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Prioridades e regras

No documento A previdência injusta.pdf (páginas 196-199)

Provavelmente, a grande maioria das pessoas vai concordar que ao mundo não é justo”, mas dificilmente teremos unanimidade sobre qualquer solução. Já vimos que a previdência atual embute enormes injustiças, e ao afirmar que a Nova Previdência “vai tratar todo mundo igual”, a maioria provavelmente vai aplaudir. Mas o que quer dizer, na prática, “tratar todo mundo igual”? São três possibilidades básicas:

• Cada pessoa recebendo uma aposentadoria do mesmo valor absoluto? Seria totalmente igualitário — mas, independentemente de ter contribuído muito, pouco ou nada? Seria justo, isso?

• Cada pessoa recebendo a mesma porcentagem do seu salário, por exemplo, 50%? Parece legal, mas, ao fazer isso, vamos espelhar a atual distribuição de renda, reconhecidamente uma das piores do mundo. E o trabalhador pobre ficará mais pobre ainda. E isso que queremos?

• Cada pessoa recebendo de volta exatamente o que contribuiu? Parece justo. Mas também pode ser bem ruim. O pobretão não vai contribuir nada, por­ que mal tem para comer, enquanto o ricaço tem dinheiro sobrando e, portan­ to, pode planejar uma velhice confortável.

Se estes exemplos servem para ilustrar as dificuldades de decidir o que seria “justo”, podem se preparar, pois vêm mais complicações. Por exemplo: um casal de idosos deve receber o dobro de um solteiro da mesma idade? Sim? Mesmo pagando um só aluguel, uma conta de luz, etc.? Não? Então, o casal deve receber o mesmo que o solteiro? Mas duas pessoas precisam de mais comida, mais rou­ pa, mais remédio... Então o casal deve receber, digamos, 50% a mais que o sol­ teiro? Ou 75%? Ou 30%?

Quem começa a trabalhar mais cedo deve se aposentar mais cedo? Mesmo não sendo doente? E se aposentar mais cedo, deve receber um valor menor? Quem ficar doente deve receber seu salário integral, à custa da sociedade? Sim? Mesmo se for pedreiro ou presidente de um banco, tanto faz? E quando a mu­ lher tem bebê, deve ficar sem salário enquanto amamenta a próxima geração, ou a sociedade deve pagar? Então ela deve receber quanto? Salário integral, à custa do povo? Empregada doméstica ou alta executiva, tanto faz? Se tiver limite, quanto que devia ser?

Não há resposta “correta” para nenhuma dessas perguntas, cada pessoa terá suas próprias idéias, e um sistema de previdência devia refletir o consenso dos valores éticos da sociedade. Sempre que buscamos um consenso haverá gente que discorda, mas isso é natural, não é problema insolúvel. Certamente não é razão para não fazer nada.

Para podermos avançar na direção de um consenso, o primeiro passo é con­ cordar quanto a algumas prioridades e regras absolutas:

• Primeira prioridade: evitar a indigência e, se possível, a pobreza entre os idosos.

• Segunda prioridade: evitar a indigência e, se possível, a pobreza entre as crianças.

• Terceira prioridade: evitar a indigência e, se possível, a pobreza entre os adultos.

• Primeira regra absoluta: uma previdência universal, com as mesmas condições para todos os cidadãos, sejam eles servidores, trabalhadores do setor privado, biscateiros, empregadas domésticas, militares, políticos, juizes... todos.

• Segunda regra absoluta: subsídios, se houver, devem ser totalmente transparen­ tes e abertos, incluídos propositadamente com finalidades claras e estruturados da forma mais progressiva possível. Ou seja, para beneficiar os mais pobres.

Imediatamente, algumas pessoas vão reclamar da lista. A primeira priorida­ de, tudo bem, é a da previdência clássica: evitar que idosos terminem seus dias debaixo da ponte, pedindo esmola na porta da igreja. Mas e a segunda? Crian­ ças? Vamos ter aposentados na pré-escola?

Aí é que precisamos lembrar de algo que é de suma importância para a Nova Previdência — ela tem que ser apropriada para o Brasil. Não para o Chile, nem

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BRIAN NICHOLSON

para a índia, e muito menos para a Inglaterra, França ou os Estados Unidos. O Brasil possui características econômicas e sociais bastante sui generis, e o que talvez funciona bem num outro país não seria necessariamente o melhor para o Brasil. Devemos estudar os acertos e desacertos de outros países, sem dúvida, mas copiar somente o que for apropriado.

Entre as características especificamente brasileiras que precisamos levar em conta estão a péssima distribuição de renda, com uma massa enorme de gente pobre na base da pirâmide; os baixos níveis de escolaridade; a prevalência do trabalho informal entre adultos; e a grande população rural.122

Isso nos leva de volta àqueles dados sobre o impacto da previdência no meio rural e nas cidades menores. É algo que o novo modelo precisa preservar, e se for possível, reforçar. Talvez em países mais avançados a previdência não tenha essa função. Mas no Brasil de hoje, existem milhões de famílias rurais ou “semi- rurais” em que as crianças comem um pouco melhor, se vestem um pouco me­ lhor, e provavelmente têm mais possibilidade de ficar na escola graças aos benefícios previdenciários dos seus pais e, mais freqüentemente, avós.

O mundo deve ser assim? Certamente, não. Os pais dessas crianças devem ter renda adequada para assegurar-lhes uma boa qualidade de vida, sem receber benefícios da previdência e sem meter a mão na aposentadoria dos avós. Mas o fato é que não têm. Pesquisadores nos dizem que os idosos pobres têm mais possibilidade de morar com as gerações mais jovens das suas famílias. E um estudo relata que “o recebimento de benefícios da previdência social redefiniu o papel social dos idosos nas famílias e comunidades rurais brasileiras”. As mu­ lheres, especialmente, ganham mais status, porque têm renda própria, e os ido­ sos de ambos os sexos ficam mais integrados nas famílias porque podem contribuir. Estes impactos, como podemos esperar, são mais nítidos nas regiões rurais mais pobres, com destaque para o Nordeste.123

É verdade que existem vários programas sociais, fora da área da previdência, que focalizam mais especificamente os jovens — como lembrete, vimos no Capí­ tulo 2 que um programa social é chamado de “bem focalizado” quando concen­ tra seus gastos com mais precisão no grupo que quer atingir. O Bolsa-Família

122 Para o IBGE, o Brasil é mais de 80% urbano, menos de 20% rural. Mas uma parte dessas 80% é o que pode­ mos chamar de "semi-rural" - famílias pobres nas periferias das cidades menores, e um estilo de vida que mescla campo e cidade. Não é por nada que aproximadamente um terço dos benefícios do INSS é rural.

'23 ver Benefícios sociais e pobreza - programas nõo contributivos da seguridade social brasileira, pág. 19, Schwarzer e Querino (Ipea, 2002).

seria um programa assim. Mas também parece claro que, nessa fase do desenvol­ vimento do Brasil, a combinação dos benefícios previdenciários e assistenciais com os programas sociais focalizados oferece uma combinação interessante para atacar a pobreza rural. E um passo pragmático na direção de um programa nacional de renda mínima para todos os adultos, sem os problemas que um programa desse tipo pode trazer.

No documento A previdência injusta.pdf (páginas 196-199)