais, inclusive com
nomes sugestivos tais como Centinel of Freedom e Guardian of Liberty. No
Brasil, a primeira gráfica chegou em 1808, com a Corte, basicamente para
6 “Distribuição de renda no Brasil: persistência do elevado grau de desigualdade', publicado no livro Manu
al de Economia, de Pinho & Vasconcellos, 2002. Cacciamali é livre-docente e professora titular d a Universidade
A PREVIDÊNCIA INJUSTA 27
imprimir decretos, e o primeiro jornal, A Gazeta do Rio de Janeiro, saiu naque
le ano com censura prévia.
Mas, como vimos na tabela, o problema da desigualdade não é somente do
Brasil. A América Latina é conhecida, entre os peritos, por suas disparidades
sociais. Segundo um relatório da Comissão Econômica para América Latina e
Caribe (Cepal) no início de 2005, “a região se distingue como a mais atrasada
do mundo em termos de eqüidade ao constatar o contraste marcado entre a
participação na renda dos 5% mais ricos e dos 5% mais pobres”. Ou seja, o Bra
sil pode ser destaque, mas certamente não é o único com culpa no cartório.
Enquanto as trajetórias do Brasil e seus vizinhos nos últimos 500 anos
certamente não eram idênticas, os peritos enxergam traços em comum. Os eco
nomistas Stanley Engerman e Kenneth Sokoloff, especialistas no desenvolvi
mento econômico das Américas, afirmam: “Nas sociedades que nasceram com
extrema desigualdade, as elites tinham a vontade e a capacidade de estabelecer
um arcabouço jurídico básico que lhes assegurava uma fatia maior do poder
político e de usar essa influência para estabelecer regras, leis e outras políticas
governamentais que lhes davam maior acesso às oportunidades econômicas que
o resto da população, dessa maneira contribuindo para com a persistência do
alto grau de desigualdade”. Trata-se de uma análise geral da região, mas que se
encaixa como uma luva para o Brasil.7
Temos, portanto, um país saído do escravidão com a elite bem entrincheira
da, uma pequena classe média em formação e um mar de pobres simplesmente
na espera. Não houve nenhuma mobilização significativa para construir uma
sociedade mais igualitária. Houvesse, no fim da escravidão ou nas primeiras
décadas do século 20, uma reforma agrária para valer, não resta dúvida que o
Brasil de hoje seria outro. Mas não houve, o momento passou e não adianta, em
pleno século 21, tentar voltar o relógio. O que aconteceu foi a expansão da eco
nomia moderna, ora mais rápida, ora mais lenta, mas sempre como uma ilha no
meio de um oceano de atraso. Algumas pessoas conseguiram pular da “índia”
para a “Bélgica”, mas a maior parcela da velha economia simplesmente marcou
passo. E à medida que cresceu a parte mais moderna da economia — a “Bélgi
ca”— os grandes serviços públicos de educação, saúde e previdência foram evo
luindo juntos, mas quase sempre reservados principalmente para ela.
7 No texto “Factor Endowments, Inequality, and Paths of Development Among N ew World Ecomomies" (Stanley Engerman e Kenneth Sokoloff - NBER 9259, de 2002).
Voltamos às palavras de Maria Cristina Cacciamali, da USP: “A massificação
da escola que se inicia após os anos 40 não atingiu a maior parte da população,
mas principalmente as camadas médias dos centros urbanos mais importantes.
Até os dias de hoje, o Brasil não dispõe de um sistema público de boa qualidade
de ensino fundamental e de segundo grau”.
Chegamos, então, ao “milagre econômico” do governo militar, época em que o
então general-presidente Emílio Garrastazu Médici dizia que “o país vai bem,
o povo vai mal”. Vários indicadores sugerem que a desigualdade — que já era
ruim — aumentou nas décadas de 1960 e 70. Peritos oferecem diferentes razões
para isso, e mais uma vez não vamos tomar lado, mas simplesmente ver algumas
das explicações mais comuns. Dizem alguns economistas que a rápida indus
trialização fez explodir a demanda para profissionais e trabalhadores mais capa
citados, o que teria puxado para cima seus salários. Também a economia estava
crescendo exatamente nos setores que pagavam melhor — as montadoras do
ABC seriam um exemplo típico — e foram criados milhões de empregos bons.
