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Dinheiro que supostamente falta aos regimes públicos

No documento A previdência injusta.pdf (páginas 176-183)

C a i u o n ú m e ro de s e rv id o re s fed erais

Alegam, ou alegavam, alguns representantes dos servidores, que pelo menos parte do problema na previdência dos servidores seria a queda no tamanho do setor público, que faz com que haja menos contribuintes. Vamos ver.

Em 1995, o governo federal empregava 1,03 milhão de servidores ativos. O total caiu para 912 mil no final de 2002. A redução veio somente graças aos esforços do Executivo, que se encolheu 15%, de 951 mil servidores para 810 mil. E se excluímos os militares, que são contados dentro do Executivo, e cujo total se manteve mais ou menos estável, então a queda proporcional no núme­ ro de servidores civis seria maior ainda. Por sua vez, o Judiciário e o Legisla­ tivo — que são bem menores, mas pagam salários bem maiores — cresceram 27% e 18%, respetivamente.

A queda no tamanho do Executivo foi basicamente o resultado da determina­ ção dos governos da época de conter gastos e modernizar o setor público. Houve privatização, terceirização, e também informatização. Como conseqüência, o país precisava — ou devia precisar — de menos servidores administrativos. Como é muito difícil demitir servidor, boa parte da redução foi obtida pelo “gasto natural” das aposentadorias e pela diminuição das contratações.

No mesmo período, aumentou bastante o número de servidores aposenta­ dos e seus pensionistas, de 803 mil para 944 mil. Foi em parte uma conseqüên­ cia da reação dos servidores às reformas recentes, pedindo demissão para garantir a aposentadoria.

A conseqüência da queda no número de servidores e o aumento no número de aposentados e pensionistas não poderiam ser outra: uma piora significativa na relação entre contribuintes e beneficiados. Em 1992, havia 1,8 servidor para cada aposentado. Já em 1995, isso caiu para 1,3 para um; e, em 2003, havia li­ geiramente menos de um ativo para cada aposentado e pensionista.

Não há dúvida de que essa queda fez piorar o problema do regime dos ser­ vidores federais. Mas está longe de ser o culpado principal, diante do brutal desequilíbrio que existe entre o nível médio das contribuições e dos benefícios.

O total de servidores federais voltou a subir no governo PT, chegando a ul­ trapassar 1 milhão em 2006, crescimento de 10% em quatro anos, com o novo governo alegando que os serviços públicos estavam sofrendo com a redução.

Mas, no final das contas, o número de servidores federais é totalmente irre­ levante. Seu sistema de aposentadoria tem que ser viável com 1 milhão de ser­ vidores, ou com 2 milhões, tanto faz. E sugerir que a solução pelo desequilíbrio atual é aumentar o total de servidores para aproveitar das contribuições dos novos, é pregar a lógica da carta corrente, que se mantém em pé somente com cada vez mais participantes.

O problema do regime do setor público não é de uma flutuação no núme­ ro de servidores, é de um desequilíbrio fundamental. O sistema nunca goza­ va de equilíbrio, no sentido de arrecadar em contribuições o suficiente para pagar os benefícios. Nem podia estar — até 1993 os servidores não contribu­ íam nada para suas aposentadorias, pagando somente para as pensões. Agora contribuem com 11% sobre o salário integral, mas mesmo somando isso e mais uma contribuição patronal de RS 2 para cada R$ 1 contribuído pelos servidores, e mesmo levando em conta o impacto da contribuição dos servi­ dores inativos (acima do teto da previdência), há um fato incontestável: o

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regime dos servidores está tão longe do equilíbrio atuarial, que não há solu­ ção, dentro das regras atuais.

Enquanto os servidores e os legisladores não aceitarem essa realidade mate­ mática, o país ficará condenado a perder tempo e energias brigando por algo que é completamente irreal.

Co n t r ib u iç õ e s b a ix a s n o s Es t a d o se m u n ic íp io s

São, ou eram baixas, é verdade, mas isso é só a ponta do iceberg numa histó­ ria complexa e preocupante, que ainda não se fez muito presente no debate público. Juntos, os Estados e municípios brasileiros já geram um déficit quase tão grande quanto o dos servidores federais, mas com o perigo, segundo alguns especialistas, de estourar no futuro. Isso porque o número de pessoas envolvidas é bem maior.