Dizem outros que o governo militar favoreceu a classe média e quem vivia da
especulação financeira, enquanto reprimiu os sindicatos. Assim os mais ricos
fizeram festa, enquanto os trabalhadores mais humildes tiveram de aceitar ajus
tes menores. De qualquer maneira, o país cresceu, e a desigualdade também.
Depois do “milagre”, chegamos aos anos 1980 e 90, quando o Brasil passou
boa parte do tempo atolado em sucessivas crises de inflação e dívida. O pouco
crescimento que houve beneficiou muito mais a classe média e os ricos, tanto
que as famílias mais pobres — principalmente nas cidades — experimentaram
crescimento de renda abaixo da média. Desde o Plano Real a desigualdade vem
cedendo um pouco, graças em parte à estabilidade da economia e os aumentos
reais no salário mínimo — que impactam os benefícios mínimos da previdência
— e também à expansão dos programas de transferência de renda, com desta
que para o Bolsa-Família. Um recuo bem-vindo, sem dúvida, mas nada que
deixe o Brasil num patamar aceitável. Nem perto. E certamente, nada que possa
nos levar a pensar que a questão da desigualdade está em vias de ser resolvida.
Ao longo dessas décadas, e mesmo em momentos de aumento da desigual
dade, houve substancial migração da “índia” para a “Bélgica”. Não é exatamente
igual à migração do campo para a cidade, porque muitos pobres simplesmente
trocaram a miséria rural pela miséria urbana, sem entrar na “Bélgica”. Mas
quem não conhece uma família que saiu do Nordeste e conseguiu se estabelecer
numa das grandes cidades? Talvez a primeira geração trabalhou na construção,
A PREVIDÊNCIA INJUSTA 29
ou em fábrica, mas a segunda fez faculdade. O Brasil tem milhares de histórias
assim, de gente batalhadora que deu certo, tanto que muitas pessoas ainda acre
ditam que aquela ilha “Bélgica” pode continuar a crescer até absorver o restante
daquele mar de “índia”.
É tentador pensar que este processo e a expansão dos benefícios assistenciais
seriam suficientes para resolver as grandes desigualdades, sem grandes sacrifí
cios. Podemos até ir por este caminho, sem maiores esforços — desde que acei
temos esperar mais um século.
Soluções míticas, heróicas,
mirabolantes e... sensatas
D
esde que “economia” se conhece por ciência, há mais ou menos 300 anos,
duas das suas maiores áreas de interesse têm sido crescimento e desigual
dade. Crescimento é relativamente fácil. Todo mundo gosta do crescimento
econômico, pelo menos enquanto não traz inflação, danos ambientais, perda de
lazer, destruição de valores tradicionais ou vários outros inconvenientes, e há
uma presunção geral de que “quanto maior, melhor”. Pode haver briga de foice
em torno das políticas mais adequadas para se conseguir tal crescimento, mas há
pouco debate quanto à sua desejabilidade em si. Desigualdade é bem mais espi
nhosa. Podemos dizer que há concordância nos extremos. Salvo talvez os eco
nomistas da extrema esquerda e aqueles que moram em comunas, poucos
defendem igualdade total de renda, e mais difícil ainda seria achar alguém que
apóie (pelo menos em público) a desigualdade brasileira. Mas entre a utopia
impraticável e a realidade inaceitável, qual seria o nível “correto” de igualdade?
A resposta simples é que não há nível “ideal” ou “correto”, e cada sociedade
tem percepções diferentes do que seria “justo”. Tanto é assim que, numa pesqui
sa de opinião nos países da América Latina em 2001, a ONG “Latinobaróme-
tro” detectou bem menos aceitação da desigualdade na Argentina que no Brasil,
embora — como vimos — a Argentina seja menos desigual.
Vamos resolver essa questão de maneira simples e pragmática — vamos
ignorá-la. Vamos entender que a grande maioria dos brasileiros considera a
desigualdade alta demais, e queira reduzi-la. Mas como? Passaremos rapida
mente por algumas das sugestões mais freqüentes de como promover maior
A PREVIDÊNCIA INJUSTA 31
igualdade e, como este livro não é um manual de economia, os comentários
são bastante resumidos.
Primeiro, as soluções míticas, heróicas e mirabolantes que às vezes se escuta:
• C re s c im e n to econôm ico
— Este é o maior de todos os mitos. E aquela
lengalenga do bolo que precisa crescer, para depois ser repartido. E claro que
queremos o crescimento econômico, e que isso é desejável para o país. E é
claro que o crescimento poderia, sim, reduzir a desigualdade. Mas também
poderia aumentá-la. Aliás, acabamos de ver que a desigualdade piorou no
Brasil em períodos de alto crescimento. E sempre possível imaginar condi
ções nas quais o crescimento pode reduzir a desigualdade. Por exemplo, se
vier acompanhado de políticas proativas de distribuição, quem sabe através de
impostos. Mas se realmente houvesse vontade política de redistribuir renda,
tais políticas podem ser adotadas agora, com o bolo que temos. Para que es
perar? De fato, aquela história do bolo soa, muitas vezes, como tentativa cíni
ca de adiar qualquer mudança, ou de sugerir que uma sociedade pode fazer
uma redistribuição de renda sem nada mudar. Talvez o pior — e algo que os
defensores do bolo não comentam — é que alta desigualdade pode até difi
cultar o crescimento econômico. Voltaremos ao assunto no capítulo final.
• R e je i t a r a g lo b a liz a ç ã o
— Há quem culpe a globalização pela desigual
dade brasileira. De um lado isso seria ridículo, pois o país sempre foi bastan
te desigual, muito antes da palavra “globalização” se tornar a nova bête noire
dos radicais nos bares da Vila Madalena, em São Paulo. Do outro, há indica
ções de que, sim, a globalização estaria aumentando a desigualdade interna
em alguns países. Com a globalização, os setores mais competitivos nos paí
ses em desenvolvimento têm oportunidades inéditas de se relacionar com o
Primeiro Mundo. O grande exemplo disso é a terceirização para a índia, por
exemplo, processando cartões de crédito dos Estados Unidos e da Europa,
mas também há empresas brasileiras que se tornaram fornecedoras mun
diais. De qualquer maneira, uma vez que o Brasil não pode mudar os rumos
do planeta, quais são suas reais opções? Seria melhor o país se fechar de novo,
como nos anos 1980, quando a gente ia a Disney e voltava com computador
escondido na mala? Ou seria melhor tirar proveito da globalização e ao mes
mo tempo modernizar a economia e a sociedade para resistir aos lados nega
tivos do processo? E sendo o segundo, tão obviamente o caminho melhor, a
lógica nos diz que a globalização seria mais uma razão para o Brasil atacar,
urgentemente, a desigualdade e as grandes lacunas no ensino fundamental.
Enfrentar o mundo globalizado do século 21 com a desigualdade da época
colonial é realmente brigar com uma das mãos amarrada nas costas.
•
D e c l a r a r m o r a t ó r ia n a d ív id a e x t e r n a— Que pode, pode. Mas para
quê? E com qual custo depois? A dívida externa agora tem custo relativa
mente baixo, graças à queda na taxa de risco Brasil. Então, moratória para
negociar termos melhores, no estilo da Argentina, não faria sentido.
• B a ix a r os ju ro s
— Legal, seria excelente para a economia. Mas tem que ser
de verdade, nada de artifícios. Não adianta legislar uma queda nos juros,
como os governos militares expurgaram o chuchu da inflação. Temos que
resolver as causas dos juros altos, e não simplesmente culpar o termômetro.
Uma boa reforma fiscal seria uma contribuição enorme. Se baixar os juros,
vai sobrar dinheiro público. Mas quem garante que este dinheiro adicional
seria distribuído de forma mais justa que os gastos atuais? E se é para distri
buir de forma mais justa o dinheiro economizado, por que não começar ago
ra, com os gastos atuais?
• R e n u n c ia r o n e o lib e ra lis m o
— Também pode. Mas primeiro, teria que
instituir o neoliberalismo, definido pelo dicionário Houaiss como doutrina
que “defende a absoluta liberdade de mercado e uma restrição à intervenção
estatal sobre a economia, só devendo esta ocorrer em setores imprescindíveis
e ainda assim num grau mínimo”. E isso que temos no Brasil? Quem acha
que sim, podia muito bem pensar nas relações trabalhistas, ainda amarradas
numa camisa-de-força copiada da Itália na época de Mussolini, ou na vasta
influência do governo no setor energético...