O problema tem suas raízes na Constituição de 1988, que deu aos Estados e municípios a possibilidade de criar seus próprios regimes de previdência, mas não definiu como isso seria feito. Mais ou menos como dar carteira de motoris­ ta sem existir Código de Trânsito.

O resultado era uma festa. Todos os Estados e quase a metade dos municí­ pios aproveitaram da provisão e tiraram seus funcionários do INSS.

Foi de fato um excelente negócio para os mandatários da época, porque podiam trocar as pesadas e relativamente bem fiscalizadas contribuições patro­ nais ao INSS por contribuições ao seu próprio regime, freqüentemente bem mais módicas e “fiscalizadas” por eles mesmos. E como novos sistemas previ­ denciários tipicamente têm grandes superávites nos primeiros anos, os governa­ dores e prefeitos podiam, se quisessem, deixar de depositar suas contribuições, ou depositá-las e depois emprestá-las de volta para eles mesmos, para torrar em outras coisas, deixando o abacaxi para administrações futuras.

Além disso, embora os novos regimes oferecessem aposentadorias integrais, muitos brindaram os servidores com taxas de contribuição impossivelmente baixas, fora de qualquer realidade matemática. Mais uma vez, a idéia de que você pode comprar uma BMW “top” pagando prestação de Fiat popular.

Essa farra corria solta porque o Congresso Nacional demorou nada menos que dez anos para fixar regras corretas, como proibir o desvio das contribuições e exigir níveis mínimos de contribuição.

“Durante o interregno de uma década”, escreveu o jornal 0 Estado de

S.Paulo, “um grande número de prefeituras abandonou o regime do INSS e adotou regime próprio para a aposentadoria e os benefícios previdenciários de seus funcionários, fazendo um verdadeiro negócio de ocasião... descontariam a contribuição dos funcionários, mas nem sempre depositariam a sua contri­ buição. Além disso, poderiam usar o fundo constituído para pagar as futuras aposentadorias e pensões como uma fonte adicional de recursos, tomando do sistema previdenciário empréstimos a baixo custo e longo prazo, cuja liquida­ ção poderiam protelar indefinidamente”.113

Em linguagem popular: criaram os novos regimes de previdência, e em se­ guida meteram a mão no dinheiro.

Para aperfeiçoar a patuscada, a Constituição permitiu que dezenas de mi­ lhares de funcionários até então inscritos no INSS fossem transferidos para os regimes próprios, com direito a ganhar uma aposentadoria integral após so­ mente dez anos de contribuição ao novo plano. Ou seja, uma farra legal, em todos os sentidos, e viabilizada por legislação federal inadequada.

Mas a culpa não cai unicamente sobre o Congresso Nacional. Mesmo com legislação “queijo suíço”, ninguém obrigou os Estados e municípios a criar fun­ dos com níveis de contribuição insustentáveis, nem de tratá-los como uma ex­ tensão da sua própria caixa. O Congresso deixou a brecha inicial, sim, mas essa foi alegremente aproveitada por milhares de legisladores e funcionários estadu­ ais e municipais. E quando o Congresso finalmente moralizou a situação, em 1988, ao exigir — pela Lei 9.717 — que os regimes próprios dos Estados e municípios tivessem “equilíbrio financeiro e atuarial”, com contribuição do ser­ vidor de pelo menos 11%, ninguém obrigou a prefeitura e a Câmara Municipal de São Paulo, por exemplo, a esperar mais sete anos para reformar seu regime.

Às vezes, ouvimos o argumento de que os regimes dos Estados e municí­ pios já acumularam alguns bilhões de reais de fundos e, portanto, representam um êxito. E certamente nem todos os governos locais eram incautos. Alguns regimes estaduais e municipais são bem-estruturados. Mas a maioria já revela sérios problemas.