• R e n u n c ia r o c a p ita lis m o
— Podemos tentar reduzir a desigualdade à
força, com algum tipo de ditadura que fixe preços e salários, mas as experi
ências deste naipe já feitas no mundo não se mostraram exatamente exitosas.
Algumas sociedades socialistas podem até ser melhores que a podridão que
existia antes — Cuba, talvez —, mas isso não altera a falta de liberdade e
prosperidade que tem sido marca registrada dos regimes comunistas. A de
sigualdade pode ser menor, sem dúvida, mas a que preço?
A PREVIDÊNCIA INJUSTA 33
De fato, as soluções míticas, heróicas e mirabolantes, ou são irrelevantes à
desigualdade, ou são potencialmente danosas à economia e/ou ruins para os
pobres e, portanto, aptas a piorar em vez de melhorar a distribuição de renda.
É difícil não chegar à conclusão de que são sugeridas às vezes dentro de uma
visão ideológica, e não como propostas pragmáticas para melhorar a vida dos
eternos excluídos. Afinal, podemos construir em volta do Brasil uma mura
lha igual à da China, estatizar os telefones e proibir toda e qualquer cobran
ça de juros, e nada disso iria alterar o fato de que a previdência paga benefícios
altamente privilegiados para uma minoria. Felizmente, caso a sociedade
queira realmente reduzir a desigualdade, temos opções mais sensatas.
Na busca de soluções viáveis, nosso essencial ponto de partida é entender e
aceitar que, numa sociedade livre, pessoas de habilidades e índoles diferentes
terão rendas diferentes, devido em boa parte às forças da oferta e da procura, o
chamado “livre mercado”. Essa desigualdade gerada pelo livre mercado inclui
não somente os salários, mas todas as fontes de dinheiro que uma pessoa possa
ter — aluguéis, juros, lucros, etc., mas excluindo o dinheiro que vem do governo
na forma de benefícios assistenciais.
Caso uma sociedade entenda que a desigualdade criada pelas diferenças pes
soais e pelo mercado é alta demais — o que normalmente é o caso —, ela trata
de reduzi-la. Para tanto, é necessário pensar em dois horizontes, o imediato e o de
longo prazo, para os quais existem estratégias e armas diferentes:
• H o j e
— para reduzir a desigualdade agora, a estratégia é transferir renda,
algo que acontece em todas as sociedades modernas. As principais armas são
os impostos e os gastos sociais. No Brasil, o Bolsa-Famüia é o exemplo mais
comentado. Mas devemos examinar todos os gastos do dinheiro público.
• A m a n h ã
— para construir um país mais igualitário, onde a desigualdade
que vem das diferenças pessoais e do mercado é menor, a estratégia é assegu
rar que nossos filhos — todos eles — possam fazer jus a salários melhores.
Nossas armas principais são educação, saúde e infra-estrutura. E dessas, a
mais importante para o Brasil, hoje, é a educação fundamental.8
8 Trata-se obviamente de uma simplificação, separar tais coisas em "imediato' e “longo prazo'. Saúde tem a ver com desigualdade atual e estrutural, infra-estrutura física também. E programas de transferência de renda, quando bem desenhados e implementados, podem ter impactos imediatos e estruturais. Também impostos sobre heranças e grandes fortunas podem impactar os dois horizontes.
As propostas feitas neste livro trabalham nos dois horizontes, o imediato e o de
longo prazo, porque ao eliminar já os privilégios da previdência, vamos provocar
dois impactos positivos. Vamos reduzir a desigualdade atual, distribuindo dinheiro
público de forma mais justa, e vamos liberar bilhões de reais para reforçar aqueles
programas que vão mudar o Brasil de amanhã. Agora, o fato de este livro focar
mais a previdência não quer dizer, de maneira alguma, que compensar a desigual
dade atual é mais importante que reduzir as injustiças estruturais. Ambos são es
senciais. Mas enquanto os problemas da educação brasileira são relativamente bem
difundidos, as grandes iniqüidades da previdência são quase desconhecidas.9
Ultraje social...
Como o Brasil lida com sua grande desigualdade? O que a sociedade faz
atualmente, ou poderia fazer, para aliviar a desigualdade excessiva, criada pelas
diferenças pessoais e pelo mercado? Os instrumentos clássicos são: impostos e
programas sociais. Em termos simples, uma sociedade cobra impostos de si
mesma para pagar as coisas que ela decide fazer de forma coletiva — estradas,
hospitais, educação, defesa, assistência social e assim vai. Quase como num con
domínio gigante. Um erro comum é pensar que podemos impactar a desigual
dade somente pelo lado dos gastos, com programas sociais. De fato os dois lados
do processo são importantes. Nos impostos, o que importa não é somente a
quantidade total, mas também as maneiras como arrecadamos o dinheiro ne
cessário. Quem paga e quanto? Nosso ponto de partida, portanto, será ver o
impacto naquela desigualdade que vem do mercado, de tudo que a sociedade faz
de forma coletiva, somando impostos e gastos sociais. E é aqui que as coisas
começam a ficar anuviadas. O Ministério da Fazenda oferece uma comparação
fascinante entre o impacto dos impostos e benefícios na Europa e no Brasil. Na
Europa, em média, a combinação dos impostos e benefícios reduz a desigualda
de em 37%. Em países como Bélgica, Dinamarca e Finlândia, a queda é quase
pela metade. No Brasil, a redução é de somente 11%.10
9 Para quem quiser ler mais sobre os problemas da educação, recomendo os vãrios trabalhos de Simon Schwartzman, com eçando por Os desafios d a educação no Brasil, org. Colin Brock (Nova Fronteira, 2005) e o site dele - http://www.schwartzman.org.br/simon/. Também A ignorância custa um mundo por Gustavo loschoe (Ed
Francis, 2004). '
10 Veja Orçamento Social do Governo Federai 2001-2004, de abril de 2005, disponível no site do ministério. Os dados europeus vêm do Euromod, um projeto que reúne universidades d e 15 países para acom panhar os im pac tos dos impostos e benefícios sociais no continente, enfatizando principalmente a redução d a pobreza
-A PREVIDÊNCI-A INJUST-A 35
Temos, então, nossa
primeira constatação preocupante',
a soma das ações que a
sociedade brasileira faz para reduzir sua desigualdade tem muito menos impac
to que as ações dos países mais ricos do mundo. Em palavras simples: o Brasil,
que é muito mais desigual, faz menos esforço para melhorar.
Caso alguém se assuste com essa
nossa, primeira constatação preocupante^
é melhor
que se prepare, porque tal desempenho tão ruim não surge por ocaso. Ele acontece
por uma razão bastante lógica. Os dois lados do processo, impostos e gastos, embu
tem fortes elementos de injustiça. Vamos começar com os impostos. Todo mundo
sabe que o rico paga mais imposto que o pobre, está certo? Bem, talvez nem sempre,
pelo menos em termos proporcionais. Segundo os peritos, é possível que o Brasil
arranque proporcionalmente
mais
imposto dos pobres que dos ricos.