O problema é conhecido há tempo, pelo menos pelos peritos. Já em 2003, dois pesquisadores da Universidade de Brasília (UnB) alertaram que o déficit dos municípios era crescente, e que somente 10% deles tinham resultados

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positivos. Mais recentemente, o Núcleo Atuarial de Previdência (NAP), um grupo de estudo dentro da Universidade Federal do Rio de Janeiro, calculou que os sistemas de previdência de 25 capitais de Estado somavam um rombo potencial da ordem de R$ 64 bilhões, isso baseado em dados de 2004. O pior caso era São Paulo, com rombo potencial de mais de R$ 41 bilhões. No nível estadual, a situação é ainda pior, e o buraco ganha feições de abismo. Usando dados de dezembro de 2006, o NAP calcula que 21 Estados (incluindo o Distrito Federal) apresentavam, juntos, um déficit potencial de nada menos de R$ 401 bilhões.114

Que quer dizer “déficit potencial” ou “rombo atuarial”? Quer dizer que, na­ quele momento, um fundo tem compromissos maiores que seus ativos. Trata-se de uma situação bem conhecida de muitas famílias, que olham em desespero para uma pilha de contas, todas vencendo no mês que vem, e percebe que o total é maior que a soma do salário que deve entrar, e as economias que porven­ tura têm no banco.

Tudo isso pode soar somente como problema de contabilidade, algo que pouco tem a ver com o restante da sociedade ou com a justiça social. Mas vamos pensar: quem será convidado a pagar este pato enorme? A resposta, como sem­ pre, é: nós, a sociedade em geral.

Em cada Estado e município onde há buraco, os cidadãos podem se prepa­ rar, porque fatalmente vão receber a conta. Mas seria bom ficar de olhos bem abertos, porque a conta virá talvez de forma oculta — por exemplo: menos in­ vestimentos e menos serviços, enquanto impostos e o resultado da venda de bens públicos são desviados para sustentar os regimes dos servidores, para que estes possam continuar a pagar aposentadorias em valores totalmente fora dos sonhos dos cidadãos que arcam com boa parte do custo.

De fato, o processo já começou, de uma maneira nem sempre muito bem percebida pela sociedade em geral. Vários Estados vêm usando a receita das privatizações ou da venda de ativos públicos para reforçar seus fundos de previ­ dência. Em princípio, quando a sociedade vende algo que foi construído ou adquirido com dinheiro público, o dinheiro devia reverter aos cofres públicos. Em vez disso, em vários casos parte da receita foi destinada ao benefício exclu­ sivo de um grupo seleto de cidadãos.

114 Os pesquisadores da UnB são Selene Peres Nunes e Ricardo da Costa Nunes, e seu estudo se chama Dois anos da Lei de Responsabilidade Fiscal do Brasil: uma avaliação dos resultados à luz do modelo do Fundo Co­ mum. Estudos do NAP podem ser consultados no site www.nap.coppe.ufrj.br.

Alguns exemplos:

• Em Goiás, o Fundo de Previdência Estadual recebeu aproximadamente R$ 600 milhões, na forma de 40% das ações da empresa estadual de saneamento, a Saneago, bem como imóveis públicos e a receita de privatizações futuras.

• Na Bahia, o Funprev recebeu RS 400 milhões provenientes da privatização da Companhia de Eletricidade da Bahia (Coelba) e outros RS 450 milhões emprestados da Caixa Econômica Federal.

• Dos Estados que têm a felicidade de possuir petróleo e/ou gás natural, vários anteciparam seus royalties para reforçar os fundos de previdência dos servi­ dores, usando dinheiro que, teoricamente, seria destinado ao desenvolvimen­ to geral do Estado. No Rio de Janeiro, por exemplo, a então governadora Rosinha Garotinho conseguiu reduzir o buraco potencial de R$ 92 bilhões para RS 23 bilhões, ao transferir boa parte dos royalties futuros de petróleo e gás, ao qual o Estado tem direito, para o Fundo Único de Previdência Social do Estado do Rio de Janeiro (Rioprevidência). Assim, algo como R$ 70 bi­ lhões, em valores atuais, que teoricamente devem ser usados para o bem de todos os 15 milhões de fluminenses, serão destinados para subsidiar aposen­ tadorias e pensões de uma minoria. Ainda bem que Rio não tem nenhum problema mais urgente, como violência, saneamento, educação ou saúde, que requer investimentos públicos...115

Conclusões

Voltamos então à nossa pergunta original: existe ou não um déficit na pre­ vidência? E depois de tanto examinar os caminhos tortos do presente e do passado, podemos responder, com mais firmeza ainda, exatamente o que afir­ mamos vinte páginas atrás: a questão do déficit depende totalmente do que queremos incluir na conta ou excluir dela.