Supondo que todo mundo pague direitinho seus impostos, sem sonegação,
então não há dúvida de que o rico paga mais Imposto de Renda. Porém, precisa
mos pensar no imposto total, contando não somente o IR — chamado de impos
to direto — mas também na garfada que todos nós levamos ao comprar alguma
coisa — os chamados impostos indiretos. Aí é que o negócio complica. Em mé
dia, nos países ricos do mundo, os impostos diretos e indiretos têm pesos mais ou
menos iguais. Para cada euro arrecadado pelos impostos diretos, outro vem pelos
impostos indiretos. Mas no Brasil, os impostos indiretos têm peso dobrado — ge
ram R$ 2 para cada RS 1 de imposto direto. Do ponto de vista da justiça social,
isso é péssimo. Há muito tempo os economistas nos alertam que os impostos in
diretos pesam relativamente mais no bolso dos pobres, porque o pobre gasta uma
proporção maior do seu dinheiro com compras. Não é fenômeno só do Brasil,
acontece no mundo inteiro, mas, uma vez que o Brasil arrecada proporcionalmen
te mais com impostos indiretos, a conseqüência é que o Brasil joga relativamente
mais peso de tributos indiretos nos ombros dos pobres.11
Alguns exemplos da incidência dos impostos indiretos — um estudo do
Ipea, publicado em 2000, indica que os alimentos da cesta básica embutem
impostos de 13,5%, isso nas principais regiões metropolitanas do país. Mas se
alguém se atrever a comprar, além de comida, produtos de limpeza, ou material
escolar, que se cuide. Segundo a Associação Comercial de São Paulo, o preço
http://www.iser.essex.ac.uk/msu/emod/. Os dados do Brasil vêm da Pesquisa Nacional por Amostra d e Domicílios, Pnad - IBGE, de 2003. As comparações são feitas em termos do Gini, e a queda média nos 15 países da "antiga' E.U. é de 0,51 para 0,32, enquanto no Brasil a queda é de 0,63 para 0,56. As aposentadorias e outros benefícios representam 0,05 d a queda brasileira, e impostos diretos somente 0,02. Na Europa, a queda devida aos impostos diretos é de aproximadamente 0,04. O estudo nâo leva em conta o impacto dos impostos indiretos e, portanto, tende a mascarar um pouco o péssimo desempenho brasileiro na redução d a desigualdade.
final do sabão em barra esconde 40,5% de impostos, um lápis ou caderno uni
versitário, 36,2%; um apontador ou uma borracha, 44,4%. E se ligar a luz em
casa, para o filhinho estudar à noite, lá se vão mais 45,8%.12
Conseqüência — o sistema fiscal no Brasil contribui com muito pouco para
reduzir a desigualdade, e talvez até faça piorar a situação. Para o Banco Mundial,
nas áreas metropolitanas brasileiras em 1999, o impacto geral dos impostos foi
no sentido de aumentar a desigualdade, exatamente porque o impacto bom dos
impostos diretos foi superado pelo impacto ruim dos impostos indiretos. Nessas
regiões, segundo o Banco Mundial, “os 40% mais pobres recebem bem menos
que 10% da renda total, mas pagam 16% do total do imposto indireto”.13
Para o OCDE, a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômi
co, que reúne os países desenvolvidos, é possível que no Brasil como um todo os
impostos façam uma pequena contribuição positiva para reduzir a desigualdade,
mas nada da magnitude que seria de se esperar. No seu relatório de 2005, após co
mentar o pouco êxito dos programas sociais em reduzir a desigualdade brasileira, a
entidade concluiu: “Tampouco o sistema tributário contribui para melhorar a dis
tribuição de renda. Enquanto na maioria dos países do OCDE, existe uma diferen
ça significativa entre a distribuição da renda bruta e da renda líquida, no Brasil isso
não acontece. A razão é que o impacto dos impostos diretos na distribuição de
renda é quase totalmente neutralizado pelo impacto dos impostos indiretos...”.14
Certamente não queremos mudar o sistema tributário a ponto de jogar o
peso total nos assalariados mais ricos e no lucro das empresas, e assim talvez
aumentar a sonegação e reduzir o incentivo para trabalhar e investir. Mas certa
mente há muito espaço para melhorar.
Eis, portanto, nossa segunda constatação preocupante', no Brasil, o pobre paga
uma fatia relativamente grande dos impostos, fazendo com que o sistema fiscal
tenha pouco ou nenhum impacto sobre a desigualdade.
Nossa próxima fonte de preocupação vem do outro lado do processo, e é pare
cida: no Brasil, o custo dos programas sociais cai em boa parte sobre os ombros
dos próprios pobres e da classe média baixa. Pode parar e ler de novo, mas é isso
12 Os dados da Associação Comercial de São Paulo se referem especificamente ao Estado de São Paulo, e certamente haverá diferenças entre Estados. Em 2002 a Câmara Americana de São Paulo calculou que o custo de isentar de ICMS os alimentos da cesta básica seria US$ 1 bilhão ao ano.
,3 Brazil: Inequality and Economic Development, Banco Mundial, 2003. ,4 OECD Economic Surveys - Brazil 2005. pág. 134 e 135.