115 Exame. 28 de junho de 2000; site do Instituto de Previdência e Assistência dos Servidores do Estado de Goiás (Ipasgo). Na Bahia, havia a sugestão de que o empréstimo seria quitado pela receita da privatização da Embasa. empresa estadual de saneamento, mas isso aparentemente não figura mais nos planos. Os dados flumi­ nenses são de estudos do NAP. O decreto mencionado é 37.571, de maio de 2005.

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Três coisas são claras:

• Pr i m e i r a — em qualquer um dos regimes, ao comparar contribuições com be­

nefícios pagos, veremos sempre um baita déficit, mesmo contando com uma contribuição patronal integral.

• Se g u n d a — quanto aos regimes dos servidores, não há solução dentro das re­

gras atuais. Ou a sociedade opta por fazer uma reforma de verdade, do tipo proposto neste livro, ou algo parecido, ou ela aceita arcar com o custo dos privi­ légios durante muitos anos.

• Te r c e i r a — quanto ao INSS, pode parecer que a sociedade teria algumas op­

ções. Não de refazer o passado, que é delusão mesmo, mas de alterar o presente. No entanto, como veremos, são em grande parte opções ilusórias.

De certa maneira, o déficit acaba sendo uma questão de opções — se alocar na Seguridade Social a totalidade da receita de todas as contribuições sociais e, dentro disso, deixar o INSS usar tanto quanto precisar, então sem dúvida o dé­ ficit do INSS iria sumir. Se tirar os benefícios assistenciais da conta do INSS e acabar com as renúncias, ou acabar com a economia informal e toda a corrup­ ção, também podemos resolver ou reduzir bastante o problema.

Mas, para cada uma dessas opções, precisamos perguntar: é factível? E, mes­ mo sendo, quais as conseqüências?

Três das opções — usar mais contribuições sociais no INSS, substituir as re­ núncias com apoio direto e transferir benefícios assistenciais para o Tesouro Na­ cional — são factíveis, mas não passam de “soluções contábeis” que simplesmente transferem dinheiro público de uma conta para outra. O buraco pode mudar de lugar, mas a sociedade não cria nada. Nenhum dinheiro novo vai sair da cartola. A única das três que talvez — talvez — trouxesse um ganho real para a sociedade seria acabar com algumas das renúncias, supondo que várias das entidades e fina­ lidades hoje beneficiadas realmente não merecem tanto apoio público. Mas o ga­ nho líquido não seria grande, comparado com o total do déficit.

Há também uma ressalva fundamental, uma que já fizemos em outros mo­ mentos. Algumas dessas mudanças podem até ser justificáveis, ou para melho­ rar a eficiência fiscal do país, ou para fortalecer o combate à pobreza. Nunca, porém, para viabilizar a manutenção dos privilégios.

As outras duas opções — reduzir bastante a informalidade e a corrupção — são metas louváveis, independentemente da situação da previdência, mas exigem transformações estruturais na sociedade e virão somente com o tempo. Exigem, no mínimo, mudanças profundas no sistema tributário e nas leis traba­ lhistas, talvez também amplas reformas políticas e do Judiciário.

E quem sabe a relação entre previdência, informalidade e corrupção pode ser o contrário — que informalidade e corrupção menores serão as conseqüências de uma sociedade mais justa, e não tanto os meios de construí-la.

De qualquer maneira, devemos ver como moralmente inaceitável a sugestão de que a existência da informalidade e da corrupção seria uma justificativa para deixar incólumes os privilégios da previdência.

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